Exposição de motivos
Em resultado de uma longa luta das mulheres, do PCP e das organizações de defesa dos direitos da mulher, a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi consagrada na lei, após a realização de referendo e com aprovação da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril.
Esta alteração teve ganhos extraordinários na saúde da mulher, garantindo os seus direitos sexuais e reprodutivos; acabou com as graves infeções provocadas pelo aborto clandestino, muitas vezes causa de morte pela falta de condições em que era praticado, e assim preservou a fertilidade das mulheres, tantas vezes antes comprometida; na capacidade de decidir em segurança e no reconhecimento do direito a uma maternidade feliz, significou e significa um valioso contributo para a emancipação da mulher.
Não obstante esta importante conquista, muitas mulheres têm sido confrontadas com obstáculos – que se tornam em impedimentos – no acesso à consulta de IVG, no quadro do SNS, em todo o território nacional, que derivam de dificuldades estruturais do SNS, não garantindo nem assegurando, em tempo útil a informação, a liberdade e a privacidade a todas as mulheres que decidam recorrer à IVG.
As dificuldades de articulação e disponibilização entre os diferentes níveis de cuidados do SNS, a escassez de médicos especialistas, a que acresce o número significativo de objetores de consciência reais ou não, entre outros, passaram a ser problemas estruturais, consequências de políticas de desinvestimento e de desvalorização dos seus profissionais, da responsabilidade dos sucessivos governos PS e do PSD e CDS/PP.
Se em matéria legislativa e regulamentar, a IVG por opção da mulher nas primeiras 10 semanas de gravidez é de acesso gratuito e universal, em matéria concreta este acesso verifica-se condicionado em diversas situações por falta de disponibilidade do serviço, seja por falta de profissionais, seja por desarticulação, ausência de procedimentos internos ou por falta de vontade das entidades prestadoras de saúde em assegurar a sua realização dentro dos parâmetros que a lei determina.
O Relatório sobre Interrupção Voluntária da Gravidez de 2018-2022 (ERS) é inequívoco e corrobora os obstáculos reais tendo inclusive instaurado um processo de monitorização relativamente aos constrangimentos responsáveis, no essencial, pelos seguintes problemas: desarticulação, maioritariamente fruto da ausência de protocolos de articulação entre unidades de saúde de cuidados primários e unidade hospitalar de referência; apenas 81 profissionais de ginecologia/obstetrícia realizam a IVG e, relativamente a estes, a inexistência de um registo completo e atualizado dos profissionais objetores de consciência; e, consequente diminuição do número de entidades do SNS que realizam a IVG; ou ainda diferentes interpretações relativamente à lei e dos procedimentos nomeadamente quanto à exigência de declaração para que uma mulher possa ser atendida em unidade de saúde fora da sua área de residência, dificultando o atendimento apesar de, segundo a lei ser permitida a realização de IVG a mulheres grávidas de fora da área de influência da unidade de saúde onde pretendem interromper a gravidez.
Sem a resolução destes problemas estruturais, a lei não se cumpre na vida das mulheres, ficando por resolver o problema essencial: garantir o direito, em igualdade, a todas as mulheres que queiram recorrer a uma IVG, através do SNS. Por outro lado, abre caminho para a privatização da saúde e a perspetiva lucrativa da saúde, verificado quer pelo crescente número de casos encaminhados para unidades privadas, quer pelas diferenças nos métodos quanto à prática de IVG a pedido da mulher.
Nos estabelecimentos oficiais do SNS a grande maioria das IVG foi realizada com recurso ao método medicamentoso (99%), enquanto nas unidades privadas a quase totalidade das IVG foi realizada com recurso ao método cirúrgico (95%). A opção das unidades privadas não tem como preocupação o bem-estar, mas os custos a imputar ao SNS.
De acordo com o relatório já referido, em matéria dos cuidados de saúde primários, dos 55 ACES, apenas cinco asseguram a realização da consulta prévia e dos estabelecimentos do SNS existentes (42 entidades) apenas 27 realizam qualquer procedimento relacionado com IVG. Dados que confirmam que não há acesso à IVG, em todo o território nacional, através do SNS devido a problemas de subfinanciamento, de recursos humanos e ainda por opções que conduziram ao encerramento de serviços e especialidades um pouco por todo o país.
Para que as dificuldades sentidas sejam ultrapassadas e corrigidos os desvios ao cumprimento da lei, é fundamental que se conheça, em tempo e com rigor, as situações que se verificam em matéria de acesso à IVG, em cada uma das unidades de saúde integrantes do SNS e que face aos cenários concretos sejam tomadas as medidas adequadas.
Para tal é fundamental assegurar a realização dos registos de contacto de mulheres que pretendem recorrer à IVG por sua opção nas diversas unidades de saúde do SNS, que seja registado qual o encaminhamento dado a cada uma das situações, bem como os resultados desse mesmo encaminhamento.
A publicitação destes dados permitirá realizar o acompanhamento das diferentes situações, proceder à avaliação do acesso das utentes à IVG e monitorizar o nível de serviço e a qualidade dos cuidados prestados nesta matéria, elementos que são fundamentais para se poder atuar e corrigir as situações em que o cumprimento da lei é posto em causa.
Aos hospitais em que não seja assegurado o recurso à consulta de IVG, deve caber obrigatoriamente informar da lista dos locais onde o SNS presta essas consultas, ou nos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS), e fazer a respetiva marcação tendo em conta o tempo de gestação da requerente, respeitando a escolha da mulher.
Nos casos em que os estabelecimentos de saúde do SNS para a realização da IVG por opção da mulher não disponibilizem o seu acesso, deve ser garantido o transporte gratuito das utentes que a estes recorram, para o estabelecimento de saúde público para o qual estas utentes forem referenciadas.
Importa ainda acrescentar que às utentes que realizem IVG por sua opção, deve ser garantido, se essa for a vontade da utente, o seu encaminhamento para acompanhamento psicológico, pelo menos durante o ano seguinte à realização da IVG.
O PCP, que muito contribuiu para a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, considera que os processos que ponham em causa o total e cabal cumprimento da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, constituem profundos retrocessos no que toca ao direito da livre opção das mulheres.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte
Resolução
A Assembleia da República, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, resolve recomendar ao Governo que adote um conjunto de medidas para garantir e reforçar os direitos das mulheres no quadro da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), designadamente:
- Assegure o estabelecimento de protocolos de articulação entre os cuidados de saúde primários e as unidades hospitalares, incluindo unidades privadas protocoladas, no tocante aos procedimentos a desenvolver, mesmo quando a unidade de saúde de referência não realize procedimentos relativos à IVG, e a sua permanente atualização junto das unidades que prestam estes cuidados, em claro respeito pelo estipulado na Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, salvaguardando a garantia de acesso à IVG;
- Assegure apoio psicológico caso a mulher assim o requeira, incluindo as unidades hospitalares ou de cuidados de saúde primários, mesmo que não tenham consultas de IVG por objeção de consciência, até 1 ano após a realização de IVG;
- Dê formação e crie um manual de procedimentos e de boas práticas na área da IVG, quer no plano do atendimento administrativo, quer no âmbito de procedimentos em matéria de IVG de modo que todos os médicos, enfermeiros e assistentes técnicos, estejam preparados para assegurar o cumprimento da lei, em respeito pela reserva da vida privada e o direito de acesso;
- Quando os estabelecimentos de saúde oficiais para a realização da IVG por opção das mulheres, não assegurem o acesso a qualquer procedimento em matéria de IVG, garanta o encaminhamento e agendamento junto de unidade oficial que realize procedimentos de IVG, possibilitando a escolha da unidade pela mulher, caso assim o deseje;
- Garanta que o acesso à IVG realizadas em unidades de saúde privadas terá de ser solicitado por unidade de saúde do SNS, de acordo com os procedimentos de articulação definidos;
- No caso de o hospital não ter consultas de IVG, por objeção de consciência, a unidade oficial a que a requerente tiver de recorrer em alternativa, se localizar fora da área de residência da utente, e se esta não tiver transporte próprio, assegure a gratuitidade do transporte das utentes;
- Proceda à centralização, tratamento e atualização do número de profissionais de saúde que apresentaram a declaração de objetores de consciência, assim como das instituições de saúde a que pertencem, através do envio pelas unidades de saúde para a DGS da lista de objetores de consciência, de acordo
- Proceda igualmente à centralização das declarações dos profissionais de saúde objetores de consciência do setor privado, cuja listagem deve ser enviada à DGS.
- Introduza no portal da transparência, a informação relativa aos procedimentos de interrupção voluntária da gravidez e disponibilize os dados, com periodicidade semestral sobre os seguintes aspetos, discriminados por estabelecimentos de saúde oficial, ou oficialmente reconhecidos, para a realização da Interrupção Voluntária da Gravidez por opção da mulher:
- O número de utentes que solicitem a realização de IVG por opção da mulher e tipologia de encaminhamento dado;
- O número de utentes que realizaram a IVG por opção da mulher, discriminado pelo tipo de procedimento utilizado (cirúrgico com anestesia local, cirúrgico com anestesia geral, medicamentoso ou outro, número e tipo de complicações);
- Os tempos médios decorridos nas diversas fases do processo de IVG, o número de situações em que houve referenciação para outra unidade de saúde, o número de reclamações relativas à dificuldade de acesso ao serviço;
- Número de ocorrências em que não foram cumpridos os prazos regulamentares do processo para a realização da IVG por opção da mulher;
- Número de ocorrências em que o incumprimento de prazos inviabilizou a realização da IVG por opção da mulher;
- Número de profissionais de saúde objetores de consciência, por profissão.