Projecto de Lei N.º 355/XII/2.ª

Cria um Programa Extraordinário de Combate à Pobreza Infantil e reforça a proteção dos Direitos das Crianças e Jovens

Cria um Programa Extraordinário de Combate à Pobreza Infantil e reforça a proteção dos Direitos das Crianças e Jovens

Em Portugal, só a partir da Revolução de Abril de 1974, com a conquista e consagração legal de um sólido corpo de direitos económicos e sociais, teve início o caminho de construção e garantia dos direitos das crianças e jovens, nas suas múltiplas dimensões e de forma transversal.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança foi proclamada pela Organização das Nações Unidas a 20 de Setembro de 1959, e passados 20 anos foi celebrado o Ano Internacional da Criança. Contudo, só em 1989, com a adoção por parte da ONU da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ratificada por Portugal no ano seguinte), é que a Criança passou a ser considerada como cidadão dotado de capacidade para ser titular de direitos.
Conforme consagrado na Constituição da República Portuguesa (Artigo 69.º), cabe ao Estado e à sociedade proteger as crianças “com vista ao seu desenvolvimento integral”, designadamente contra todas “as formas de abandono, de discriminação, e de opressão”.
A todas as crianças deve ser assegurado, o direito à proteção e a cuidados especiais, o direito ao amor e ao afeto, ao respeito pela sua identidade própria, o direito à diferença e à dignidade social, o direito a serem desejadas, à integridade física, a uma alimentação adequada, ao vestuário, à habitação, à saúde, à segurança, à instrução e à educação.
Pese embora a vigência de direitos fundamentais em forma de lei, a vida quotidiana de milhares de crianças no nosso país é hoje marcada por múltiplas formas negação de violência e discriminação.
A pobreza infantil tem especificidades próprias quanto à sua caracterização e aos seus contornos materiais. Expressa-se em dimensões e indicadores que não se reportam a outras camadas etárias, tais como as taxas de abandono e insucesso escolar ou a prevalência de determinado tipo de vulnerabilidades (maus tratos, abusos e situações de exploração). Sobretudo, a pobreza das crianças tem efeitos e implicações individuais e geracionais que são mais duramente repercussivos e continuados que noutras idades. Um dos traços que melhor caracteriza a pobreza infantil é, sobretudo, a associação entre a escassez de recursos que define a pobreza e a dependência que caracteriza a infância.
Em Portugal, as causas estruturais da pobreza têm sido profundamente agravadas com mais de 36 anos de políticas de direita, o processo de integração capitalista na União Europeia, a natureza do capitalismo e da crise, e a aplicação das medidas do Pacto de Agressão da Troika.
De acordo com o Relatório «Medir a Pobreza Infantil» apresentado pela Unicef em 2012, 27% das crianças portuguesas vivem em situação de carência económica, percentagem que se agrava para 46,5% no caso das crianças que vivem em agregados monoparentais e mais ainda em famílias cujos pais estão desempregados em que o índice de carência atinge os 73,6%. O Relatório conclui ainda que 14,7% das crianças portuguesas até aos 16 anos vivem abaixo do limiar de pobreza, isto é em lares cujos rendimentos anuais por adulto estão abaixo da mediana da distribuição dos rendimentos (cerca de €400/mês).

Note-se, porém, que este Relatório foi construído com base em indicadores de 2009, portanto anteriores ao agravamento da situação de crise, à aplicação do Pacto da Troika e ao agravamento das políticas de austeridade, o que significa que estes dados pecam por defeito.

Efetivamente, tudo indica que neste momento a situação da pobreza infantil é muito mais grave e, apesar de ainda não existirem dados estatísticos atualizados que a permitam medir, os sinais vindos da sociedade são muito preocupantes.

Em Novembro de 2012, o Secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar reconhecia haver 13 000 crianças sinalizadas que chegavam com fome às escolas. A comunicação social noticiou vários casos de crianças e jovens a desmaiarem em plena sala de aula, por falta de alimentação, e também situações em que as direções das escolas suspenderam o fornecimento de refeições a crianças por falta de pagamento por parte das famílias. As cantinas escolares passaram a estar abertas em períodos de férias letivas – e mais recentemente algumas também ao fim de semana – por se saber que muitas crianças comem a sua única refeição do dia na escola.

Também na área da saúde se poderão verificar retrocessos, com repercussões graves na saúde infantil, já que segundo vários indicadores, o acesso à saúde em geral está ser dificultado, pelo aumento das taxas moderadoras e redução das situações de isenção e pelo aumento dos preços dos medicamentos.
Cada vez mais famílias têm dificuldades em cumprir as necessidades básicas das crianças com alimentação, vestuário, habitação, material escolar e cuidados de saúde. Há fome na escola, porque há fome em casa. Falências e encerramento de empresas, salários em atraso, desemprego, cortes nos apoios sociais, no subsídio de desemprego, abono de família, rendimento social de inserção, aumento do custo de vida. É uma espiral de empobrecimento que arrasa a vida de largos milhares de famílias no nosso país.
A Sociedade Portuguesa de Pediatria denunciou recentemente que têm surgido nos hospitais casos que não se registavam há 20 anos; mães que acrescentam água ao leite artificial, ou dão leite de vaca a bebés de meses; crianças que na segunda-feira nos refeitórios escolares repetem tudo o que puderem; pais que não têm condições de acompanhar os filhos no internamento hospitalar.
A Rede Europeia Anti-Pobreza alerta para consequências do desemprego dos pais na vida das crianças: situações de elevada instabilidade emocional e psicológica que influenciam as vivências das crianças e provoca em muitos casos problemas de aprendizagem, de inserção no meio escolar, de discriminação, violência.
Em Portugal, a taxa de risco de pobreza é superior à de alguns países com rendimentos mais baixos, mesmo após a transferência dos valores das prestações sociais, o que torna claro a necessidade efetiva de reforço dos mecanismos sociais de combate à pobreza e à exclusão social. Os cortes nas prestações sociais são ainda mais injustos e chocantes, ao mesmo tempo que o Governo disponibiliza 12 mil milhões de euros para os grupos económicos e financeiros.
Para além disto, o aumento do risco de pobreza está em estreita relação com a destruição, em curso, de importantes funções sociais do Estado. Como é sabido, as transferências sociais têm um importante impacto positivo na redução da pobreza e, assim sendo, a actual tendência no sentido da redução destas transferências aponta para um previsível aumento da pobreza das famílias e consequentemente da pobreza infantil.
Com efeito, a redução generalizada das prestações sociais, em especial daquelas com maior incidência nas famílias, como sejam o abono de família e o apoio da ação social escolar, mas também das prestações substitutivas de rendimentos de trabalho perdidos, como as prestações de desemprego, as atribuídas em situação de maior carência, como o rendimento social de inserção, estão a contribuir fortemente para que, na grave situação de crise económica e social em que nos encontramos, com elevadas taxas de desemprego, aumentos brutais de impostos e do preço dos bens essenciais, aliados a uma redução generalizada dos salários, se caminhe para um empobrecimento generalizado da população, o que significa que as pessoas mais vulneráveis na sociedade, como é o caso das crianças, fiquem numa situação ainda mais difícil.
O Partido Comunista Português realizou no passado mês de Janeiro uma audição parlamentar sobre o flagelo da pobreza infantil, onde diversas de organizações, associações, entidades e personalidades deram um contributo precioso para a análise da pobreza infantil e ajudaram a apontar saídas efetivas para este flagelo.

Reconhecemos que a realidade atual exige uma resposta efetiva a situações extremas de carência, mas não pode ser orientada por princípios assistencialistas contrários à necessidade de erradicação profunda da pobreza e da garantia da emancipação individual e coletiva dos cidadãos.

Aliás, defendemos que o combate à pobreza e à exclusão social é inseparável de um caminho mais geral de crescimento económico, valorização do trabalho e dos trabalhadores, de uma política de aumento dos salários e das pensões, de maior justiça na distribuição da riqueza, elevação das condições de vida do povo; a aposta num sistema público de segurança social forte, num serviço nacional de saúde público, universal e gratuito, e numa escola pública e democrática que garanta a igualdade de direitos e de oportunidades para todos.
Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei cria o “Programa Extraordinário de Combate à Pobreza Infantil”, adiante designado abreviadamente por Programa Extraordinário.
Artigo 2.º
Natureza
O Programa Extraordinário integra-se no quadro do aprofundamento das políticas de promoção dos direitos da Criança e da cidadania plena, através do qual se materializam políticas e ação extraordinária e de natureza integrada para garantir a inclusão social mais imediata e o superior interesse da Criança.

Artigo 3.º
Objetivos
O Programa Extraordinário concretizará os seguintes objetivos:
a) Desenvolver políticas integradas visando a garantia do bem-estar social da Criança;
b) Definir metas, instrumentos, dispositivos e ações específicas direcionadas para a inclusão social da Criança;
c) Intervir nos diversos planos em que se decide a inclusão social da Criança, como seja os contextos familiares, os espaços urbanos, a educação e a promoção da saúde, os espaços-tempos de lazer e no acesso à cultura e à informação;
d) Prevenir as diferentes formas de negligências e de maus-tratos enquanto fatores decisivos nos processos da exclusão social da Criança;
e) Orientar planos de informação, planeamento, adoção de medidas específicas para a infância e controlo de execução e avaliação de programas de ação prioritária;
f) Perspetivar políticas redistributivas do rendimento e de desenvolvimento humano e social da Criança;
g) Orientar para a mudança das condições estruturais que produzem a exclusão social e a pobreza da Criança;
h) Apoiar no acesso da Criança a creches e educação pré-escolar, no cumprimento da escolaridade obrigatória em condições de qualidade e igualdade de oportunidades;
i) Promover à Criança melhores condições habitacionais, possibilidades de mobilidade, integração institucional e programação de atividades que lhes sejam destinadas.

Artigo 4.º
Execução
A direção e execução do Programa Extraordinário cabem ao Ministério da Solidariedade e Segurança Social, em ligação com o Ministério da Educação e Ciência e Ministério da Saúde.

Artigo 5.º
Meios financeiros
O Orçamento do Estado garante, anualmente, as verbas necessárias à programação e execução do Programa Extraordinário.

Artigo 6.º
Vigência
Os prazos de vigência do Programa Extraordinário, em função da evolução da realidade económica e social, serão determinados pelo Responsável da tutela.

Artigo 7.º
Dever de fiscalização
No final de cada ano de vigência do Programa Extraordinário, o Governo envia à Assembleia da República um relatório avaliativo sobre a implementação dos objetivos definidos pelo presente diploma.

Artigo 8.º
Regulamentação
A presente lei será objeto de regulamentação num prazo máximo de 90 dias após a sua publicação.

Artigo 9.º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor após a publicação do Orçamento do Estado subsequente à sua publicação.

Assembleia da República,em 15 de Fevereiro de 2013

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