O caminho traçado pela União Europeia para o sector ferroviário não difere do traçado para outros sectores dos transportes como os meus camaradas aqui mostrarão.
Ainda que com percursos históricos distintos, a maioria dos países europeus chegou à última década do século XX com as empresas do transporte ferroviário públicas; de âmbito nacional, isto é, tendo o monopólio em todo o território de um dado país; auto-suficientes na maioria dos fornecimentos; dotadas de um corpo de trabalhadores especializados formados na própria empresa, destilando o conhecimento e a experiência passados de geração em geração e que se ancoravam num normativo técnico interno, assegurando elevados padrões de serviço e segurança. A este normativo somava-se o da UIC, União Internacional de Caminhos de Ferro, que tinha, entre outras, uma actividade de normalização técnica e comercial construída com a participação de todos os seus associados.
Todos os componentes que concorriam para produzir o transporte ferroviário, de pessoas ou de bens, eram harmoniosamente interdependentes como numa árvore saudável. Se começo por aqui é para mostrar como cada um destes componentes foi sendo podado pela União Europeia através, nomeadamente, dos sucessivos Pacotes Ferroviários com o fim da mercantilização de um sector estratégico essencial para a coesão e soberania de qualquer território.
O postulado da Comissão é o de que o transporte ferroviário enferma de um mal que só pode ser curado pelo mercado, aplicando um curativo com alto teor de concorrência. Se não funcionar e tiver de enfrentar a oposição dos trabalhadores e das populações, a Comissão conclui sempre que a dose precisa de ser aumentada, o mercado ajudado, a concorrência incentivada.
O caso português é particularmente trágico uma vez que os sucessivos Governos escolheram sempre o pior dos caminhos apontados pelos Pacotes ferroviários da Comissão, nalguns casos indo muito além do que lá se preconizava.
Exemplo disso é a divisão nunca replicada noutra rede ferroviária, de separar as oficinas de material circulante da empresa mãe CP, introduzindo uma lógica cliente-fornecedor em duas empresas umbilicalmente dependentes entre si, quer nas funções que têm, quer financeiramente, uma vez que a EMEF é detida a 100% pela CP, dona e operadora do material circulante que a EMEF mantém. O único objectivo desta divisão foi o de quebrar a força dos trabalhadores. Quanto ao resultado operacional é o de termos hoje o parque de material circulante no pior estado de conservação dos últimos 40 anos. À falta de trabalhadores, junta-se a falta de peças e equipamentos, aliada à falta de investimento público na CP para fazer as manutenções, tudo rematado com a proibição das empresas públicas contratarem novos trabalhadores e pagarem de forma justa o trabalho extraordinário. Isto empurra as reparações absolutamente necessárias para as horas de expediente, o que conduz à supressão de comboios e à circulação em modo degradado, o que por sua vez encurta a vida útil do material circulante.
Para desfazer os monopólios públicos nacionais a Comissão Europeia preconizava no seu primeiro pacote ferroviário a divisão das empresas entre operadores e infraestrutura. Portugal foi um dos primeiros países a fazê-lo e logo de forma radical, criando duas empresas distintas, CP na Operação e REFER na Infraestrutura, quando o exigido era somente uma separação contabilística. Uma vez mais, introduzindo uma lógica cliente-fornecedor em duas empresas interdependentes, aumenta-se a ineficiência do sistema. Caminhando desde então de costas voltadas, os investimentos efectuados na infraestrutura nem sempre respondem às necessidades do operador, que por sua vez molda a sua oferta não às necessidades das populações, mas à rede disponibilizada.
Outra das panaceias da Comissão é a Interoperabilidade. Constando as diferentes condições técnicas de exploração existentes entre os vários países, identifica aqui um entrave ao desenvolvimento do sector. Este argumento esbarra em duas evidências que a Comissão convenientemente ignora: que a maioria do tráfego ferroviário se faz intra-fronteiras e que o tráfego internacional se realizou desde a fundação do caminho-de-ferro, bastando para tal um entendimento mútuo entre países vizinhos. As medidas legislativas para promoção da Interoperabilidade representam, acima de tudo, um belíssimo negócio para fornecedores de equipamentos ferroviários que assim terão não só um mercado muito maior para os seus equipamentos, como por outro lado verão os seus clientes, as empresas ferroviárias, pressionadas pela Comissão para efectuarem investimentos.
Mesmo apartando-nos da questão específica da interoperabilidade, verdade é que as empresas ferroviárias passaram da autosuficiência na maioria dos fornecimentos para uma dependência de um cada vez menor número de fornecedores, maioritariamente originários das grandes potências europeias que pela via política favorecem o seu exclusivo desenvolvimento industrial.
Esta dependência é indissociável da erosão provocada nos quadros de trabalhadores das empresas ferroviárias pela constante exigência dos sucessivos governos de redução de trabalhadores sem qualquer preocupação em acautelar a passagem do saber específico ao longo de gerações. Sofrem os trabalhadores mais jovens por falta de formação e má integração, e todos pela carga de trabalho extra que lhes é imposta. Nos postos de conhecimento ferroviário especializado isto conduz a uma menor capacidade de escrutínio sobre os sub-fornecedores. Tudo conjugado para a formação de monopólios no fornecimento e da consequente dependência externa.
Para além da política vertida nos 4 pacotes ferroviários a Comissão arranjou um novo dreno de dinheiro público para monopólios privados – o projecto Shift 2 Rail. Com os pretextos de que existem problemas técnicos na ferrovia que obstam à introdução do mercado único ferroviário europeu; que deve haver uma transferência para o modo ferroviário o que exige uma ferrovia melhor e que a Indústria ferroviária europeia precisa de manter e consolidar a sua liderança no mercado mundial, a Comissão Europeia prepara-se para efectuar uma gigantesca adjudicação directa. Como? Atribuindo todo orçamento destinado à ferrovia do Horizonte 2020 a uma parceria público-privada denominada Shift 2 Rail ao que acrescem outros fundos comunitários. Constituída pelos grandes construtores ferroviários, alguns dos quais nem europeus são como a Bombardier, esta PPP gerirá todo o orçamento público de 450 Milhões de Euros para exclusivo proveito do seu negócio. Dada a dimensão da adjudicação algumas empresas ferroviárias nacionais exigiram participar mas sem surpresa só a umas poucas foi concedido esse direito: à sueca Trafikverket e à britânica Network Rail (logo as duas detentoras de infraesturura ferroviária dos países mais liberalizados) a que se somaram posteriormente a alemã DB e a francesa SNCF. Algumas das restantes terão de concorrer a estes fundos agregadas entre si, contentando-se com as migalhas sobrantes, se sobrarem. De fora ficam países com grandes redes ferroviárias e uma significativa tradição industrial, como sejam a Espanha e a Itália. Qualquer que seja o cenário, dos pretextos referidos pela Comissão só se mantém de pé o fortalecimento de meia dúzia de gigantes da indústria ferroviária, pois que ninguém acredita que um passageiro europeu escolherá viajar de comboio porque este tem um melhor pantógrafo ou um extraordinário conversor de tracção.
Desde 1988 que os Portugueses perdem transporte ferroviário; assistem ao encerramento de linhas ditas com poucos passageiros e vêem diminuir a oferta de horários nas restantes. Este caminho foi deliberadamente escolhido pelos sucessivos Governos, convenientemente ajudados pelas políticas da Comissão Europeia que juntos promovem uma Europa a duas velocidades. Enquanto Portugal perdeu 43% dos seus passageiros.kilómetro (PK); a Alemanha ganhou 24% e a França 35%, só para mencionar dois dos países mais favorecidos pelas políticas europeias e cujas multinacionais se preparam para controlar o que nos resta, garantindo em troca cada vez menos transportes a um cada vez maior preço.