Projecto de Lei N.º 544/XII/3ª

Alarga as condições de acesso e atribuição do abono de família

Alarga as condições de acesso e atribuição do abono de família

I

Em Portugal, foi a Revolução de Abril de 1974 e a conquista de um sólido corpo de direitos económicos e sociais que abriu o caminho de construção e garantia dos direitos das crianças nas suas múltiplas dimensões.

Conforme consagrado na Constituição da República Portuguesa (Artigo 69.º), cabe ao Estado e à sociedade proteger as crianças “com vista ao seu desenvolvimento integral”, designadamente contra todas “as formas de abandono, de discriminação, e de opressão”.

As crianças e os jovens são o fundamento das prestações familiares. Ao Estado cabe garantir, respeitar e promover o exercício pleno dos seus direitos, com vista ao seu desenvolvimento integral e à efetivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais.

Tempos como os que vivemos, de profundo retrocesso civilizacional, geram situações dramáticas para milhares de famílias. O aprofundamento das desigualdades sociais, de alastramento brutal do desemprego e da precariedade, dos baixos salários, do agravamento da pobreza e da exclusão social, o aumento dos custos com a alimentação, educação, habitação, saúde impõem uma realidade insuportável para milhares de famílias.

Em Portugal, as causas estruturais da pobreza têm a sua origem em mais de 36 anos de políticas de direita, agora agravadas com a aplicação das medidas do Pacto de Agressão da Troika, subscrito por PS, PSD e CDS.

No nosso país, em 2013 54,5% das crianças viviam em famílias com rendimentos agregados inferiores a 628€ e mais de 13.000 crianças estavam sinalizadas nas escolas com carências alimentares graves.

Os dados recentes divulgados pelo INE - Inquérito às condições de vida e rendimentos dos portugueses referentes ao ano de 2012 – evidenciam que a pobreza no nosso país tem vindo a agravar-se em paralelo com o agravamento da desigualdade na distribuição da riqueza.

De acordo com o INE, o risco de pobreza aumentou significativamente em 2012 atingindo o valor mais elevado desde 2005: 18,7% da população, cerca de 2 milhões de pessoas. Contudo, se o efeito do abaixamento generalizado dos rendimentos dos portugueses for corrigido, então concluímos que estão efetivamente em risco de pobreza 24,7% da população, ou seja, cerca de 2 milhões e 600 mil pessoas.

Aliás, a taxa de risco de pobreza para as famílias com crianças dependentes subiu para 22,2%, quando em 2011 era de 20,5%. A maior incidência revelou-se nas famílias monoparentais com um filho a cargo (33,6%) e nas famílias constituídas por dois adultos e três ou mais crianças (40,4%) e por três ou mais adultos com menores (23,7%). As crianças representam mesmo a maior “fatia” quando se analisa a taxa de risco de pobreza segundo o sexo e o grupo etário (24,4%).

Em Portugal, a taxa de risco de pobreza é superior à de alguns países com rendimentos mais baixos, mesmo após a transferência dos valores das prestações sociais, o que torna clara a necessidade efetiva de reforço dos mecanismos sociais de combate à pobreza e à exclusão social.

O empobrecimento de largas camadas da população, de agravamento da pobreza e da exclusão social é parte integrante do projeto político executado por este Governo PSD/CDS de concentração da riqueza. Em 2013 os principais grupos económicos registaram lucros escandalosos: EDP 1005 milhões de euros; GALP 310 milhões de euros; SONAE 319 milhões de euros; Grupo Jerónimo Martins 382 milhões de euros; Portucel 210 milhões de euros; BES 517 milhões de euros.

Para o PCP, o combate à pobreza e à exclusão social é inseparável de um caminho mais geral de desenvolvimento económico, valorização do trabalho, aumento dos salários e das pensões, maior justiça na distribuição da riqueza, elevação das condições de vida do povo.

II

A aplicação do Decreto-Lei nº 70/2010 representou a imposição de um “filtro” para acesso aos apoios sociais que teve impactos gravíssimos na vida de muitos milhares de portugueses.

Só relativamente ao abono de família, o Decreto-Lei n.º 70/2010 conjugado com o Decreto-Lei n.º 116/2010, de 22 de Outubro, eliminou o aumento extraordinário de 25% do abono de família nos 1.º e 2.º escalões e cessou a atribuição do abono aos 4.º e 5.º escalões de rendimento.

À data, cerca de 650 mil crianças e jovens perderam o abono de família por via quer da cessação do pagamento aos 4º e 5º escalões, quer por via da alteração da condição de recursos, e cerca de 1 milhão e 75 mil beneficiários sofreram um corte de 25%. Mais de 13 000 crianças e jovens perderam a bonificação por deficiência do abono de família.

Os efeitos destas decisões, tão injustas quanto inaceitáveis, atingiram mais de 1 milhão e 650 mil beneficiários do abono de família, isto é, mais de 80% dos beneficiários do abono de família perderam ou sofreram cortes naquela prestação social. Importa referir que uma criança cuja família sobreviva com um rendimento mensal de referência de 628,80€ (correspondente ao 4º escalão de rendimentos) perdeu com o Decreto-Lei n.º116/2010, o abono de família.

Se o anterior Governo PS é responsável pela criação deste “filtro inaceitável” de acesso às prestações sociais, o atual Governo PSD/CDS é igualmente responsável pela sua manutenção e agravamento.

De Agosto de 2010 a Janeiro de 2012, mais de 620 mil crianças perderam o abono de família .

O quadro abaixo evidencia a redução do número de beneficiários do abono de família entre Maio de 2011 e Dezembro de 2013.

Prestação Social Mai. 2011 Dez. 2011 Mai. 2012 Dez. 2012 Mai. 2013 Nov.2013 Dez. 2013
Abono de família 1.191.198 1.219.919 1.197.692 1.189.554 1.198.134 1.161.186 1.170.786

Fica assim demonstrado que ao invés do que afirmam, atacando justamente o PS, PSD e CDS não só mantêm os cortes no abono de família como os agravam.
O presente Projeto de Lei não exclui, antes exige, o compromisso de uma revisão futura mais profunda do enquadramento legal respeitante à estrutura, atribuição, montantes e universalidade do abono de família. No entanto, devido à dramática situação que marca o quotidiano de muitos milhares de famílias, o PCP apresenta este projeto como um contributo decisivo para a garantia de mais justiça social.

Por isso mesmo, os objetivos deste Projeto são:
1. Revogar a condição de recursos imposta pelo Decreto-Lei n.º 70/2010 para atribuição do abono de família;
2. Cessar a decisão de devolução de verbas do abono de família recebidas «indevidamente», isto é, de montantes que a Segurança Social continuou a pagar sem que a responsabilidade possa ser imputada aos beneficiários que não podem perder o direito a uma prestação social por entrega tardia de documentos;
3. Repor a totalidade dos escalões para efeitos de atribuição do abono de família, avançando no sentido de garantir a sua universalidade;
4. Repor a majoração do abono de família em 25% nos 1º e 2º escalões;
5. Repor critérios mais justos de atribuição da bonificação por deficiência a crianças e jovens.

Com este Projeto de Lei, o PCP retoma os valores pagos antes das medidas que vieram cortar violentamente os apoios sociais, repondo os escalões suprimidos com os valores que em seguida se descriminam:

Abono de família para crianças e jovens
Idade igual ou inferior a 12 meses Idade superior a 12 meses
1º escalão €174,72 €43,68
2º escalão € 144,91 € 36,23
3º escalão € 92,29 € 26,54
4º escalão € 56,45 € 22,59
5º escalão € 33,88 € 11,29
6º escalão a definir por portaria a definir por portaria

III

As recentes promessas do Primeiro-Ministro em torno da natalidade visam ocultar que o desrespeito pela função social da maternidade e paternidade e o incumprimento dos direitos que lhe estão inerentes são da responsabilidade da política do Governo . A demagogia do Governo em torno da «natalidade» assenta em conceções retrógradas de responsabilização individual das mulheres e das famílias pela renovação das gerações e na desresponsabilização do Estado, das entidades patronais e de toda a sociedade para com a função social da maternidade e da paternidade.

Sucessivos governos PS, PSD e CDS, sempre rápidos na retórica oca de apoio às famílias, têm praticado continuamente políticas contrárias à promoção da natalidade, aos direitos das crianças e dos jovens, dos pais e mães portugueses, sobretudo de famílias com baixos rendimentos.

Tempos como os que vivemos de baixa natalidade, emigração, desemprego, precariedade da vida, exigem políticas efetivas de natalidade como a valorização e reforço do abono de família e dos salários dos trabalhadores, de criação de uma rede pública de equipamentos de apoio à infância de qualidade e a preços acessíveis, de políticas que fomentem a estabilidade no emprego e na vida.

O Partido Comunista Português defende um sistema de prestações familiares universal, ao encontro até do preconizado em sucessivos preâmbulos que precederam as várias regulamentações destas prestações mas que nunca tiveram correspondência nas regras efetivamente aplicadas. Da lei à vida vai uma distância atroz: o universo cada vez mais restrito de famílias a acederem a estas prestações são maioritariamente agregados que vivem em situações de pobreza, ou próximas desta. Propomos, portanto, que as crianças, independentemente do agregado familiar em que estão inseridas, tenham garantida uma infância plena de direitos, com saúde, educação, habitação em condições de igualdade, sem que o acesso a estes direitos seja restringido às crianças e jovens com base em critérios economicistas, contribuindo, desta forma, não só para o desenvolvimento das crianças e jovens, como também de todo um país.

O Projeto de Lei do PCP representa um contributo decisivo para corrigir alguns dos efeitos desastrosos de uma política social injusta, indo ao encontro da garantia e do cumprimento dos direitos das crianças e de um rumo de progresso social.

É inaceitável o ataque em curso aos direitos fundamentais das crianças e das suas famílias, pondo em causa uma das conquistas mais emblemáticas dos direitos sociais: a proteção da infância e da juventude no superior interesse da criança.

Assim, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1º
Objeto
1 - A presente Lei reformula as condições de acesso e atribuição do abono de família a crianças e jovens, alterando os requisitos da verificação da condição de recursos, repondo o pagamento do abono nos 4º e 5º escalões e a majoração do pagamento nos 1º e 2º escalões.
2 – A presente lei determina ainda a inexigibilidade de devolução das quantias recebidas a título de abono de família a crianças e jovens por não apresentação de prova escolar ou prova de condição de recursos.

Artigo 2º
Alteração ao Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho
1 – É revogada a alínea a) do n.º 1 e a alínea c) do n.º 3 do artigo 1.º, bem como o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho, que passa a ter a seguinte redação:
«[…]
Artigo 1.º
(…)
1 — (…):
a) Revogar;
b) (…);
c) (…);
d) (...);
2 — (…)
3 — (…):
a) (…);
b) (…);
c) Revogar;
d) (...);

[…]

Artigo 19.º
Alteração ao Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto
Revogar
[…]»

Artigo 3º
Revogação do Decreto-Lei n.º 116/2010, de 22 de Outubro
1 - É revogado o Decreto-Lei n.º 110/2010, de 22 de Outubro, repristinando-se a Portaria n.º 425/2008, de 16 de Junho e a Portaria n.º 511/2009, de 14 de Maio.
2 – São repostos o 4.º, 5.º e 6.º escalões do abono de família a crianças e jovens previstos pelo Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto, na sua versão republicada pelo Decreto-Lei n.º 245/5008, de 18 de Dezembro, cujos montantes mensais serão definidos pelo Governo através de Portaria.

Artigo 4.º
Inexigibilidade de devolução do abono de família para crianças e jovens
Estão dispensados da obrigatoriedade de devolução das quantias recebidas a título de abono de família os beneficiários que não tenham efetuado a prova de condição de recursos e a prova escolar nos prazos legalmente determinados.

Artigo 5.º
Recálculo dos montantes
Os Serviços de Segurança Social deverão recalcular os montantes do abono de família nos termos da presente lei no prazo de dois meses após a sua entrada em vigor, sendo estes devidos desde a data de entrada em vigor deste diploma.

Artigo 6.º
Disposições transitórias
O Governo regulamentará o n.º 2 do artigo 3º no prazo de 30 dias após a entrada em vigor da presente lei, com base nos valores previstos pela Portaria n.º 511/2009.

Artigo 7º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor com o Orçamento do Estado posterior à sua aplicação.

Assembleia da República, em 28 de março de 2014

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