Muito obrigado por me darem a oportunidade de participar neste vosso encontro.
Este seminário propõe-se fazer uma reflexão sobre a forma como a designada “crise na União Europeia” se traduz numa fortíssima ofensiva contra os direitos individuais e coletivos, as liberdades e a própria democracia.
Neste contexto, parece útil recordar alguns traços centrais que esta ofensiva reveste em Portugal através do designado Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), vulgarmente conhecido por Memorando da Troika ou por Pacto de Agressão, programa este patrocinado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Comissão Europeia (CE) e pelo Banco Central Europeu, isto é, pela Troika externa.
O Memorando da Troika integra em Portugal três pilares: a designada estabilização do sistema financeiro; o controlo das contas públicas; e, finalmente, as reformas estruturais promotoras da competitividade da economia nacional.
No primeiro pilar deste pacto de agressão, [a estabilização do sistema financeiro], transferem-se recursos públicos para a banca, financiando diretamente as instituições de crédito para que estas possam assim atingir rácios de funcionamento que, durante anos de gestão danosa ou irresponsável, não acautelaram pois o que contava era distribuir milhares de milhões de euros de lucros pelos acionistas privados. Acionistas estes que, agora, se recusam a recapitalizar os próprios bancos e, por isso, o Estado lhes entrega milhões de euros de financiamento público para tapar os buracos criados. [recordo que dos 78 mil milhões de euros de empréstimo global, previstos no Memorando da Troika para Portugal, 12 mil milhões, ou seja, 16% do total está exclusivamente reservado para socorrer os acionistas da banca privada]. Mais: para que esta operação de salvação do sistema financeiro privado não se confunda com qualquer intervenção estatal, a recapitalização de instituições privadas de crédito processa-se sem que a gestão privada seja limitada ou condicionada, mesmo quando o nível de capitalização pública representa uma parte substancial do valor atual dos bancos recapitalizados.
E já agora uma nota adicional bem caraterizadora deste Memorando da Troika: o banco público, a Caixa Geral de Depósitos, que andou entre 2008 e 2012 a tapar um buraco colossal, (de vários milhares de milhões de euros), resultado de uma enorme fraude ocorrida num banco privado gerido por ex-personalidades de topo do PSD e dos governos do atual Presidente da República, o banco público, dizia, está impedido de aceder a este envelope financeiro destinado pela Troika apenas ao sistema financeiro privado português.
O segundo pilar do Memorando da Troika concretiza um vasto programa de austeridade para os trabalhadores e o povo com o objetivo de reduzir o défice orçamental e a dívida pública.
É hoje cada vez mais claro que este pilar do programa – aumentos de impostos sobre quem trabalha, roubos de salários, reformas e pensões, cortes cegos e profundos nas prestações sociais, redução e limitação temporal do apoio no desemprego, eliminação quase completa do investimento púbico, degradação ou encerramento de serviços públicos, redução drástica das despesas com educação e saúde, um vasto programa de privatizações de empresas públicas e estratégicas transferindo recursos nacionais para mãos estrangeiras e investimento capitalista de natureza parasita –, este pilar do memorando, dizia, não consegue sequer garantir a concretização dos objetivos que servem de pretexto para quem aceita aplicá-lo, isto é, não consegue o equilibrar as contas públicas e diminuir e pagar a dívida.
O resultado da execução orçamental e a própria avaliação do Memorando feita pela Troika este mês, mostram que o défice orçamental pode afinal a vir a ser superior a 6% (em vez dos 4,5% anunciados) e a trajetória da dívida pode passar dos 120% do PIB, confirmando tudo o que sempre dissemos sobre a forma de equilibrar as contas públicas: ela só é possível de forma sustentável através do crescimento económico, através do investimento reprodutivo, do combate ao desemprego, da dinamização do mercado interno e, consequentemente, do aumento natural de receitas e contração de despesas públicas.
Temos, porém, de ser claros: os resultados orçamentais destes programas de ingerência centrados em fatores recessivos, são idênticos e igualmente desastrosos em todos os países cujos governos se vergam à sua aplicação. Só que, é também cada vez mais evidente que os objetivos destes Memorandos – pelo menos isso é bem vivível em Portugal – não pretendem efetivamente atingir o equilíbrio orçamental que sabem ser impossível obter desta forma. [Se assim fosse, e face ao desastre económico e social que produzem, emendariam a mão e mudariam radicalmente o caminho para equilibrar as contas, isto é, mudariam totalmente as políticas; no entanto, o que propõem a cada novo falhanço, é o reforço da mesma austeridade para o povo, dos mesmos fatores recessivos e da mesma rota de dominação e de crescente dependência para os Estados].
Os objetivos centrais do Memorando da Troika não são, portanto, a mera obtenção do equilíbrio das contas. Eles revelam-se melhor ainda no seu terceiro pilar, respeitante às designadas reformas estruturais para o reforço da competitividade da economia portuguesa. Com este pilar pretendem-se limitar e destruir direitos laborais e sociais conquistados depois do 25 de Abril de 1974, fazendo em muitos casos tábua rasa de princípios integrados na Constituição da República.
Aumentar a competitividade da economia nacional significa para a Troika, para além da redução direta dos salários, aumentar o horário de trabalho, eliminar feriados, diminuir dias férias, rasgar a contratação coletiva, precarizar as relações de trabalho, promover o desemprego com o embaratecimento generalizado dos custos para efetuar despedimentos sem justa causa, aumentar a idade da reforma e reduzir o cálculo dos respetivos valores. Isto é, a conceção de competitividade que a Troika quer impor através do seu Memorando é a de um país que compete – como na Ásia ou na África – à custa dos baixos custos do fator trabalho, da degradação da proteção social e do acesso a cuidados de saúde, da deterioração da formação e da educação dos trabalhadores e do povo.
Como se vê, os objetivos centrais deste pacto de agressão não são equilibrar contas públicas. Sempre foram outros os objetivos das troikas [externa e interna, registe-se], o do esbulho dos recursos públicos e sua transferência para o sistema financeiro e a especulação, o da privatização de empresas públicas e de setores estratégicos, o do reforço e concentração da riqueza à custa do roubo de salários e pensões, o do empobrecimento generalizado dos trabalhadores e do povo, o da destruição de direitos laborais e sociais, o do aumento da exploração dos trabalhadores, o da destruição de serviços públicos e da negação do acesso da população a questões essenciais como a educação e a saúde.
Concluindo: o pacto de agressão imposto a Portugal tem um ADN profundamente neoliberal e traduz bem a tentativa do reforço das condições de exploração capitalista em Portugal.
A análise das consequências da sua aplicação, seja na sua globalidade, seja no detalhe das diferentes medidas de política em curso, mostra bem o que se pretende: aumentar os níveis de exploração, reforçar a transferência de recursos para o grande capital e fomentar a concentração capitalista. Mas para que isso seja mais facilmente possível há que eliminar ou destruir direitos para permitir uma concorrência global com zonas económicas onde eles não existem. Daí que, no mesmíssimo plano de prioridades, o pacto de agressão imposto a Portugal vise também a destruição de direitos laborais e sociais, individuais e coletivos, destruir serviços públicos e eliminar o acesso a bens de natureza social, promover uma regressão civilizacional que é totalmente incompatível com a dignidade humana e com o código de direitos humanos de uma sociedade que se diz democrática, mas que verdadeiramente o parece cada vez menos.