Gostaria de começar esta intervenção com a leitura do artigo centésimo terceiro da Constituição da República Portuguesa: “O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”. O artigo seguinte prevê , por sua vez, que “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”. Destes dois artigos saliento dois aspectos: 1) de que o sistema fiscal português deverá promover uma justa repartição dos rendimentos e a diminuição das desigualdades, e, 2) que o imposto sobre o rendimento das famílias – neste caso o IRS -, deverá ter em conta as suas necessidade.
Comparemos agora com a realidade com que os trabalhadores e pensionistas portugueses estão confrontados. O Governo do PS, no orçamento para 2011, determinou o primeiro aumento de impostos em sede de IRS, restringindo o montante das despesas com saúde, educação, habitação, entre outros, a deduzir pelas famílias. Em 2012, o Governo PSD/CDS aumentou o IVA para um vasto conjunto de bens e serviços, alguns deles fundamentais como a electricidade e o gás, mas também para a cultura e vários bens alimentares. IMI e outros impostos indirectos – como o imposto único de circulação é exemplo – conheceram também aumentos nos últimos anos, incidindo com especial penalização sobre os trabalhadores.
Em 2013, o Governo procede a um enorme aumento do IRS, com a redução do número de escalões de oito para cinco, que restringiu a progressividade do imposto, o aumento das taxas de imposto, a redução das deduções à colecta com limites exíguos, e com a sobretaxa de 3,5%, a incidir sobre todos os rendimentos acima do salário mínimo de igual forma. Medidas que, em média, retiraram um salário ou uma reforma por ano aos trabalhadores e pensionistas, respectivamente, e que tornaram o IRS num imposto mais injusto, que agrava as dificuldades das famílias e que tem contribuído decisivamente para o seu empobrecimento. A título de exemplo, um trabalhador casado e com um filho, a auferir um salário bruto de 940 euros mensais, passou a levar para casa menos 58€ do que em 2012. Ao final do ano, são menos 817€, tendo ainda de suportar o aumento dos transportes, da saúde, da educação, da energia.
Recentemente o Governo apresentou a Reforma do IRS. Com grande pompa e circunstância, anunciou a introdução do quociente familiar e a eliminação dos limites às deduções, escondendo o fundamental: que o saque fiscal que tem sido imposto aos trabalhadores e aos pensionistas nos últimos dois anos fica inalterado, mantendo-se a sobretaxa, a redução dos escalões e as elevadas.
O Governo limita-se, sim, a redistribuir a carga fiscal, reduzindo-a ligeiramente para os agregados familiares mais numerosos, graças ao quociente familiar – e aqui se deixa a ressalva de que muitas das famílias numerosas ou têm muito baixos rendimentos e já não são sujeitas a IRS ou, pelo contrário, têm rendimentos muito elevados -, e aumentando-a para aquelas que não têm dependentes a cargo. E estas correspondem a 70% do total de agregados que pagam IRS, e incluem, naturalmente, os reformados e pensionistas.
O aumento para esta maioria acontece por via do desaparecimento de deduções como as pessoalizantes e as deduções com despesas de habitação, sejam rendas ou prestações aos bancos, não havendo compensação com a nova “bolsa de despesas familiares”.
Mas os grandes beneficiados desta Reforma são, sem dúvida, os mais ricos, dos últimos escalões de rendimento, que deixarão de ter limites às despesas a deduzir e conseguem, por esta via, reduzir substancialmente o imposto a liquidar, e aqueles que vivem dos rendimentos de capital. E nós sabemos que as duas categorias se sobrepõem.
Se o sistema fiscal português é já bastante vantajoso para estes últimos, mais vantajoso ficará, ao afastar-se cada vez mais do englobamento obrigatório de todos os rendimentos. Trocando por miúdos, da obrigação de somar todos os rendimentos, independentemente da sua fonte, aplicando uma só taxa de imposto, tanto mais alta quanto mais elevado for o rendimento total. Ora a Reforma com que estamos confrontados incentiva a que quem aufira rendimentos de capital – juros, mais valias e dividendos – possa escolher uma taxa de imposto mais baixa, a taxa liberatória. Assim, quem aufira, a título de exemplo, 100 mil euros anuais em dividendos, e 50 mil em juros, em vez de pagar uma taxa de imposto média de 42%, paga imposto à taxa liberatória de apenas 28%.
Ao mesmo tempo que anunciou as alterações em sede de IRS, o Governo deu a conhecer a Reforma da Fiscalidade Verde. Esta está inserida num quadro de substituição, aos poucos e poucos, da tributação progressiva sobre a riqueza (quer das famílias quer das empresas), para uma tributação indirecta, sobre o consumo, que incide sobre ricos e pobres de igual forma. Por não ter em conta os rendimentos de quem paga, mas ter um impacto muito superior nos mais pobres, a tributação indirecta é uma forma de tributação socialmente injusta.
A Reforma da Fiscalidade Verde consubstancia um novo aumento da tributação indirecta, quer com o aumento de impostos e taxas já existentes, quer com a criação de novos tributos.
Segundo as previsões do Governo, a Fiscalidade Verde representará um encaixe de 150 milhões de euros, e não há quaisquer dúvidas de que são, uma vez mais, trabalhadores e pensionistas a pagá-los, directa e indirectamente.
Directamente, por via do agravamento de impostos e de taxas, como são exemplo o aumento da taxa sobre os recursos hídricos e da taxa de gestão de resíduos, e o aumento do Imposto Sobre Veículos em 3% - penalizando quem tem carros mais antigos. E por via da criação de novos tributos, como o imposto sobre os sacos de plásticos e o imposto sobre o carbono. Este é especialmente gravoso, em primeiro lugar porque implica o a subida imediata do preço do gás e do combustível em cerca de 1% - que se soma à contribuição sobre o sector rodoviário, cujo aumento se encontra previsto no Orçamento de Estado para 2015. Contas feitas, estaremos perante uma uma subida de cerca 4 centímos nos combustíveis, num quadro em que as famílias e as micro, pequenas e médias empresas está já sujeitas a brutais custos com combustíveis, electricidade e gás.
Em segundo lugar, são claras as implicações que um aumento dos custos energéticos têm na generalidade dos preços, sendo este o efeito indirecto da Reforma da Fiscalidade Verde.
Esta tem como alvo directo os rendimentos do trabalho, e a propalada “neutralidade fiscal” – com o Governo a propôr que os 150 milhões sejam usados para pagar o quociente familiar da Reforma do IRS - não é mais do que um engodo.
Mais de metade dos agregados familiares portugueses aufere rendimentos de miséria, não sendo sujeito a IRS. Dos que liquidam IRS, só parte tem dependentes, pelo que os beneficiados do quociente familiar são uma minoria.
No entanto, todos, mesmo os de muito baixos rendimentos, passarão a pagar mais pelo gás, pelo combustível, pelo carro já com vários anos, por cada ida às compras, e não conhecerão nenhuma desta pretensa “reciclagem de impostos”.
Já os benefícios anunciados desta Reforma são de qualidade e quantidade bastante duvidosa, quer no que toca às preocupações ambientais, quer ao nível do crescimento económico e do emprego, e sobretudo quanto à justiça social.
É por isso necessário desmontar os argumentos que lhe dão suporte.
Ao nível da redução das emissões de carbono, propõe-se uma estratégia estreitamente ligada ao Comércio Europeu de Licenças de Emissão, que veio criar um mercado bastante lucrativo em torno do comércio do CO2, e que se tem mostrado ineficaz na melhoria do meio-ambiente.
Ao nível do incremento da utilização dos transportes públicos, ao mesmo tempo que se apresentam incentivos à substituição do uso do carro, privatizam-se as empresas públicas de transportes, reduzindo a sua oferta e aumentando os custos associados aos passes sociais e bilhetes.
Simultaneamente, são atribuídos incentivos fiscais em sede de IRS à aquisição de terminados veículos, acessíveis apenas à pequena minoria da população de rendimentos mais elevados, distorcendo ainda mais a progressividade do imposto;
Ao nível da protecção dos recursos, propõe-se agravar a tributação sobre o consumo de água e a taxa de tratamento de resíduos ao mesmo tempo que se privatizam ou concessionam as empresas do sector, colocando a água pública e o saneamento sob os ditames da maximização do lucro;
Ao nível do emprego e do crescimento económico, a Comissão de Reforma apresentou cenários de longo prazo (para 2030 e 2050) que revelam melhorias nulas ou ínfimas, revelando que esta não é uma proposta que se coadune com a necessária estratégia de desenvolvimento do país e da melhoria das condições de vida do povo português;
Ao nível da justiça social, penaliza-se fortemente os que menos podem e os menos têm e beneficiar as grandes empresas e os agregados familiares de escalões de rendimento mais elevados.
É portanto claro que neste deve-e-haver da fiscalidade verde, são os que vivem dos rendimentos do trabalho, e sobretudo os que vivem com menos, os grandes perdedores.
As alterações que têm sido feitas aos vários impostos atentam contra os princípios básicos que deviam orientar o sistema fiscal, e por isso atentam contra a própria Constituição. São alterações que visam aprofundar o carácter de classe do sistema fiscal, colocando-o crescentemente ao serviço do capital.
E, contrariamente ao que o Governo e as várias Comissões de Reforma – do IRC, do IRS, da Fiscalidade Verde - nos pretendem fazer querer, as medidas propostas não são opções técnicas, isentas de concepções ideológicas.
São opções político-ideológicas sujeitar trabalhadores e pensionistas a uma brutal carga fiscal, enquanto se reduz a tributação sobre as grandes empresas e sobre os grupos económicos, e se isenta o capital especulativo;
São opções político-ideológicas reduzir a progressividade dos impostos sobre o rendimento, permitir que os grandes rendimentos do capital paguem menos impostos, e aumentar continuadamente os impostos sobre bens e serviços básicos;
Tal são opções político-ideológicas abandonar a redistribuição dos rendimentos e uma maior justiça social como objectivos fundamentais do sistema fiscal português.
É urgente e necessária outra política fiscal, que promova a justiça fiscal e os interesses dos que trabalham ou já trabalharam, nomeadamente reduzindo a brutal carga de impostos sobre estes, e aumentando-a o capital, que actualmente beneficia de largas benesses fiscais. A proposta que o PCP apresenta preconiza esta política fiscal.
Mas é também urgente uma política que defenda o meio-ambiente, de protecção dos recursos do país, de rejeição à mercantilização dos bens ambientais e que mantenha no poder de todos o que é de todos.