Camaradas, as cidades e a habitação são hoje um dos campos de disputa entre os que nela vivem e trabalham e de quem destes extraem a mais valias. Esta dinâmica hoje entra-nos literalmente pelas casas adentro. Esta dinâmica não é novidade, e sempre houve processos de resistência organizada de muitas formas, associações, movimentos sociais, comissões de moradores que contruíram respostas alternativas de participação popular nos processos de gestão urbana. Estas respostas foram contruindo um serie de práticas e instrumentos, de que são exemplo processos de autogestão na construção de habitações, como o exemplo do SAAL já referido nas falas de camaradas anteriormente, mas também conselhos populares de gestão ou os orçamentos participativos. Este conjunto de praticas foi ganhando corpo desde os anos 60/70 no que podemos chamar de “agenda urbana participativa”
Esta “de agenda urbana participativa”, é aquela que coloca o protagonismo dos processos de planeamento e transformação urbana em agentes que não são nem o Estado nem o Mercado, mas na chamada Sociedade Civil. Desde já, é importante reconhecer que este limbo, “nem uma coisa, coisa nem outra”, não é recente, mas começa a ganhar novos contornos a partir da crise do capitalismo de 2008.
Se os despejos, a expulsão das classes trabalhadores das regiões onde sempre moraram, a inflação dos preços e a repressão policial nos bairros que mancham a imagem que o capital quer das cidades transformadas em mercadora, são a face mais visceral, vinha aqui hoje camaradas dar conta de uma face menos visível desta disputa. Venho falar-vos da disputa pela sociedade civil no campo do urbano e da habitação, ou seja, a entrada da lógica de mercado com a coptação da “agenda urbana participativa” pelas forças do capital.
A crise de 2008 veio evidenciar o esgotamento dos modelos via mercado de planeamento estratégico, a arquitetura do espetáculo, etc começando a emergir nos espaços de legitimação da agenda urbana ( museus, bienais, revistas, e instuições internacionais) conceituações como, urbanismo táctico, placemaking, bottom-up ao mesmo tempo ressurgem referenciais como arquitectura social, autogestão, autoconstrução assistida ou planeamento insurgente. É disto exemplo o resgate do programa SAAL nas Bienais de Lisboa.
A “adesão à agenda urbana participativa” sai do lugar contra-hegemónico e passa a ser consensual gerando uma confluência perversa. Os orçamentos participativos, que começaram por ser implementados por projetos políticos progressistas cujos destinatários eram na sua génese movimentos sociais, associações de moradores passam a ser implementados por projetos políticos neoliberais no poder local transformando-se em concursos de ideias atomizados.
A agenda participativa que originalmente emergiu de movimentos sociais e associações de moradores ente outras organizações em continuidade com a génese nos anos 60/70s da formulação do Direito à Cidade, passam a ser coptadas pelas fundações empresariais de responsabilidade social empresarial, microcrédito, negócio social, ONG´s filantrópicas de voluntariado. Estas usam um discurso e narrativas em tudo semelhantes aos processos de resistências.
Vejamos o exemplo de algumas destas:
A fundação EDP em conjunto com Impresa/SIC Esperança em 2015 como alto patrocínio da Presidência da República lança a iniciativa “por um bairro melhor”, uma coisa que muito se assemelha aos Orçamentos Participativos, mas que apenas coloca a votos dos seus clientes a mobilização voluntários para apoiar organizações da Sociedade Civil. Através do grupo Impresa saem na revista Visão 57 artigos sobre a iniciativa, com figuras tidas como do campo progressista, Ana Bacalhau, Miguel Guedes, Valter Hhugo Mãe, o verador de urbanismo Manuel Salgado ou o arquitecto Pedro Gadanho a darem o seu testemunho, com títulos como.
“Salvaguardar as pessoas para salvaguardar a vida de bairro” “Mouraria: Vizinhos do mundo” “Fazer da motivação uma arma” “Os agitadores do bairro”
“Numa das margens do Tejo há operários em mudança” e aqui vou ler um resumo:
“A iniciativa Por Um Bairro Melhor, que une a VISÃO, SIC Esperança e Comunidade EDP, fez uma viagem ao passado glorioso do antigo bairro operário da CUF, no Barreiro, que tudo oferecia aos trabalhadores da empresa. Pelo caminho, encontrou aqueles que podem ser os obreiros do seu futuro”
No final, esta iniciativa não investiu um euro em nenhuma iniciativa. Apenas mobilização de voluntários com 6 processos de puro assistencialismo. Ou seja, são 9 artigos da Visão por cada projeto de voluntariado.
O Pingo Doce tem em curso “Meu bairro feliz” tem uma iniciativa semelhante onde por cada 10€ de compras a população decide quais os projetos de organização da sociedade civil podem apoiar com cheque de 1000€. É a participação popular através do consumo, através do mercado.
Mas e a habitação, o motivo do nosso encontro, onde entra nisto?
Um dos exemplos é da entrada ONG´s na reabilitação do parque habitacional. Como foi referido aqui por camaradas, a situação da crise habitacional hoje não passa tanto pela falta de habitações, mas a falta de acesso à mesma, ao mesmo tempo de uma realidade menos mediatizada que são as cerca de 100 mil famílias a morar em condições indignas e um um grande numero de casas que precisam de obras de melhoria.
Nesta dinâmica por exemplo em programas de reabilitação de habitações em condições precárias, em que as fronteiras entre Mercado, Poder público Local e Terceiro Setor ficam nebulosas. No Porto a camara municipal implementou um programa denominado Casa reparada Vida Melhorada de melhorias habitacionais com a Junta de Freguesia do Bonfim que através da parceria com uma ONG´s chamada “Just for change” cujo trabalho voluntario vêm dos trabalhadores da EDP, em que há uma parceria com a Fundação Manuel da Mota, braço filantrópico da Mota Engil. A ONG apresenta-se com o seguinte lema: REABILITAMOS CASAS, RECONSTRUÍMOS VIDAS
Um arranjo parecido melhorias habitacionais também foi realizado em Lisboa, entre a Santa Casa da Misericórdia da Lisboa e Camara Municipal de Lisboa com outra ONG.
Mas qual o problema? É que a obra segue a logica da foto ANTES/DEPOIS. A obra é feita para essa foto circular nos materiais de publicidade de responsabilidade empresarial. A maior parte das patologias das edificações não são resolvidas e voltam a aparecer no próximo inverno.
Em resumo desta lógica de cooptação
1.A despolitização das ações/praticas dos movimentos sociais/ e associativismo
2. No marco da crise de 2008, o esvaziamento do sentido político dos termos " participação, sociedade civil e cidadania" gerando uma confluencia/consenso perverso. A agenda antes contra hegemônica, passa a ser "consensual".
2. A construção de ONG´s de orientação técnico-instrumental mais "palatáveis" na interlocução com governos e agências de financiamento.
3. O empacotamento das ações práticas técnicas-instrumentais em produtos na lógica de mercado/prestação de serviços como forma de complementar
4. Surgimento de ONG´s /negocios sociais/ empreendedorismo social de fronteiras nebulosas, com a venda dos pacotes/produtos ao poder local/regional, disputando assim fundos públicos numa lógica concorrencial de mercado.
Esta análise não deve ser interpretada como uma desistência da sociedade civil. Num contexto em que a intervenção institucional das instituições públicas está cada vez mais condicionada pela camisa de forças do neoliberalismo da união europeia, se nesta disputa deixarmos vazio este espaço de luta, as forças de mercado também entram pela casa adentro, disfarçadas de cordeiros.
É necessário o reforço da atuação dos comunistas nas organizações de bairro, associações de moradores, cooperativas de habitação ao mesmo tempo que a nível institucional devemos exigir que o Estado coloque equipas técnicas alocadas as juntas de freguesia e que fiquem subordinadas a estes processos de resistência coletiva.
Face à emergência habitacional, e ao lento de processo de construção pública, seria um avanço colocar em prática processos de expropriação de devolutos e habitações indignas que já estão construídas, com cedência de uso a ass. Moradores, cooperativas de inquilinato, regies cooperativas de gestão de um parque habitacional publico/comunistário que representasse em cada bairro 30/40% em cada bairro?
Ou seja, transformar o Estado, para quem vez de estar subordinado à lógica de mercado num Estado subordinado à lógica de resistência e alternativa comunitária. O PCP sempre este ao lado dos processos de resistência. Quando nos querem roubar a história e distorcer a nossa luta, o caminho não é desistir, é estarmos atentos aos lobos na pele de cordeiro e reforçar a nossa presença nas associações, nas cooperativas em cada bairro.
Vamos à luta camaradas