Exposição de motivos
O transporte ferroviário é a espinha dorsal de um verdadeiro sistema de transportes, quer pelas suas características estruturantes para o sistema, quer pelo lugar estratégico que ocupa na vida económica do País, assegurando a circulação de mercadorias e bens, e a mobilidade dos trabalhadores e populações, quer pelo peso que tem em termos do investimento, quer ainda pelo importante e essencial papel que representa no incremento do serviço público de transportes, com enormes benefícios para o ambiente e para o desenvolvimento sustentável ao nível local, regional e nacional.
Em sentido contrário, constata-se que, numa linha de continuidade, a política dos sucessivos governos do PSD/CDS-PP e do PS tem assentado na segmentação / desmembramento de empresas, na diminuição da oferta de transporte, na entrega de serviços a terceiros, visando a privatização de empresas ou parte delas, retirando da cadeia de valor da produção de transporte as atividades que podem ser colocadas ao serviço da criação de lucros e rendas para os capitalistas, e transferindo para os privados alavancas fundamentais do sector dos transportes e da economia nacional. Os sucessivos Governos têm concretizado uma política manifestamente antissocial, assente no aumento da exploração dos trabalhadores, no aumento das tarifas e na redução do serviço público prestado às populações.
A ofensiva privatizadora é um elemento nuclear da política de direita que tem sido desenvolvida nos últimos 38 anos por sucessivos governos, e que o atual governo do PSD/CDS-PP prossegue e aprofunda (tentando, todos, esconder essa centralidade com campanhas mistificadoras, sejam montadas, como inicialmente, com base nas imposições da União Europeia e nas virtudes da concorrência e da liberalização, sejam as montadas mais recentemente pela divida criada pelas suas opções e que na realidade se trata de uma dívida histórica do Estado para com as empresas públicas, laboriosamente construída através de anos de desorçamentação, subfinanciamento e desorganização).
O desmembramento da CP foi o caminho seguido no processo que está em curso de criação de condições para a privatização. As consequências desta política – que prejudica a CP, o sector, os ferroviários, os utentes e a população – estão à vista:
• Encerramento de linhas, ramais e estações.
• Desguarnecimento galopante de estações e outras instalações, mesmo quando têm serviço ferroviário, deixando-as abandonadas e sem apoio para os utentes.
• Encerramento de várias oficinas de manutenção e reparação de material circulante, aumentando as marchas em vazio e penalizando a economia local e as assimetrias territoriais.
• Abate e alienação de elevadas quantidades de material circulante, mesmo em bom estado de conservação ou com onerosas operações de manutenção e reparação recentes.
• Redução brutal de trabalhadores, ataques sistemáticos aos seus direitos e garantias, provocando a desmotivação e as condições objetivas para cederem às pressões e chantagens para saírem das empresas. Falamos da redução e degradação dos salários, da crescente precariedade e da destruição dos vínculos laborais, do bloqueio e destruição da contratação coletiva, do recurso frequente a empresas de aluguer de mão-de-obra, das reformas compulsivas, do aumento da idade da reforma e do cada vez menor valor das pensões e das reformas, da liquidação de direitos no plano da saúde e outras regalias que ao longo de anos contribuíram para manter um mínimo de dignidade para quem trabalha.
• Supressão e redução de serviços e de comboios, levando à utilização do transporte individual, assim como o recurso às rodoviárias privadas.
• Criação de condições subjetivas e objetivas para aumentar o risco, e consequentemente, diminuir a segurança.
Desagregação e desmantelamento do caminho-de-ferro
Com esta política de destruição, a rede ferroviária nacional passou dos 3616 Km, para os atuais 2839 Km, o número de trabalhadores ferroviários diminuiu de 27.000 em 1976 (na CP) para cerca de 6.000 em 2014 (nas quatro empresas públicas).
O desmembramento da CP, grande empresa estratégica do sistema de transportes, iniciou-se com os primeiros governos do PS, continuou com os governos do PSD, em que se retiraram importantes áreas à empresa: tais como a reparação e manutenção do material circulante e barcos; o transporte fluvial entre o Terreiro do Paço e o Barreiro; o transporte de pequenos volumes; os estudos e projetos de engenharia e infraestruturas; a formação e a medicina no trabalho; a impressão dos suportes gráficos da atividade (bilhetes, mapas, horários, impressos, etc.); que passaram respetivamente para a EMEF, Soflusa, TEX, Ferbritas, Fernave e Fergráfica.
No entanto, foi com os governos do PS que o desmembramento assumiu maiores proporções, “partindo” a empresa ao meio, retirando-lhe áreas vitais para o seu funcionamento como sistema de transportes – a infraestrutura e o controlo de circulação – e criando a REFER.
Esta medida foi decidida pelo governo do PS em 1996 e veio sendo implementada até finais de 1998, concretizando-se a separação total a partir de 1999. O processo incluiu ainda a criação de um instituto público: o INTF, Instituto Nacional do Transporte Ferroviário, cujo papel se traduziu fundamentalmente na preparação e formalização do contrato de PPP para a exploração comercial do serviço de transporte ferroviário de passageiros na linha Lisboa/Setúbal (a que a CP foi proibida pelo Governo de concorrer), em termos que favoreceram escandalosamente o operador privado e prejudicaram os utentes e populações e o Estado.
Assim, da CP surgiram cerca de duas dezenas de novas entidades, a maioria já liquidadas, vendidas ou em processo de venda, de que as mais conhecidas são, além da renomeada CP/Comboios de Portugal, a REFER/Rede Ferroviária Nacional, a CP Carga, a EMEF, a Soflusa, a TEX, a Ferbritas, a Fernave, a Fergráfica.
Por seu turno, o INTF/Instituto Nacional do Transporte Ferroviário foi integrado em 2007 no também entretanto extinto IMTT/Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP, que por sua vez deu lugar ao atual Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.) – já entretanto “reorganizado” com a separação das funções de regulação na Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), entidade com estatutos aprovados em maio de 2014 mas que ainda não saiu do papel.
Ou seja, a ferrovia portuguesa está mais desarticulada e com o processo de operação mais complexo e desorganizado.
Em 1996, último ano enquanto empresa com a totalidade da infraestrutura e a exploração, a CP tinha 13.624 trabalhadores, transportava 177 milhões de passageiros e 7,9 milhões de toneladas, teve um resultado líquido negativo de cerca 360 milhões de euros e indemnizações compensatórias de cerca 102,5 milhões de euros.
Os resultados da política de direita que levou ao desmembramento da CP estão à vista.
Em 2013 as quatro empresas totalizam 6039 trabalhadores, isto é, menos 55% do que em 1996. A produção de passageiros em 2013 foi de menos 70 milhões de passageiros transportados (-40%), embora a de mercadorias tenha subido de 0,3 milhões de toneladas transportadas (+4%). A produção total da CP, medida em unidades quilómetro, que resulta da soma de passageiros quilómetro com toneladas quilómetro, em vez de aumentar, baixou 2722 milhões, isto é, menos 35%.
O défice em 2013, no conjunto das empresas, é de cerca de -260 milhões de euros, e a dívida ascendia já a 10.969 milhões de euros. As indemnizações compensatórias, que em 1996 (governo do PSD) tinham sido de 102,5 milhões de euros, baixaram em 2013 para 77 milhões, e o Governo ainda ameaça com uma maior diminuição futura e deixar de as pagar à CP.
Sublinhe-se: o défice que existia na CP em 1996, e que resultava de o Estado não cumprir as suas obrigações dotando-a de indemnizações compensatórias suficientes para garantir a sua operação, mantém-se no essencial o mesmo se somarmos o Grupo CP e a REFER, apesar da redução brutal da produção da empresa. Se tivermos em conta que o défice de 1996 correspondia, no essencial, aos custos de uma oferta vendida abaixo de preço de custo e a investimento não devidamente coberto pelo Estado, e que em 2013 o investimento foi congelado e esse défice é inferior aos custos das empresas públicas ferroviárias com juros e swaps, teremos uma dimensão mais aproximada das consequências dramáticas das opções que foram impostas e de quem está a perder e a ganhar com elas.
Opções políticas e falsas inevitabilidades
Durante anos e anos, os sucessivos governos repetiam que esta segmentação do operador ferroviário da gestão das infraestruturas resultava de uma imposição da União Europeia que seria supostamente incontornável e inevitável.
Sabemos – e denunciámos – que os sucessivos pacotes ferroviários aprovados na União Europeia (aprovados com os votos de PS, PSD e CDS e a oposição do PCP) tinham objetivos claros de degradação da soberania nacional, intensificação da exploração dos ferroviários e promoção da concentração monopolista do sector à escala europeia. Mas sempre dissemos que o país tinha o direito e a possibilidade de resistir a esse caminho que nos queriam impor.
Recentemente, o PCP no Parlamento Europeu voltou a questionar a Comissão Europeia sobre a «Separação entre a gestão da infraestrutura e a exploração de serviços de transporte – situação em França e na Alemanha e nos demais países».
Nessa pergunta, dirigida à Comissão a 26 de Agosto de 2014, podia ler-se o seguinte: «Apesar das medidas impostas pela UE no setor ferroviário, ao nível da separação entre a gestão da infraestrutura e a exploração de serviços de transporte – que se veio a revelar desastrosa em países como Portugal, onde a CP foi retalhada em diversas empresas, com degradação da situação financeira das empresas (com custos acrescidos que a integração evitava), degradação do serviço público, da infraestrutura e dos direitos dos trabalhadores –, é sabido que a França e a Alemanha não efetuaram a referida separação. O Parlamento francês decidiu acabar com a separação entre a SNCF e a RFF, unindo-as numa única entidade pública. Na Alemanha nunca foi criada uma empresa de gestão de infraestruturas, pelo menos nos moldes desejados pela Comissão Europeia. Neste quadro, merece registo o facto de a multinacional alemã Deutsche Bahn (DB), um colosso do setor, estar interessada na privatização de empresas de outros países, como Portugal, que resultaram dos retalhos de empresas-mãe (como a CP) – privatizações e retalhos, sublinhe-se, impostos pela UE. Pergunto à Comissão Europeia qual o motivo para a dualidade de critérios entre a França e a Alemanha, por um lado, e os demais países, por outro, e se considera a possibilidade de alterar as suas posições neste domínio, em face dos desenvolvimentos verificados.»
A resposta da Comissão Europeia (de 6/10/2014) foi esclarecedora. Segundo Siim Kallas, o então Comissário Europeu para os Transportes: «As atuais regras da UE não impõem a separação das empresas ferroviárias verticalmente integradas. O gestor de infraestrutura e a empresa ferroviária podem permanecer dentro do mesmo grupo, sob reserva do requisito de separação das contas. No entanto, se o gestor da infraestrutura não for independente, no plano funcional, da empresa ferroviária, certas funções que são essenciais para assegurar o acesso não discriminatório à rede ferroviária devem ser exercidas por um organismo independente. A legislação da UE não impõe privatizações. Cabe aos Estados-Membros decidir se pretendem realizar determinadas atividades económicas através de empresas estatais. Essas empresas públicas estão sujeitas às mesmas regras que as empresas privadas. Por conseguinte, a decisão de separar a empresa Comboios de Portugal não foi exigida pela legislação da União, tendo constituído uma decisão soberana do Estado português. Do mesmo modo, as decisões tomadas pela França e pela Alemanha de, respetivamente, manter ou introduzir uma estrutura verticalmente integrada não infringem o direito da UE.»
Perante tal resposta, estamos na presença de um poderoso e demolidor desmentido da própria Comissão Europeia, a destruir a propaganda dos sucessivos governos do PS, PSD e CDS-PP, e a dar razão afinal ao PCP quanto à plena e evidente possibilidade de uma gestão integrada da ferrovia nacional.
Intensifica-se a ofensiva na privatização e desestruturação
Entretanto, em 2014, o Governo PSD/CDS-PP desencadeou um processo de fusão entre a EP/Estradas de Portugal e a REFER, entre o gestor das infraestruturas rodoviárias e o gestor das infraestruturas ferroviárias.
Esta fusão é das medidas mais disparatadas, mais controversas e menos discutidas do ponto de vista do sector ferroviário e até do ponto de vista técnico, de quantas o Governo tentou impor no sector dos transportes. E é uma medida que ao ser implementada no final do mandato trará custos importantes quando for revertida.
A política de direita tem crescentemente esvaziado estas empresas (REFER e Estradas de Portugal) e transferido saberes, competências e equipamentos para o sector privado, com custos cada vez maiores para o erário público, colocando o Estado na dependência dos grandes grupos da construção civil e obras públicas que monopolizam e cartelizam o sector, e reduzindo as empresas públicas à condição de gestoras de concessões, subconcessões, subcontratações e dívidas. O facto de os custos com o pessoal pesarem apenas 2 por cento (na EP) e 6,4 por cento (na REFER) na estrutura de custos das duas empresas é bem significativo do caminho já trilhado.
Este modelo desastroso carregou as empresas com encargos financeiros e provocou a paralisia do investimento nas infraestruturas – seja por via dos encargos com as subconcessões rodoviárias, onde a EP tem compromissos de 24 mil milhões de euros, dos quais 1200 milhões em 2015, seja por via do serviço da dívida, onde a REFER terá custos de 146,6 milhões em 2015, como pode ser visto no Orçamento de Estado.
Esta fusão é um salto desesperado nesta direção suicida. Como já ficou patente através das declarações de António Ramalho, e consta no despacho que cria o Grupo de Trabalho que prepara essa fusão, o Governo projeta realizar «ganhos rápidos» para ajudar a pagar estes compromissos com as PPPs, com as subconcessões e com a banca. Esta é a verdadeira prioridade, e esta não pode ser a prioridade quando se trata do gestor das infraestruturas nacionais.
Ainda nesta senda o Governo quer vender a Refer Telecom e a importante rede de comunicações propriedade da REFER (a quem o Governo atribuiu em 2013 a responsabilidade pela rede de comunicações de fibra ótica e pelo centro de processamento de dados em backup da Autoridade Tributária e Aduaneira).
O Governo quer também vender a Refer Engineering, colocando o Estado português numa ainda maior dependência dos grandes grupos monopolistas da construção e obras públicas; quer vender o vasto património ferroviário; quer fazer reverter para esta empresa as receitas da concessão da exploração das linhas rentáveis hoje atribuídas à CP (Urbanos de Lisboa e Porto, Longo Curso); quer concessionar o Controlo de Circulação; quer receber e privatizar os terminais de mercadorias recentemente retirados à da CP Carga; quer concessionar terminais rodoviários; quer entregar novas concessões na rede viária, etc..
No caso ferroviário, este modelo que agora querem impor é ainda uma completa irresponsabilidade do ponto de vista da fiabilidade e segurança do sistema. Muito mais que na rodovia, a circulação ferroviária implica uma perfeita articulação entre material circulante e infraestrutura e entre os homens que operam uma e outra, como sublinha a própria UIC.
Aliás, o Governo nem tenta negar esta realidade. Em lado nenhum dos despachos e decretos se lê que a solução que querem impor é para melhorar a segurança e fiabilidade da circulação ferroviária. Se a separação entre CP e REFER já é negativa, o afastamento que se desenha e a pulverização de agentes que se projeta seria desastrosa. E não será um regulador que resolverá o problema, como não o foi noutros países, e como não foi noutros sectores em Portugal.
Esta medida destina-se ainda a aprofundar o processo de destruição de postos de trabalho, de aumento da precariedade e da subcontratação nestas empresas, substituindo os trabalhadores do quadro por trabalhadores subcontratados e subconcessionários.
É um processo onde se transferem oportunidades de acumulação da mais-valia para os grandes grupos económicos, que cresceram à custa desta política e saqueando o Estado, que prejudica diretamente os trabalhadores, mas não prejudica menos o desenvolvimento social e económico do país.
Com efeito, nestes anos de governos de PSD/CDS e PS temos assistido a uma ofensiva global que, atingindo os mais variados sectores, tem tido como objetivo nuclear a alienação dos serviços públicos e a sua subordinação à lógica do lucro, bem como a destruição do sector público que resta, nomeadamente do sector empresarial do Estado, instrumento essencial à promoção do desenvolvimento económico e social e à garantia do bem-estar das populações.
É por isso que Portugal continua com uma política de pulverização do sector ferroviário com o objetivo de entregar os seus troços mais apetecíveis ao grande capital e que agora se amplia com a destruição da REFER no quadro da sua fusão com as Estradas de Portugal. Mas também com a conhecida pretensão de subordinação da EMEF às multinacionais fabricantes, tal como com a liquidação da CP Carga.
Aliás, esse processo de pulverização do sector ferroviário não obedeceu a qualquer lógica ferroviária – foi um mecanismo facilitador da progressiva privatização: num sector onde são necessários colossais investimentos, o privado está interessado em prestar e explorar serviços e monopolizar vendas, mas necessita de uma qualquer Parceria Público Privada para garantir os financiamentos públicos.
Estamos perante um ataque que pretende não apenas liquidar o Sector Ferroviário Nacional, mas intensificar a exploração dos trabalhadores e das populações e reduzir e condicionar a nossa soberania, numa linha de submissão e declínio nacional da política de direita. Isso está patente em diversas situações:
• Na política de manutenção, reparação e aquisição de equipamentos subordinada aos interesses das multinacionais - da Siemens, em primeiro lugar, mas da Alstom, da Bombardier, da Kapsch, da Nomad, etc. – que monopolizam crescentemente o mercado.
• Na política de exploração comercial subordinada aos interesses das multinacionais do sector – a DB alemã e a Transdev francesa já monopolizam o transporte rodoviário de passageiros (fora os urbanos de Lisboa e Porto) e preparam-se para se apropriar do resto, aumentando a renda que cobram ao país pela gestão de equipamentos e infraestruturas nacionais.
• No transporte ferroviário de mercadorias, a DB alemã vai estendendo o seu controlo europeu de um sector estratégico à custa das liberalizações forçadas.
• A panóplia de diretivas, regulamentos, pacotes ferroviários, etc., da União Europeia, aprovadas ou apoiadas por PS, PSD e CDS, tem servido precisamente para impor os objetivos estratégicos das grandes multinacionais.
Alternativa: uma estratégia integrada de promoção da ferrovia
O PCP considera que a política que o País necessita deve assentar num sistema de transportes públicos que responda às necessidades de mobilidade das populações e transporte de mercadorias e no qual o caminho-de-ferro desempenhe uma papel estruturante, contribuindo deste modo para o desenvolvimento sustentável ao nível local, regional e nacional.
Existem respostas e soluções para os problemas que afetam o sector dos transportes. Mas elas exigem que o interesse do país esteja em primeiro lugar o que impõe que o sector dos transportes seja efetivamente considerado como estruturante e estratégico para a vida económica da País, quer pela importância decisiva que possui para a mobilidade das populações e das mercadorias e bens, quer pelo peso que tem em termos do investimento e da balança de transportes, quer pelo papel que representa no desenvolvimento sustentado da nossa economia e sociedade.
O caminho para tal objetivo não é privatização do sector, mas sim o reforço do sector público nas suas diversas vertentes. Abandonando a perspetiva de privatizar, impõe-se de imediato a necessidade de reagrupar o sector sob um comando único e público.
No caso da REFER é indispensável travar o processo de fusão com as Estradas de Portugal com a ideia que lhe está associada de privatizar ou concessionar sectores da empresa, as Telecomunicações e o Controlo de Circulação, mas também inverter o processo de crescente externalização das suas atividades, onde a manutenção, reparação e construção de infraestruturas é já essencialmente realizada pelos grandes grupos económicos da construção civil.
Se a questão da “obtenção de sinergias” se coloca de facto como necessidade, então está à vista o caminho que se impõe, e que está a ser seguido na Alemanha e na França, e que a Espanha decidiu implementar depois do acidente de Vigo: trata-se da reconstrução de uma única empresa ferroviária que reúna o operador da infraestrutura e o da circulação, reagrupando a estrutura operacional do caminho-de-ferro e reconstituindo uma empresa ferroviária integrada, nacional e pública.
Na EMEF, importa inverter o processo em curso de colocar a manutenção nas mãos dos fabricantes de material, com as empresas públicas descapitalizadas até do pessoal necessário à mera fiscalização.
Na CP Carga, importa travar a transferência dos Terminais de Mercadorias para o sector privado - via REFER – e inverter o caminho, construído desde a sua separação da CP, de progressiva descapitalização preparando uma liquidação que o Governo já se atreve a assumir, depois de o ter negado quando o PCP o denunciou.
E no quadro da construção de material circulante, importa enfrentar as consequências da destruição da Sorefame: o país necessita de material circulante, que são equipamentos de alto valor acrescentado, e está hoje condenado a comprá-lo às multinacionais.
O país pode e deve usar a EMEF para, na negociação desses contratos, se garantir a crescente incorporação nacional na produção do material.
Exemplos do muito que há para inverter, são também a opção pelo aluguer de material circulante velho ao operador ferroviário espanhol RENFE, com manutenção feita em Espanha em vez de soluções que existiam e implicavam mais trabalho em Portugal, ou como a decisão de entregar a Unidade de Investigação e Desenvolvimento da EMEF à NOMAD (a 65%), com projetos de elevadíssimo potencial realizados pelos técnicos da EMEF.
Mesmo no que respeita ao transporte de mercadorias, a sua realização por via ferroviária traz ganhos importantes para todos quer do ponto de vista ambiental quer do ponto de vista da preservação das infraestruturas rodoviárias.
No tocante ao transporte de passageiros, estamos perante um serviço público essencial para a economia, para a qualidade de vida das populações e para o seu lazer, e onde os ganhos ambientais e energéticos (mas também orçamentais) são muito significativos sempre que a sua utilização implique a redução da circulação em transporte individual.
No plano nacional, a ferrovia pode e deve assumir ainda um importante papel na coesão territorial e no combate ao isolamento do interior.
A alternativa exige uma política de promoção dos transportes públicos, reduzindo os seus preços, alargando a oferta e a qualidade e fiabilidade da sua operação, com o serviço público financiado devidamente e não reduzido a uma lógica de rentabilidade interna, isto é, com o Estado a apoiar a exploração realizada por empresas públicas.
Assim, tendo em consideração o acima exposto, e ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Artigo 4.º do Regimento, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República recomende ao Governo, nos termos do n.º 5 do Artigo 166.º da Constituição, as seguintes medidas:
1. O cancelamento e reversão total dos processos presentemente em curso de:
a) Liquidação/privatização da CP Carga, bem como a restituição dos seus Terminais de Mercadorias, retirados por decreto do Governo.
b) Liquidação/privatização da EMEF e de entrega da manutenção e reparação do equipamento ferroviário às empresas multinacionais.
c) Destruição da REFER no quadro da sua fusão com a EP/Estradas de Portugal e subsequente transformação em empresa gestora de concessões e parcerias público-privadas.
d) Progressiva retirada à CP da exploração do transporte ferroviário de passageiros.
2. A análise e projeção das necessidades nacionais de material circulante e demais equipamento ferroviário, no curto e médio prazo, e a determinação da incorporação nacional na produção desses equipamentos.
3. O arranque para um processo de reunificação do operador ferroviário, englobando a rede de infraestruturas, a exploração do serviço de transporte e a reparação, construção e manutenção do material circulante, reagrupando a estrutura operacional do caminho-de-ferro e reconstituindo uma empresa ferroviária integrada, estruturante, estratégica, nacional e pública.
Assembleia da República, em 6 de fevereiro de 2015