Intervenção de Eugénio Pisco, Encontro Nacional «Tomar a iniciativa – assegurar o direito à habitação para todos»

Autarquias e Habitação

Autarquias e Habitação

A afirmação do Poder Local Democrático foi efetuada à custa duma luta permanente pela defesa da sua autonomia e da sua capacidade financeira, alvo de inúmeros ataques e ofensivas da política de direita. Política de direita que nos diversos turnos de serviço procurou sacudir do seu capote a responsabilidade da resolução de problemas essenciais da população, como também aconteceu no caso da habitação. Retirar do Estado esta responsabilidade que a Constituição lhe atribui tem sido uma constante. Aspeto que tem assumido nos últimos tempos novos contornos, com a legislação sobre transferência de competências e a forma como foi apresentado o denominado Programa Mais Habitação. O que justifica da parte das autarquias a recusa de assumir esta responsabilidade, que traria consequências graves a nível do endividamento, da situação financeira, e da capacidade de livremente optar sobre quais as prioridades a que as autarquias têm de dar resposta no âmbito das suas competências.

A situação que se vive atualmente a nível da habitação (condições e carência) é grave e tem-se acentuado nos últimos tempos, com benefícios para o capital sobretudo o financeiro (bancos e fundos de investimento).

A política do governo, mesmo através da Nova Geração de Políticas de Habitação e apesar dalguns aspetos positivos, continua a ter como propósito principal dar ao Estado o mero papel de agente financeiro, atribuindo aos municípios e ao chamado setor social, a responsabilidade pela maior parte do investimento.

Está neste caminho a contestada lei de passagem de responsabilidades para os municípios (lei n.º 50/2018, de 16 de agosto), confirmada e detalhada através da tentativa do Estado de se livrar do seu património habitacional através do Decreto-Lei n.º 105/2018 de 29 de novembro. Situação ao arrepio do que em 2019 a lei de bases da habitação (lei n.º 83/2019 de 3 de setembro) determinou, tornando claras quais as competências que os municípios têm nesta matéria. Sem impedir que quem, com mais disponibilidades financeiras, possa fazer mais, limita a responsabilidade municipal à conservação e gestão do seu parque habitacional.

Apesar da contradição entre a Lei de Bases de Habitação e a denominada Nova Geração de Políticas de Habitação, estas últimas têm prevalecido. Como forma de obter acesso a intervenção nesta área e a fundos para o seu património habitacional, os municípios foram encaminhados para a elaboração das Estratégias Locais de Habitação, condição para acesso ao programa 1.º direito e que permitem a caraterização da situação existente em cada município. Os levantamentos a que a Estratégia obriga serão sempre importantes para os instrumentos de gestão do território, e inclusive, para a Carta Municipal de Habitação, prevista na Lei de Bases.

A elaboração destas Estratégias sem significar a aceitação de competências do Estado, deve priorizar os investimentos que cabem ao município, desde logo a reabilitação do seu parque habitacional, criar redes de parceiros dos setores cooperativo e social e possibilitar financiamento a privados para reabilitação do seu edificado.

O que hoje se conhece das Estratégias Locais de Habitação, elaboradas pelos municípios, permite afirmar serem necessários bem mais de 100 mil fogos, para responder a carência de habitação das famílias portuguesas a viverem nas chamadas condições indignas. Só na área Metropolitana de Lisboa, são cinquenta mil. Construir estes 100.000 fogos implica, de acordo com os números de referência do IHRU, um investimento de 12.000 M€. Este investimento deve ser assegurado na integra pelo Estado, quer pelo recurso ao PRR, a outros instrumentos de financiamento e ao Orçamento de Estado.

Os municípios devem assumir em matéria de habitação um papel de envolvimento em planos e programas municipais, nas Cartas Municipais de Habitação, como agentes de ligação e agilização de procedimento tendo em vista as competências que detêm na área do ordenamento do território, da gestão urbanística e do licenciamento. 

O pacote de medidas batizado como Mais Habitação, quando devia ser Mais Benefícios para o Capital, apresenta aspetos negativos para o poder local, caraterizando-se por: tirar dos municípios o controlo de processos urbanísticos; transferir responsabilidades que se devem manter no governo em termos de promoção de habitação; invadir a esfera de competências dos municípios em matéria de impostos locais (IMT e IMI), usando receitas que são dos municípios para executar as suas políticas; promover alterações ao uso do solo à margem dos instrumentos de gestão territorial.  

A estas situações acresce a cenoura da linha de crédito de 150 milhões de euros para obras coercivas, visando a recuperação de habitações, quando a intervenção direta das autarquias só se deve fazer em casos de reposição da legalidade urbanística ou de riscos de segurança.

Referência ainda para a liberalização dos licenciamentos, conhecidas as dificuldades dos serviços das Câmaras em meios técnicos e humanos na área da fiscalização, tem o efeito prático de estender uma passadeira sobre deferimentos tácitos e fazer florescer projetos especulativos.

Para o PCP torna-se claro que é o Estado que tem de intervir na promoção direta de habitação e na criação de condições para o seu acesso. O espaço de intervenção das autarquias locais deve ser concretizado no âmbito das suas competências, sendo de realçar todo o esforço que foi feito nesta área com a legalização das AUGI, o apoio à promoção de habitação cooperativa e a custos controlados, o apoio à reabilitação do edificado, a concretização de programas de autoconstrução e de autoacabamento, bem como todo o processo de planeamento com destaque para os Planos Diretores Municipais e os Planos de Salvaguarda dos Centros Históricos.

O respeito pela autonomia local é o caminho a seguir, a disponibilização de recursos financeiros e técnicos também. O essencial está em cada um dos níveis de decisão assumir claramente e inequivocamente aquilo que é da sua responsabilidade.

O falhanço da política de habitação que a transforma num negócio, ao serviço dos interesses de poucos e em detrimento de muitos, não pode ser imputado ao Poder Local. A responsabilidade constitucional pela resolução dos problemas da habitação compete ao Estado.

 

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