Os sinos do mainstream tocaram a rebate: Portugal é ultrapassado pela Roménia em 2024 no PIB per capita, lançou o Expresso a 24 de Novembro, com base em previsões da Comissão Europeia (em paridade de poder de compra). O presidente da CIP vincou o alarme: «os países do antigo bloco de Leste têm vindo (...) a ultrapassar Portugal». A questão, explicou António Saraiva, é que a generalidade destes países «tem sabido aproveitar os apoios comunitários melhor». A solução preconizada é, por exemplo, «baixar impostos» (seguindo o exemplo “de pelotão da frente” da Roménia e países congéneres do Leste na matéria) e “desburocratizar” – minguando ainda mais o papel do estado na economia. Resumindo: mais celeridade no acesso dos grandes grupos económicos aos fundos do PRR, mais benesses fiscais e liberalização abrangente... As receitas são conhecidas e têm conduzido Portugal a um caminho de efectiva estagnação e distanciamento da média da União Europeia em rendimentos e produto e à crescente perda de soberania face à UE e aos interesses das grandes potências.
Atente-se que, diligentemente, no ramalhete de virtudes do “modelo” agora encarnado pela Roménia está omissa a referência à manutenção da sua moeda nacional e soberania monetária, apesar de fortemente coarctada pela imposição dos critérios de convergência do caminho de adesão do país balcânico ao Euro e o eixo das políticas implementadas desde os anos 90, de privatização de sectores estratégicos e abertura ao capital estrangeiro.
Perante o terreno minado no plano ideológico e comunicacional, impõe-se desmistificar o elogio à pretensa vitalidade económica dos antigos países do bloco socialista integrados na UE.
À partida, note-se que os anúncios da ultrapassagem da Roménia em 2024 podem ser exagerados. Previsões recentes do FMI admitem que, afinal, Portugal tenha um PIB per capita superior ao romeno pelo menos até 2027. Dados da UE mostram que a diferença da trajectória do PIB do nosso país com os países de leste em geral tem vindo a atenuar-se. Portugal poderá, inclusive, ultrapassar no ano em curso em termos per capita (PPC) a Polónia.
Mas peguemos no caso ilustrativo da Roménia.
O país ostentou no período de 2007 a 2019 a média anual mais elevada de crescimento do PIB da UE (4.4%), e apesar de se ter aproximado da média da UE, permanece na cauda em termos de PIB per capita.
Há que atender que, nas últimas décadas, a Roménia ocupa uma das posições cimeiras na região como destino do investimento directo estrangeiro. Parte substancial do crescimento foi impulsionado pelo investimento estrangeiro canalizado para o sector exportador (sector que em 2021 representou 40% do PIB da Roménia, sendo que na generalidade dos países do leste o seu peso supera os níveis dos países capitalistas desenvolvidos da Europa Ocidental) e pelo elevado fluxo de fundos europeus. O que segurou um nível significativo do investimento, apesar dos fracos níveis do investimento público.
O elogiado modelo de “tigre económico” da Roménia assenta em salários muito baixos, na proximidade geográfica com o mercado alemão, principal destino das exportações (e importações) romenas, e na dependência da procura externa. A significativa desvalorização da moeda nacional, o leu, favoreceu o incremento do sector virado para a exportação, apêndice do capital estrangeiro.
Debaixo do verniz dos indicadores relativos de sucesso do PIB da Roménia, esconde-se uma realidade de sérios atrasos, retrocessos e desequilíbrios no plano do desenvolvimento social e económico. A sua condição periférica, subdesenvolvida e dependente no panorama económico europeu não foi alterada, pelo contrário, apesar dos clusters de excelência tecnológica nas mãos das multinacionais.
Em 30 anos, com o início da “transição capitalista”, a estrutura do PIB alterou-se significativamente. Teve lugar um processo de desindustrialização, terceirização e submissão externa, no quadro de uma economia aberta muito exposta. A Roménia tornou-se uma economia dual, em que empresas de capital estrangeiro de desempenho elevado coexistem com empresas nacionais de baixa produtividade; as disparidades regionais alargaram-se desde 1989, reflectindo-se numa miríade de indicadores sociais depressivos. A corrupção floresceu.
A tendência negativa no plano demográfico – que ajuda à progressão artificial do PIB per capita da Roménia – capta bem esta outra história, de insucesso social. Um traço geral que se aplica praticamente a toda a Europa de Leste. Desde 1991, a Roménia perdeu perto de quatro milhões de habitantes – a par da Estónia, ostenta um recorde na UE de 16% de decréscimo populacional em 30 anos, convertendo-se em termos relativos num dos países do topo de emigração do mundo: 17% da população nascida na Roménia está fora do país, a maioria trabalhadores em busca de emprego e melhores salários, que regista um dos maiores declínios da população em idade activa na última década na OCDE e está no pelotão da frente do envelhecimento na UE.
Embora diminuindo, a pobreza e o risco de pobreza permanecem disseminados, em particular nas áreas rurais. O
salário médio é dos mais baixos da UE e a proporção de trabalhadores pobres a mais alta. As desigualdades de rendimentos, acima da média da OCDE, e no acesso a direitos e serviços sociais atingem duramente os estratos mais desfavorecidos. A pobreza infantil é a mais alta da UE, com 38% das crianças em risco de pobreza ou exclusão social em 2018. As assimetrias regionais e a polarização campo/cidade acentuaram-se nas últimas décadas.
O nível de cobertura da segurança social é baixo, em 2018 apenas 18% das famílias mais pobres tinha acesso ao rendimento mínimo garantido.
O sector da habitação está quase completamente nas mãos dos interesses privados.
O sistema de saúde romeno, subdesenvolvido e subfinanciado, é um dos piores da Europa, restringindo o acesso a muitos cidadãos. O número de médicos e enfermeiros per capita está entre os mais baixos do continente. Bem abaixo da média da UE, a esperança de vida baixou para 74 anos no rescaldo da Covid, com substanciais diferenças em função de género, nível educacional e região. A mortalidade infantil atinge perto do dobro da média da UE.
O acesso à educação é desigual e o orçamento público baixo (3.6% do PIB vs 4.7% médios na UE). A Roménia conta com uma das taxas mais elevadas de abandono escolar na Europa; persiste a sub-qualificação laboral.
A diminuição do desemprego oficial não reflecte a real situação no plano laboral, em que se mantém um nível elevado de sub-emprego e precariedade, a par do núcleo duro do desemprego estrutural e de longa duração. A taxa de desemprego jovem supera os 22%, por sinal em linha com os indicadores de Portugal, na cauda da Europa. A desregulamentação das leis laborais levou à erosão da contratação colectiva (só abrange 64% dos trabalhadores romenos) com impactos directos nos baixos salários.
Amostra que atesta que os ganhos dos rendimentos do trabalho e despesas sociais caminham bem atrás do crescimento económico e da produtividade.
Sublinhe-se, neste contexto, a questão crucial da perda da soberania nos planos económico-financeiro, político, e até jurídico, processo consolidado com as adesões à NATO em 2004 e UE em 2007.
Impulsionado pelo processo de privatizações e liberalização, o peso do sector privado cresceu fortemente nos últimos 30 anos, chegando aos 80% do PIB. O capital privado domina o sector bancário, 92% dos bancos em 2019 e o maior banco nacional, com o capital estrangeiro na posição de comando ao controlar 76% dos activos da banca (54% em 2004). O domínio do capital estrangeiro abarca amplos sectores da economia.
Não espantam assim o agravamento de défices estruturantes das contas nacionais. O défice da conta corrente agravou-se para 10.7% do PIB em Setembro de 2022. O saldo negativo da balança de rendimentos primários alcançou um recorde de 4.1% do PIB em Junho de 2022. O défice comercial agravou-se no último ano alcançando um pico de perto de 12% do PIB.
Sintomaticamente, Bucareste gasta já 2% do PIB em despesas militares, prevendo a sua subida para 2.5% no ano em curso. Desde 2016, o orçamento militar aumentou 55%. A Roménia é um ponto nevrálgico do reforço substancial da presença militar dos EUA e da NATO junto às fronteiras russas (inclusive com o envio de militares portugueses).
Sem papas na língua, o economista romeno e antigo ministro das Reformas nos anos 90, Ilie Serbanescu, num livro com o sugestivo título de «Roménia, uma colónia na periferia da Europa», lembra que a operação de subjugação económica da Roménia «foi lançada e executada segundo um plano bem pensado, sem escolha [para a Roménia], como condição para a admissão do país na NATO e na UE». Em resultado da transição capitalista, «a Roménia deixou de ser um país soberano, tendo perdido o controlo nacional da economia», processo concluído já nas condições de integração na UE, afirma.
Notoriamente, o “mito romeno” não serviu os trabalhadores e o povo romenos, e os objectivos do desenvolvimento e progresso social. Muito menos pode ser apresentado como exemplo para o nosso país, por muito que o poder económico agite o espantalho da ultrapassagem