Intervenção de Miguel Tiago na Assembleia de República

Bases da política de ambiente

(projecto de lei n.º 456/XI/2.ª)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Embora a actual Lei de Bases do Ambiente comporte as bases para uma política de ambiente que assenta no papel do Estado para a harmonização entre o desenvolvimento económico e social e a gestão sustentável de recursos, a política levada a cabo pelos sucessivos governos não tem seguido, na prática, essa orientação.
O direito a um ambiente são e adequado à satisfação das necessidades pessoais e sociais do indivíduo e da comunidade, direito previsto na Constituição da República Portuguesa, tem sido sempre atacado por uma prática política que faz dos recursos naturais apenas o substrato para o desenvolvimento de um grande mercado ou de grandes mercados. Quer PS quer PSD, quando no Governo, alimentam um processo de privatização e de mercantilização da Natureza e dos recursos energéticos, naturais, culturais e paisagísticos nacionais.
Mas o projecto de lei de bases do ambiente que o PCP hoje apresenta não se limita a consagrar o aprofundamento do projecto constitucional, garantindo uma política de conjugação do desenvolvimento económico com a Natureza e os seus ecossistemas. Este projecto de lei do PCP vem também propor uma
importante actualização da Lei de Bases vigente, aperfeiçoando e alargando o seu conteúdo às questões ambientais que são hoje os centros das preocupações no plano político, social, científico e tecnológico. A actual Lei de Bases do Ambiente, com 23 anos de vigência, encontra-se efectivamente desfasada da dinâmica actual, nomeadamente quanto a questões tão importantes e substantivas como a vigilância climática, a política de redução, reutilização e reciclagem de resíduos, o bem-estar animal, a «pegada ecológica» do indivíduo, os padrões de consumo, o funcionamento do sistema produtivo, e mesmo quanto a algumas questões relacionadas com a conservação da Natureza.
O projecto de lei do PCP propõe, de forma bastante inovadora, que a lei de bases do ambiente estabeleça regras que visam uma política de abordagem integrada do conjunto das actividades humanas e dos seus impactos na Natureza, e vice-versa, numa perspectiva profundamente dialéctica, no sentido da harmonização entre as práticas populares, as actividades económicas e produtivas, e a conservação da Natureza e dos seus valores.
Este projecto de lei introduz também normas para a responsabilização do Estado e dos proprietários de
infra-estruturas que coloquem em perigo ou provoquem dano a terceiros, por via de alterações dos equilíbrios naturais dos ecossistemas ou dos sistemas físicos e geológicos.
A política de ambiente que tem vindo a ser praticada, seja pelo PS, seja pelo PSD, com ou sem a ajuda do CDS, tem sempre «dois pesos e duas medidas»: por um lado, as actividades tradicionais, o desenvolvimento regional e local e as práticas populares são atacados e fortemente limitados, em nome de uma visão de política ambiental totalmente proibicionista, que afasta as populações das áreas e valores a proteger; e, por outro lado, os grandes grupos económicos, os donos dos campos de golfe, dos aldeamentos de luxo, das grandes superfícies de comércio e de outros empreendimentos que servem apenas os interesses privados, podem usar e abusar das áreas protegidas e dos recursos naturais, tendo, para isso, todo o tipo de facilidades e permissividades por parte do Governo!
O turismo de massas, de fruição das riquezas nacionais por todos é substituído por um turismo de luxo, fechado em grandes hotéis e aldeamentos, gerando lucros em circuitos cada vez mais fechados, nas mãos de um punhado de poderosos que, actualmente, se apodera dos recursos naturais endémicos do País.
Também para combater essa prática, o presente projecto de lei do PCP introduz normas para a preservação das actividades locais, inclusivamente propõe que todos os planos de ordenamento das áreas protegidas sejam acompanhados de um plano de desenvolvimento e investimento regional, com vista à
garantia da compensação das populações pela limitação dos direitos que lhes é imposta pela política de conservação da Natureza.
Mas é também uma política com «dois pesos e duas medidas», no que toca à gestão do modelo de produção e dos padrões de consumo. Enquanto se fala em aumentar o preço dos bens ambientais, nunca se fala em limitar a produção de superfluidades ou as práticas de estímulo ao consumo de inutilidades, embalagens ou luxos fúteis.
Há ainda outros âmbitos que o PCP traz para a discussão, que até hoje não merecem referência na lei nem
estão patentes em nenhum dos projectos de lei dos restantes partidos, nomeadamente o da segurança ambiental, o da prevenção, mitigação e adaptação aos riscos e compensação por danos, sejam eles provocados ou relacionados com fenómenos naturais catastróficos; o da reorganização do ICNB, garantindo que a cada área protegida cabe um director; o da segurança alimentar, nomeadamente através da proibição da utilização de terrenos agrícolas para cultivo de organismos geneticamente modificados; ou o do impedimento da privatização ou concessão de tarefas fundamentais do Estado, na conservação da Natureza, na gestão dos recursos hídricos e no ordenamento do território. Tudo isto são elementos que constam do projecto de lei de bases que o PCP hoje apresenta.
Muitas são as inovações que o Partido Comunista Português propõe, mas destaco ainda a introdução da necessidade de protecção da geodiversidade, a necessidade de limitação das práticas que impliquem sofrimento de seres vivos, de condições legais para o habitat humano, garantindo um ambiente adequado aos homens e mulheres do nosso País, um ambiente que não é, em si mesmo, um bem absoluto, mas é, efectivamente, o espaço onde se desenvolvem as relações sociais, o trabalho, a vivência da espécie humana, da comunidade e das populações.
É hipócrita a posição do PSD e é também hipócrita, como ouviremos adiante, a do PS. Não é possível persistir num rumo de destruição, de sobreexploração dos recursos naturais, biológicos e geológicos; não é possível continuar a praticar uma política de mercantilização do ambiente; não podemos continuar a iludir a qualidade da atmosfera com licenças de emissão de gases com efeito de estufa, como se o ar ficasse melhor só porque os cidadãos pagam uma taxa, ou a aumentar os lucros das gasolineiras, da EDP e de outras empresas dos serviços energéticos, como se a água fosse protegida só porque pagamos os lucros das grandes empresas que dela se apoderam!…
Não é possível continuar a aprofundar o rumo capitalista, do qual são adeptos e até servis executantes PS, PSD e CDS, e fingir preocupação com a Natureza e o ambiente. Enquanto se aprofundar a exploração capitalista do trabalho humano e dos recursos naturais, a delapidação desnecessária das riquezas naturais é inexorável, porque está na matriz genética do próprio capitalismo. E o capitalismo e os grupos económicos não olham a meios, pois têm como objectivo central a obtenção de mais e mais lucro!!
Por isso mesmo, só com uma política firme, que vise o desenvolvimento do País em função das nossas necessidades, das necessidades globais do País, regionais e locais, e com uma política de ordenamento do território que adeqúe os usos do solo à melhoria da qualidade de vida das populações e não aos desejos e caprichos dos grupos económicos é que será possível romper com a política de destruição do ambiente que se tem verificado em Portugal, com um Estado cada vez mais ausente.
É nesse sentido que o Grupo parlamentar do PCP apresenta hoje — julgo poder afirmá-lo — o mais inovador, ambicioso e audacioso projecto de lei de bases do ambiente.
(…)
Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
O Sr. Deputado Renato Sampaio insinuou que os grupos parlamentares que apresentaram projectos de lei para este debate estavam a reboque da iniciativa do PSD.
Sr. Deputado, esta bancada não é como a do PS, que ou anda a reboque do Governo ou anda a reboque dos grupos económicos e dos accionistas!
Esta bancada entendeu que este é um debate importante e decidiu trazer o seu contributo, tal como, aliás, devia ter feito o Governo, que há muito anuncia a actualização da lei de Bases do Ambiente e até hoje não apresentou qualquer documento a esta Assembleia.
Ainda assim, Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, permitam-me, em jeito de conclusão, deixar algumas notas sobre o debate que hoje aqui estamos a ter.
O PSD — e estamos certos de que o Governo se encaminhará pelo mesmo rumo — vem trazer-nos uma lei de bases do ambiente que em alguns pontos se limita a uma actualização da lei actual e que traz para a lei actual, através de uma proposta, alguns conceitos e preocupações que hoje estão, de facto, na ordem do dia e que em 1987 não o estavam ainda. Mas faz mais do que isso: a proposta do PSD — e certo estamos de que o PS fará o mesmo através da proposta de lei — traz uma perspectiva de mercado para a gestão do ambiente, para a política do ambiente.
Acabámos de ouvir o Sr. Deputado António Leitão Amaro falar do princípio do utilizador-pagador como se daí adviesse algum bem ao mundo, uma melhoria das políticas ambientais. Sr. Deputado, se há um utilizador que é pagador, quem é o recebedor? Por que é que uma empresa tem de receber e angariar os lucros à custa do utilizador?
Sr. Deputado, se não utilizar uma auto-estrada, não está a utilizá-la na mesma, mesmo que não passe por lá? O seu País não está a beneficiar daquela infra-estrutura? Se o Sr. Deputado não consome tanta água como uma indústria não está na mesma a usufruir da água, tendo em conta que é necessária a indústria para o seu País?
Sr. Deputado, sejamos sinceros: todos somos utilizadores dos recursos naturais, independentemente de sermos utilizadores directos ou não. Esse engodo do utilizador-pagador visa, no essencial, a concentração do pagamento em alguém, e é sempre a mesma conversa. E aí está o aumento das tarifas da água, o aumento dos combustíveis, o aumento da electricidade, sempre a bem do utilizador-pagador mas, na verdade, é sempre a bem dos bolsos dos accionistas, os quais, ainda por cima, podem meter ao bolso os dividendos antes, porque ninguém os vai buscar.
Srs. Deputados, estamos certos de que é possível fazer aqui uma aposta: o PS atrasou-se no debate, mas certamente virá ao encontro da proposta de liberalização e de mercantilização dos recursos naturais que o PSD aqui hoje nos apresenta, porque essa é a prática deste Governo. Trata-se de um Governo que para um habitante de uma área protegida, se for à pesca à cana e apanhar um sargo, aplica uma multa de 1500 €. Mas, tratando-se do dono de um campo de golfe ou de um aldeamento de luxo, se for preciso até se acaba com a área protegida para lá se construir um aldeamento de luxo de segunda habitação (nem sequer é um hotel), como nos vêm dizendo. Para as cimenteiras, se for preciso, até se altera o perfil e a cartografia da área protegida, mas para alguém que precisa de continuar uma actividade tradicional e de construir uma casinha em madeira para a bomba de rega, venham as multas, venham as restrições.
Esta é a política da preocupação ambiental.
Uma última nota sobre a hipocrisia e a falsidade do discurso da preocupação ambiental do PSD e do PS.
Enquanto estão no poder estimulam o mercado, estimulam o desregramento e a delapidação dos recursos, mas depois vêm falar-nos das licenças de emissão dos gases com efeito de estufa, vêm falar-nos do Protocolo de Quioto e das preocupações ambientais. É impossível ter preocupações ambientais enquanto se continuar a defender que tudo é uma mercadoria, que tudo é transaccionável, que tudo é privatizável e que o Estado deve retirar-se da gestão do território. Isso é uma hipocrisia!

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