Esta austeridade em quem vivemos tem um objetivo claro de classe, restaurar as condições de rentabilidade do capital, acentuando a exploração, a expropriação de quem trabalha, para responder à crise em que o sistema capitalista se encontra.
É uma opção estratégica que visa assegurar a transferência de rendimento do trabalho para o capital, assegurando uma transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, ou seja, uma redução dos custos unitários do trabalho.
Uma opção para qual a política fiscal e orçamental são instrumentais, assim como os programas de ajustamento estrutural, como foi o denominado Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF).
Uma opção que está inscrita nos Tratados da União Europeia e, obviamente, é também uma opção do próprio Governo ao serviço dos interesses do grande capital que opera no nosso território nacional, nomeadamente o capital financeiro.
O PAEF foi instrumental na expropriação trabalho, operando por via do orçamento e da dívida pública, uma gigantesca operação de transferência de rendimento, com vista a garantir a recapitalização da banca nacional, assegurar as questões de funcionamento do sistema financeiro e garantir o pagamento da dívida pública aos credores estrangeiros, nomeadamente a sangria que representa anualmente o pagamento de juros, que em 2015 serão superiores a 8,2 mil milhões de euros.
A propagandeada saída do PAEF em Maio de 2014 não significou o fim da austeridade. O país continuará sujeito aos instrumentos de controlo preventivo e corretivo da União Europeia: o procedimento de défice excessivo, o processo do semestre europeu, os programas de estabilidade (PECs) e o Tratado orçamental, a Estratégia Europa 2020 e o procedimento por desequilíbrios macroeconómicos. Todos aprovados pelo PSD, PS e CDS. A que acresce o sistema de supervisão pós-PAEF.
Isto num contexto do «espartilho» do Euro e de uma política monetária com o objetivo único da estabilidade de preços, ou seja, da moderação salarial, que levou aquilo que já se denomina de década perdida (2001-2010) da economia nacional, onde a estagnação económica, o aumento estrutural do desemprego e a transferência de ganhos de produtividade do trabalho para o capital foram as principais marcas.
Desde a adesão ao Euro, os custos unitários do trabalho reais em Portugal reduziram-se mais de11%, em termos acumulados. Nesse período e nos mesmos termos, os salários reais cresceram menos de 5%, enquanto os lucros líquidos cresceram mais de 72%, ou seja quase 15 vezes mais!
Não é por isso de estranhar, que no final do período de vigência do PAEF, se tenha registado um dos maiores aumentos da taxa de exploração do trabalho, com o peso dos salários no produto a atingir um dos valores mais baixos dos últimos 30 anos, ou seja, na altura em que estávamos na saída do segundo programa estrutural do FMI. Para 2015 e 2016, prevê-se que o peso dos salários do produto atinja o valor mais baixo das séries estatísticas existentes.
Mas a expropriação do trabalho, continua nos juros pagos ao capital financeiro e na carga fiscal paga para o Orçamento de Estado, num contexto de redução dos serviços públicos e das prestações sociais contributivas e não contributivas.
No primeiro trimestre de 2014, o nível de endividamento das famílias representava 116% do seu rendimento disponível. Ao nível da carga fiscal, já para não contar aquilo que foi o aumento dos impostos sobre o consumo durante o PAEF e será de futuro, por via a denominada «fiscalidade verde», a verdade é que face ao patamar de IRS pago pelas famílias em 2012, a receita fiscal de IRS arrecadada em 2013 e a prevista arrecadar para 2014 e 2015 temos um diferencial acumulado de cerca de 11 mil milhões de euros, ou seja, a confirmarem-se as previsões para 2015, os portugueses neste 3 anos irão pagar 4 anos de impostos em sede de IRS!
Os efeitos económicos e sociais desta política foram desastrosos, mas têm vindo a cumprir os objetivos traçados, nomeadamente de restauração das condições de rentabilidade do capital, com uma fatia maior do bolo do rendimento a ir para o capital, ao mesmo tempo que se agudizam as desigualdades na distribuição e repartição dos rendimentos, assim como os níveis de pobreza e privação material.
Durante o PAEF, os 20% mais ricos passaram de ganhar 5,7 vezes que os mais pobres para 6 vezes. A taxa de risco pobreza aumentou 3 pontos percentuais e mais 276 mil portugueses engrossaram as fileiras da pobreza.
Se olharmos para as estatísticas oficiais do desemprego, que dão uma ténue imagem do desemprego real, existem hoje 3 vezes mais desempregados dos que existiam em 2000. O desemprego de longa duração já atinge quase 2/3 dos desempregados, sendo que metade não recebe qualquer subsídio de desemprego. O que revela um aumento significativo do nível do desemprego estrutural, que continuará a ser um instrumento de pressão sobre os níveis salariais.
Se olharmos para o emprego, verificámos que durante o PAEF foram destruídos mais de 254 mil postos de trabalho, estimando-se que, em 2014, o volume global de emprego se encontre a níveis de 1988.
Ao nível salarial, a compensação salarial global nominal, reduziu-se em 4 mil milhões de euros, num contexto em que sempre tinha vindo a aumentar em termos nominais, até à inversão que aconteceu pela primeira vez em 2011. Em termos reais, os salários reais tiveram uma queda acumulada de cerca de 4%, prevendo-se que em 2015 e 2016 os salários reais continuem a reduzir-se.
Se fizermos o cálculo do que teria acontecido se o valor massa salarial tivesse permanecido ao nível de 2011, então chegaríamos à conclusão que os trabalhadores foram espoliados em mais de 14 mil milhões de euros, em salários e contribuições para a segurança social não pagas, nos últimos 3 anos. Aplicando a mesma lógica para os lucros líquidos, então estes tiveram um aumento global de mais de 5 mil milhões de euros.
Esta é a lógica da austeridade, tirar ao trabalho para dar ao grande capital. Uma política que como já foi dito tem no orçamento um instrumento fundamental, nomeadamente uma política fiscal cada vez mais regressiva e que favorece de forma determinante o grande capital.
A proposta de orçamento de Estado para 2015, aponta para quase mais 1,3 mil milhões de euros de novas medidas de austeridade. Para se ter uma ideia, este valor é inferior ao que está previsto pagar pelas PPP, assim como aos benefícios fiscais dados em sede de IRC, incluindo SGPS. É quase 7 vezes inferior ao serviço da dívida pública previsto pagar em 2015.
E não estão aqui considerados, os cortes introduzidos no passado mês de Setembro, no que se refere às remunerações dos trabalhadores do sector público e que continuarão em 2015, apesar da reversão de 20%.
A verdade é que no próximo ano, os trabalhadores do sector público com salários superiores a 1.500 euros terão cortes salariais entre 2,8% e 8,0%. Os restantes verão salários e pensões congeladas (com exceção das pensões mínimas), o que significa perdas reais de poder de compra.
Mas a questão central é que a proposta de Orçamento de Estado acaba por ir tornando definitivo, aquilo que foi justificado como tendo um carácter excecional e transitório, nomeadamente mantendo aquele que foi o grande agravamento fiscal, em sede de IRS, verificado em 2013, com a redução do número de escalões, o aumento da taxa de imposto em cada escalão, da limitação das deduções à coleta ao nível da saúde, educação e habitação (ao mesmo tempo que mantinha benefícios fiscais para os PPR e seguros de saúde) e da criação de uma sobretaxa extraordinária de IRS de 3,5%, que irá manter-se para o ano. Este é o contexto da reforma do IRS.
A carga fiscal global prevista em 2015 irá aumentar 4,7%, quase 1,8 mil milhões de euros. Só em sede de IRS irá aumentar em 2,4%, ou seja, mais 304,9 milhões de euros. Em sede de IVA irá aumentar 4,6%, ou seja, mais 641,8 milhões de euros.
De tão propagandeada neutralidade fiscal é um embuste, nomeadamente tendo em conta o aumento do peso dos impostos indiretos, onde se incluí a fiscalidade verde.
Não só porque o valor dos impostos indiretos, como o IVA, depende dos níveis de consumo, pagando todos os agregados familiares, independentemente do rendimento disponível ou situação familiar, como quem irá pagar os impostos sobre o consumo não serão os mesmos, sendo certo até que incidirá sobretudo sobre os agregados familiares mais pobres, que hoje não pagam IRS (cerca de 62%, se atendermos aos valores de 2012), tendo em conta que o seu rendimento disponível é gasto em despesas de consumo, de bens essenciais, que viram agravada a sua taxa de IVA.
Impostos indiretos, salientando a dita «fiscalidade verde», que tem também impacto na formação dos preços, quando os bens sujeitos a imposto fazem partes do consumo intermédio de outros bens e serviços.
Na proposta de Orçamento para 2015, prevê-se um novo aumento do peso dos impostos indiretos, representando quase 54% do total de impostos.
Lembrar ainda que o IVA e o IRS representam mais de 70% da receita fiscal, suportada sobretudo pelos trabalhadores por conta de outrem.
Acresce ainda, que o aumento da carga fiscal tem vindo a ser acompanhado com constrangimentos no acesso aos serviços públicos, por via sobretudo da redução do número de trabalhadores da administração central, que aos 60 mil que saíram nos últimos anos, o governo pretende adicionar mais 12 mil.
A mesma política que tira a quem trabalha, continua a engrossar as benesses para o grande capital, o principal beneficiário em sede orçamental.
Em 2015, prevê-se pagar cerca de 1,4 mil milhões de euros de rendas garantidas ao grande capital em PPP, na sua grande parte relativas ao sector rodoviário. Entre 2014 e 2020, a previsão do encargo global destas ascende a 9,7 mil milhões de euros. Estas rendas continuaram até 2039.
Na continuação da reforma do IRC, prevê-se uma nova redução da taxa de IRC pelo segundo ano consecutivo, que passa dos atuais 23% para 21%, ou seja, para beneficiar sobretudo o grande capital, isto para além das benesses já existentes no sector financeiro que fazem mirrar o resultado contabilístico face à coleta, sobre a qual incide a taxa de imposto. Neste contexto, o peso do IRC na receita fiscal arrecadada, volta a cair, prevendo-se que em 2015, represente pouco mais de 12%.
Já para não falar de todos os milhões injetados na Banca ao longo do PAEF e agora os 3,9 mil milhões de euros postos no Fundo de Resolução no caso BES, cujo esforço ainda irá ser pedido, como noutros casos, a quem trabalha, num contexto de socialização dos prejuízos, que o caso BPN foi bem exemplo!
Dizer que existe um reforço da contribuição extraordinária da banca em 31 milhões de euros, quando se põem tetos às prestações sociais para poupar 100 milhões de euros, diz tudo sobre a dita equidade do esforço.
Mas o orçamento beneficia também o capital, com a continuação das privatizações e o desmantelamento do Sector Empresarial do Estado e dos serviços públicos, ou seja, por mais mercado público ao serviço de lógicas de rentabilização privada, ao mesmo tempo que se prescinde instrumentos essenciais para alavancar o desenvolvimento do país e que dificilmente serão recuperáveis no futuro.
Em 2014, avançou-se com a privatização da REN e dos CTT. Alienou-se o sector segurador da CGD, hipotecando o seu futuro e capacidade de apoiar o comércio externo. Avançou para a reprivatização EGF. Pretende-se ainda lançar a privatização da TAP e avançou-se com a privatização dos transportes públicos urbanos na Área Metropolitana do Porto (STCP e Metro do Porto) e espera-se ainda fazer o mesmo em Lisboa (Carris e Metropolitano), até ao final no ano.
Para 2015, continua a venda a retalho. O Governo avança com a intenção de privatizar a CP Carga e concluir o processo de privatização da EMEF. Privatizar a Carristur, após a concessão da Carris. Ao nível dos Portos pretende-se desafetar as áreas não associadas ao uso portuário, para avançar com a concessão para a náutica de recreio e cruzeiro.
É de salientar ainda, neste contexto, a redução continuada dos fluxos financeiros líquidos com a União Europeia. Em 2015, o saldo líquido com a União Europeia representará cerca de 28% do registado em 2012. Sendo certo que estamos no final de um programa comunitário e no início de outro, também por aqui se nota, que o saldo financeiro cada vez menos cobre, as saídas de rendimento nacional para a União Europeia, nomeadamente por via de juros e dividendos.
Conclusão, o orçamento e a política fiscal contribuem assim para operar uma enorme transferência de rendimento do trabalho para o capital, como se fosse uma política redistributiva invertida, que onera os trabalhadores, para beneficiar o capital. Contribuindo para manter uma política de austeridade, que visa restaurar as condições de rentabilidade do capital, acentuando a exploração de trabalho.
Neste contexto, ganham particular relevo as propostas do PCP ao nível fiscal recentemente apresentadas, que permitiriam uma verdadeira política redistributiva, mesmo no atual contexto, com impacto na repartição do rendimento a favor do trabalho, ao mesmo tempo que aumentariam a receita fiscal arrecadada.
A situação económica e nacional impõe ruturas com a política de austeridade e o modelo económico que lhe está associado. Portugal precisa recuperar os instrumentos de política económica e os sectores estratégicos, que permitam alavancar uma estratégia endógena de desenvolvimento económica e social, que aproveite cabalmente os seus recursos endógenos e o potencial da sua força de trabalho.
A questão dos salários, do aumento dos salários e pensões, nomeadamente a reposição do esbulho efetuado nos últimos anos, não é só uma medida indispensável para combater as desigualdades na repartição e distribuição do rendimento, mas também para fomentar e ampliar o nosso mercado interno.
O aumento da produção, ao nível da agricultura, pescas e indústria é fundamental para responder às necessidades do país e garantir melhores termos de troca com o exterior.
A redução do horário de trabalho, não é só um elemento chave do combate à exploração do trabalho, mas uma forma de incrementar o emprego e garantir aos trabalhadores o usufruto dos seus ganhos de produtividade.
A rutura com o Euro e o Tratado Orçamental, é indispensável, para garantir uma política monetária e orçamental ao serviço de Portugal e dos Portugueses.
A renegociação da dívida é fundamental para parar o esbulho de rendimentos nacionais para o estrangeiro e permitir libertar recursos para o investimento.
Parar as privatizações e voltar a pôr em cima da mesa a palavra nacionalização, é indispensável para trazer para o domínio público alavancas fundamentais para o nosso desenvolvimento económico e social.
Sem dúvida, que estas são ruturas também com custos e necessitam da legitimidade e do sacrifício de quem trabalha, da luta e da perseverança, para a garantir a sua cabal concretização.
Mas permanecer na rota em quem estamos, significa continuar na rota do empobrecimento e do aprofundamento dos problemas estruturais do país, ou seja, ter um país adiado e dependente.
Sabemos o que não queremos, sabemos o que precisamos. Se queremos transformar o futuro, temos que agarrar o presente, com a força da luta.