1. Falar-se em problema de habitação num país onde existem mais de quinhentos e cinquenta mil fogos para alugar ou vender é caricato. Em Portugal existe, na habitação assim como em muitas outras áreas sociais, um gravíssimo problema, decorrente claramente da origem de classe do poder e das políticas prosseguidas no sentido de acentuar as desigualdades na distribuição da riqueza e no acesso e usufruto dos bens, serviços e equipamentos.
Na sociedade capitalista, tal como em estádios anteriores de desenvolvimento, a quota-parte de riqueza que cabe aos trabalhadores é diminuta e leva a que a maioria destes seja incapaz de aceder à compra ou aluguer de um alojamento de boa qualidade, bem localizado e em zona dotada de infraestruturas e equipamentos.
E quando prossegue a política de destruição de emprego (entre 2007 e 2013 foram destruídos 702400 empregos, sendo que o ritmo de destruição aumentou desde a vinda da troica tendo sido destruídos 403600 empregos nos dois últimos anos), de precarização no trabalho e de queda do valor de custo de hora de trabalho (tristemente, Portugal lidera o abaixamento de custo de trabalho no conjunto dos países da OCDE). Quando pensões de reforma e um vasto conjunto de subsídios sociais sofrem cortes brutais, é natural que os trabalhadores vejam aumentar as dificuldades em conseguir alojamento com as condições já referidas.
2. A gravidade da situação hoje vivida radica no processo contra revolucionário acentuado com o segundo acordo de negociações com o FMI que decorreu em 1983 e 1984, na vigência do Bloco Central (PS/PSD), chefiado por Mário Soares. As imposições do FMI, obrigando a profundos cortes, no investimento e no consumo, conduziram, no imediato, ao aumento do desemprego e dos problemas sociais. A nível do investimento público foram colocadas severas restrições com o objetivo de conseguir “menos Estado”.
Estas restrições traduziram-se, no referente ao sector da habitação, por: dirigir quase exclusivamente os apoios e financiamentos públicos ao crescimento da promoção imobiliária e ao desenvolvimento do mercado de aquisição de casa própria; extinguir o Fundo de Fomento da Habitação; reduzir drasticamente a promoção e apoio aos Contratos de Desenvolvimento para Habitação; obrigar as Cooperativas de Habitação Económica a entrar num processo de desvirtuamento dos princípios cooperativos e a abandonar as intenções socializantes; alienar o parque habitacional público o mais rapidamente possível, ainda que, de início, apenas àqueles que nele habitavam.
A prossecução destas políticas por sucessivos Governos do PS, do PSD e do CDS-PP e mais tarde alicerçadas em orientações comunitárias, conduziu a um quadro de investimentos públicos na habitação, completamente afunilado no apoio à aquisição de casa própria e relegando para uma posição quase residual quer a promoção pública de habitação quer a reabilitação do parque habitacional degradado.
Com o primeiro Governo de Cavaco Silva a Administração Central começou a passar para os municípios a “responsabilidade pela resolução dos agregados familiares de baixos recursos económicos”. Apesar de desprovidos de meios e até de competências legais (a Lei de atribuição dessas competências só viria a ser promulgada mais de uma década após esta abusiva transferência), municípios houve que aceitaram fazer o frete ao Governo, até porque a muitos autarcas o “poder de dar casas” também se afigurava simpático.
Como é óbvio a partir daqui assistiu-se a uma cada vez maior desresponsabilização governamental face às carências habitacionais, chegando os Governos, este como o anterior, a prescindir de uma simples Secretaria de Estado da Habitação na sua estrutura orgânica. E muitos municípios começaram aqui um processo de endividamento, sem que tenham conseguido resolver o problema habitacional. Entretanto as populações deixaram de entender o problema da habitação como um problema do Estado e habituaram-se a procurar nas autarquias a sua resolução. Os eleitos locais passaram a ser penalizados por cumprirem programas limitados ou injustos e por respeitarem leis, duras, de arrendamento apoiado.
3. O atual Governo não se demitiu entretanto de legislar na área do arrendamento urbano.
Recorrendo a um vasto número de mentiras, o Governo e a maioria que o sustenta na Assembleia da República, aprovaram a que, nós denominamos, Lei dos Despejos.
Afirmavam que não existiam fogos para arrendar quando, de acordo com o último censo, era de 110.207 o número de fogos disponíveis no mercado, dos quais 10.903 em Lisboa e 5.430 no Porto.
Afirmavam que os valores das rendas estavam congelados quando, ao invés disso, desde 1981, vigora um regime de opção por renda livre ou condicionada e, desde 1990, a liberalização das rendas é total. E quando as rendas congeladas em 1974 haviam sido objeto de uma atualização extraordinária em 1985. E, desde então, atualizadas anualmente de acordo com índices publicados em Portaria do Governo.
Afirmavam que o aumento das rendas iria possibilitar a recuperação das zonas antigas da generalidade das cidades e vilas. Como se a degradação existente não tivesse causas muito mais profundas, radicando essencialmente num conjunto de políticas de solos que privilegiou a expansão urbana para as periferias, proporcionando à banca, lucros especulativos assentes sobretudo nas mais-valias decorrentes da transformação de solo rural em solo urbano. E omitindo as muitas obras de restauro, muitas vezes de melhoramento significativo, realizadas por um número significativo de inquilinos nos fogos arrendados.
Caricatamente chegaram a afirmar, pela boca da Ministra, que a nova Lei iria reduzir o endividamento das famílias e possibilitar uma maior mobilidade. De facto a demagogia ignora limites.
Mas como é facilitado o despejo? Desde logo, pela criação de um procedimento extrajudicial capaz de conduzir à desocupação do imóvel de uma forma célere e eficaz, num prazo de três meses. Medida que é acompanhada pela institucionalização de um serviço, intitulado Balcão Nacional de Arrendamento, destinado a “assegurar a tramitação do procedimento especial de despejo” e onde apenas é obrigatória a constituição de advogado para dedução de oposição ao requerimento de despejo. Como é óbvio, a não obrigatoriedade de constituição de mandatário judicial, no caso do requerente (proprietário), favorece-o unilateralmente no que toca às despesas com o acesso à justiça.
Verifica-se ainda uma ampliação das possibilidades de denúncia dos contratos, por parte dos proprietários seja para efeitos de habitação própria dos senhorios, seja para a realização de obras, sendo que o proprietário pode em qualquer altura comunicar ao inquilino que necessita de fazer obras profundas que obrigam à desocupação do local arrendado. Ao mesmo tempo baixa drasticamente o valor das indemnizações devidas em caso de despejo.
Ainda grave é o facto de a Lei ser aplicada ao arrendamento não habitacional, às atividades empresariais, sociais ou culturais. Ou seja, a pequena mercearia de bairro, a padaria, o café, o pequeno restaurante familiar, que hoje dão vida aos bairros antigos das cidades e cujos contratos de arrendamento se prolongam há décadas, são diretamente afetados e correm sérios riscos de encerrar. Só no sector da restauração e similares, de acordo com as estatísticas das empresas de 2009, existiam neste ano 77 456 microempresas, que empregavam mais de 148 mil trabalhadores.
E também um vasto conjunto de coletividades desportivas, culturais e de apoio social, essenciais no tecido histórico da cidade, correm o mesmo risco de ser despejadas.
Hoje, com a Lei dos Despejos em vigor, verifica-se já um considerável número de despejos não habitacionais com o consequente encerramento de estabelecimentos e despedimento daqueles que lá trabalhavam. Notícias recentes apontavam, para a cidade do Porto, o encerramento diário de vinte estabelecimentos devido a despejo provocado por necessidade de obras profundas.
Hoje, verifica-se também que muitos senhorios, pequenos proprietários, abdicam de aplicar a Lei, preferindo manter os fogos arrendados em vez de despejar os inquilinos e ficarem com os fogos por arrendar. Está assim provado que a defesa dos pequenos e, até, médios proprietários, tão propalada pelo Governo, não passou de mera demagogia. A Lei serve à Banca e aos seus Fundos Imobiliários que a aproveita para despejar e manter os fogos desocupados à espera de melhor momento para realizarem operações de renovação urbana. Fundos imobiliários que, inclusive, estão livres do pagamento do IMI.
4. Mas também os que são inquilinos do parque habitacional público sofrem o brutal peso do custo da habitação. Vivendo, muitas vezes, em fogos degradados e mal servidos quer de equipamentos quer de infraestruturas, têm visto, nos últimos meses, o valor da sua renda ser multiplicado por cem ou mesmo mais. Tudo porque o IHRU, Instituto público para a habitação e a reabilitação urbana, durante mais de uma década, não procedeu a qualquer ajustamento das rendas, como aliás não procedeu a qualquer intervenção ou obra nos bairros, vindo agora corrigir as rendas “á bruta” e de acordo com uma Lei injusta.
Refira-se que a Lei da renda apoiada considera para o cálculo das rendas o valor ilíquido dos rendimentos, a totalidade de prémios e subsídios de carácter não permanente e o valor total de pensões de reforma, velhice, invalidez e sobrevivência, ainda que estas tenham um valor diminuto.
O PCP tem apresentado, na Assembleia da República, Projetos de Lei visando corrigir os aspetos antes apontados e limitar o esforço da renda a pagar a quinze por cento do rendimento do agregado, sempre que este não exceda o valor correspondente a dois salários mínimos nacionais. PS, PSD e CDS-PP têm inviabilizado a aprovação desses Projetos, tal como inviabilizaram a aprovação de um Projeto propondo a suspensão, pelo prazo de dois anos, dos aumentos das rendas das habitações sociais do Estado.
5. Em 2012 o Governo lançou com pompa um fundo imobiliário denominado de Mercado Social de Arrendamento. Propondo-se colocar no mercado fogos com uma renda trinta por cento inferior aos valores médios praticados em mercado livre, valor de difícil conhecimento dada a desregulamentação do mercado, o programa nada mais pretende do que libertar a Banca de milhares de fogos que “engordam” o seu passivo. Com a passagem desses fogos para um Fundo Imobiliário, o valor destes passa a constituir ativo.
Além disso a integração neste Fundo dos fogos do IHRU e do IGFSS parece indiciar que fogos até agora fazendo parte do parque habitacional de renda social ou de renda apoiada serão passados ao mercado de renda livre, ainda que reduzida em 30% dos valores de mercado. Esta medida, mesmo que seja aplicada apenas quando os fogos vagarem, terá a médio e a longo prazo consequências dramáticas para milhares de famílias de menores recursos.
Este é mais um programa de “faz de conta”, não resolve problemas de habitação e permite apenas que a Banca liberte os seus passivos.
E, já em 2013, lançou um programa dito de apoio ao arrendamento e à reabilitação urbana, o chamado Reabilitar para Arrendar. Mais uma vez são os municípios, sem meios e com a ameaça de um novo regime de finanças locais que os estrangulará financeiramente, que são chamados a intervir. É aberta uma linha de crédito que permite financiar cinquenta por cento da intervenção e, pela primeira vez em programas de reabilitação, não existe qualquer parcela de incentivo, através de significativa parte do investimento a fundo perdido.
Este é um programa que o Governo insere no apoio ao sector da construção civil. Diz apoiar a reabilitação urbana mas, de facto, não dá um cêntimo de apoio à mesma. Limita-se a vender financiamento.
6. E, é neste país que estamos. Um país onde, apesar do excedente de cerca de quinhentos e cinquenta mil fogos, se continuam a verificar pesadas carências habitacionais, na ordem dos cento e oitenta mil fogos, naturalmente destinados a famílias de mais fracos recursos. Um país onde, em nome da reabilitação urbana, as únicas propostas conhecidas se destinam ao aumento das rendas e à simplificação verdadeiramente criminosa dos despejos. Um país onde mais de duzentas e quarenta mil famílias perderam a habitação em favor da banca.
Como é óbvio é preciso lutar contra este estado de coisas. É preciso colocar de novo na ordem do dia a luta pelo direito à habitação. É preciso lutar para que o Estado se reposicione como mais e melhor Estado, na defesa e ao serviço daqueles que menos têm e mais precisam. È preciso e urgente derrotar este Governo e as políticas de direita.