Intervenção de João Ferreira, Deputado ao Parlamento Europeu, Debate «Reforma da PAC 2013-2020: Perigos para as produções nacionais»

A situação da agricultura nacional é inseparável dos condicionalismos resultantes da Política Agrícola Comum

A situação e a evolução da agricultura nacional é inseparável dos condicionalismos resultantes da inserção na Política Agrícola Comum da União Europeia. O persistente défice da balança agro-alimentar; o desaparecimento de milhares de explorações, em especial de pequenos e médios produtores; o acentuado envelhecimento da população agrícola; o desenvolvimento de tipo capitalista verificado na agricultura nacional, com a concentração da propriedade e da actividade – são factores, entre outros, inseparáveis da orientação, do conteúdo e dos efeitos da PAC e das suas sucessivas reformas.

Esta inicitiva insere-se num amplo e participado processo de discussão, marcado por outras iniciativas anteriores, que foram sendo realizadas em momentos distintos. Numa primeira fase, antes ainda de conhecidas as orientações da Comissão Europeia para a presente reforma (mas bem sentidas as consequências do caminho que aqui nos trouxe). Num segundo momento, conhecidas que foram essas orientações gerais, às quais contrapusemos um caminho alternativo para uma profunda modificação da actual PAC. Realizamos agora este debate, num momento em que é já conhecida a proposta de reforma apresentada pela Comissão Europeia e em que os projectos legislativos que lhe dão corpo estão em discussão no Parlamento Europeu e no Conselho.

Connosco, nesta reflexão, estão representantes de diversas organizações ligadas à agricultura e ao mundo rural, bem como de outros sectores que lhe estão intimamente associados. Estão também connosco representantes de partidos membros do Grupo da Esquerda Unitária/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL) do Parlamento Europeu, de Espanha – da Esquerda Unida – e da Irlanda – do Sinn Fein – que nos trarão aqui o testemunho e a experiência dos seus países e a quem queremos daqui dirigir uma especial saudação. (Contaremos também com um contributo do Partido Comunista da Grécia, que atendendo à conhecida situação no país e às exigentes tarefas a que são chamados os seus militantes neste período eleitoral, acabou por não poder estar presente.) A todos queremos agradecer, certos de que a vossa presença em muito enriquecerá este nosso debate e as suas conclusões.

O mote deste debate – “Perigos para as produções nacionais” – contém em si já uma apreciação da proposta de reforma em cima da mesa. Uma proposta que não altera as traves mestras da actual PAC; uma proposta que representa o prosseguir do mesmo caminho que conduziu a agricultura portuguesa à precária condição em que hoje se encontra.

Como até aqui, em causa continuará o direito à soberania e à segurança alimentares dos diferentes Estados-membros, o seu direito a produzir.

Vejamos alguns (e apenas alguns) dos aspectos mais significativos da proposta de reforma da PAC em discussão.

Em relação aos pagamentos directos (o chamado 1º Pilar), prevê-se a aplicação de um novo “regime de pagamento de base”, com um sistema uniforme por hectare a nível nacional ou regional.

O objectivo, diz a Comissão Europeia, para além da simplificação de regras, consiste em reduzir as discrepâncias entre os níveis dos pagamentos entre agricultores, entre regiões e entre países.

Estas desigualdades na distribuição dos pagamentos – entre agricultores, dentro de cada país, e entre países – são, de facto, um dos maiores escândalos da actual PAC! Depois de sucessivamente terem desmantelado os instrumentos de regulação da produção e dos mercados – essenciais, como hoje se constata, para garantir preços justos à produção e para salvaguardar inúmeras produções nos países com sistemas produtivos mais débeis; depois de defenderem o que dizem ser uma PAC “orientada para o mercado e para a competitividade”; persistiram em escandalosas desigualdades na distribuição dos apoios da PAC, obrigando a competirem directamente no dito mercado produções com níveis de apoio brutalmente desiguais. Como dizem muitos dos nossos agricultores, para os quais, neste quadro, as (mal)ditas ajudas da PAC não representaram senão uma progressiva e violenta asfixia, “com o apoio que dão a um agricultor francês ou alemão, também nós seríamos competitivos”.

Vejamos alguns números (dados do Eurostat, fornecidos pelo MAMAOT):

Portugal tem uma Superfície Agrícola Útil que corresponde a 2,2% do total da UE. Em termos de Unidades de Trabalho Agrícola o peso é um pouco superior: 3,1% do total da UE. Mas o total dos pagamentos directos dirigidos a Portugal (total de verbas do 1º Pilar) não representa mais do que 1,3% do total da UE.

E mesmo que somemos a estas as verbas do 2º pilar, considerando o total de verbas da PAC transferidas para o país, continuaríamos a ter um valor ainda inferior ao peso da SAU nacional no conjunto da UE.

Cedendo às pressões das grandes potências, vem agora a Comissão propor uma redução – note-se bem, uma redução, e não uma eliminação, como se exigia! - das discrepâncias. Vejamos de que redução se trata...

A proposta é que aqueles que recebem menos de 90% do pagamento médio por hectare da UE vejam a distância para esses 90% encurtada em um terço. Consequência prática? Portugal, que actualmente recebe uma média de 154 euros por hectare de pagamentos directos (61% da média da UE, que é de 251 euros por hectare), passaria a receber na futura PAC uma média de 167 euros por hectar (o equivalente a dois terços, 66%, da média da UE). O peso dos pagamentos directos a atribuir a Portugal face ao conjunto da UE passará dos actuais 1,3% para 1,4% (números divulgados pelo MAMAOT).

Se no plano nacional – onde, como bem sabemos, também existem enormes desigualdades na distribuição das ajudas – se prevê uma convergência, com a introdução da “ajuda uniforme” por hectar em 2019, já no plano da UE, a Comissão propõe-se realizar a “plena convergência” entre países, com a chamada “ajuda uniforme”, apenas daqui a dois quadros comunitários, ou seja, em 2028. Até lá, continua a vigorar a referência histórica na atribuição de pagamentos. Repito e sublinho: 2028!

Se até lá ainda houver PAC, se até lá ainda existir a UE, se até lá as grandes potências não mudarem de ideias quanto a esta “plena convergência”, há uma coisa que podemos dar por garantida: o panorama da agricultura nacional, no quadro da persistência das actuais políticas, nacionais e comunitárias, será profundamente distinto do actual. E não será para melhor...

No novo desenho dos pagamentos directos, o pagamento de base será complementado por outros prémios – o mais significativo é o chamado pagamento ecológico (por hectar), que consiste numa ajuda obrigatória através do cumprimento de certas práticas culturais compatíveis com a preservação do ambiente. 30% das dotações nacionais serão destinadas a este pagamento. É o chamado “greening” ou “esverdejamento”.

De que práticas culturais estamos a falar, para se poder receber o pagamento ecológico?

São três as medidas previstas: 1. a manutenção de pastagens permanentes; 2. a diversificação das culturas (um agricultor tem de praticar pelo menos três culturas diferentes nas suas terras aráveis, nenhuma das quais deve ocupar mais de 70% das terras e a terceira pelo menos 5% da superfície arável); e 3. a manutenção de uma “superfície de interesse ecológico” de, pelo menos, 7% das terras agrícolas (com exclusão dos prados permanentes) – isto é bordaduras, sebes, árvores, terras em pousio, características paisagísticas, biótopos, faixas de protecção e superfícies florestadas.

Mesmo sem outras considerações que sempre se poderiam fazer, relativas à coerência e à oportunidade (ou oportunismo) deste “esverdejamento”, ou à função primordial de qualquer política agrícola – a produção de alimentos, (mesmo sem aprofundar estas considerações, dizia) torna-se necessário assinalar a desadequação das práticas de “greening” propostas à diversidade das agriculturas nos diferentes Estados-Membros.

Mais uma vez, toma-se como referência, privilegiando-a, a realidade das grandes explorações do Norte e Centro da Europa, esquecendo-se a situação específica – e distinta – dos países do Sul, como Portugal. A consideração da realidade específica dos diferentes países levaria necessariamente à reconsideração dos limiares propostos no que se refere à prática da diversificação das culturas e da superfície de interesse ecológico. Levaria a reconhecer sistemas e práticas como o montado, o olival ou a cultura do arroz, entre outros, como exemplos de práticas que devem poder ser compatíveis com o tal “esverdejamento”, atendendo ao inquestionável valor ecológico que podem ter alguns destes agrossistemas.

Outro pagamento complementar ao pagamento de base, serão os referentes às “Zonas com condicionalismos naturais”. Estas zonas são definidas com base nas regras do desenvolvimento rural, que prevê as opções relativas às chamadas Zonas Desfavorecidas.

Cabe aqui um comentário relativamente à reclassificação das “zonas desfavorecidas”, proposta em 2005 e que se pretende que seja aplicada na próxima PAC. Esta reclasificação excluiu os critérios socioeconómicos, sob o pretexto da necessidade de maior objectividade dos critérios. Com esta alteração, subverteu-se o conceito de zona desfavorecida. A actual definição apenas considera a dimensão biofísica, ignorando toda a dimensão socioeconómica. Persistem dúvidas sobre as consequências desta alteração. O que sabemos é que a Comissão atribuiu a um painel de peritos a tarefa de definir os critérios biofísicos. Painel que não incluiu nenhum perito nem nenhuma instituição portuguesa, o mesmo sucedendo com a esmagadora maioria dos Estados-Membros.

Os perigos são evidentes: perante a diversidade de situações existentes, a complexidade da tarefa de definir critérios uniformes pode resultar, mais uma vez, na desadequação dos critérios a realidades específicas de alguns países. Podem sair prejudicadas algumas das regiões mais pobres da UE, e podem agravar-se, ainda mais, as desigualdades e injustiças existentes na distribuição das verbas da PAC.

Voltando aos pagamentos, a filosofia geral continua a ser a do desligamento das ajudas à produção. Admite-se um possível pagamento ligado, limitado todavia ao pouco que já vem de trás. No máximo, 10% da dotação nacional.

Outro pagamento complementar – o dos jovens agricultores – assim como o regime específico dos pequenos agricultores agora proposto, no contexto mais amplo da reforma proposta, terão mais efeitos propagandísticos do que outra coisa. A tentativa é claramente ajudar a legitimar uma PAC desacreditada aos olhos dos agricultores e mesmo de largos sectores da população, entre outras razões, precisamente porque arrasou a pequena e média produção, a agricultura camponesa e familiar, e porque levou ao envelhecimento profundo da população agrícola. Em Portugal, segundo dados do MAMAOT, são 2% os agricultores com menos de 35 anos.

Quanto ao regime específico para os pequenos agricultores, a Comissão prevê um pagamento entre 500 e 1000 euros por ano, por produtor, em explorações com dimensão até 3ha. Na aplicação concreta a Portugal, os critérios propostos levarão à fixação deste pagamento em torno do limite inferior deste intervalo, ou seja, os 500 euros. 500 euros por ano, por produtor. Este valor, destinado às pequenas explorações, contrasta com o limite superior agora proposto para as grandes explorações: 300.000 euros, ou seja, 600 vezes mais.

O conceito de "agricultor activo" insere-se também nesta linha legitimadora duma PAC que durante os últimos anos garantiu rios de dinheiro a grandes proprietários, sem que estes tivessem qualquer obrigação de produzir. O que não será, na essência, alterado com esta proposta. Continuaremos a ter situações como, por exemplo, as grandes extensões de ditas pastagens permanentes, mas sem animais ou com um encabeçamento marginal, que garantem largos rendimentos aos seus proprietários. É, aliás, sobretudo a pensar em casos como estes que parece ter sido feita a proposta de "greening" (ou “esverdejamento”) e os pagamentos complementares que lhe estão associados.

Mas apenas ainda de passagem me referi àquele que será, afinal de contas, o mais relevante e mais gravoso aspecto desta reforma: o prosseguimento do desmantelamento dos instrumentos de regulação da produção e dos mercados – indispensáveis para garantir preços justos à produção. O que por sua vez é indispensável para inverter o declínio do mundo rural e para inverter também o défice da balança agro-alimentar nacional.

A intervenção pública, já em níveis manifestamente insuficientes, é agora reduzida às intervenções de emergência, quando o que era necessário era reforçá-la para, precisamente, evitar as emergências! A insistência na "orientação para o mercado” e para a “competitividade", desregulando a produção e desregulando os mercados, agravará a pressão para a baixa dos preços à produção, o problema central que hoje enfrentam os agricultores, em especial os pequenos produtores, com larga prevalência no tecido rural nacional.

A Comissão insiste na eliminação das quotas leiteiras – cujo efeito é já hoje violentamente sentido, em virtude de uma aterragem que, como a vida o demonstrou, foi tudo menos suave. Insiste também na eliminação dos direitos de plantação da vinha, ao mesmo tempo que se apresta a terminar também com o regime de quotas do açúcar.

O que se está a criar são situações verdadeiramente liquidatárias de sectores que já hoje enfrentam visíveis dificuldades, como o da produção leiteira e o da vinha. Em qualquer dos casos, a consequência previsível e já sentida será o "encharcamento" do mercado nacional por produção estrangeira e uma pressão ainda maior para a baixa dos preços na produção.

O PCP continuará a intervir activamente no Parlamento Europeu, durante a fase de discussão dos relatórios da PAC, em defesa das quotas leiteiras e dos direitos de plantação da vinha.

O desmantelamento dos instrumentos de regulação da produção e dos mercados é agravado pelas consequências da política comercial da UE, fundada no livre comércio. A agricultura foi e é a moeda de troca para abrir a porta de mercados de países terceiros aos grandes interesses industriais e dos serviços das principais potências da UE. O exemplo recente de Marrocos e do acordo de livre comércio recentemente assinado no domínio dos produtos agrícolas e da pesca é disso exemplo elucidativo. Os países mais prejudicados serão aqueles, como Portugal, em cuja prevalência de produções mediterrânicas na estrutura produtiva – como as hortícolas, as frutas ou o azeite – é mais significativa.

Sobre todos os aspectos de que aqui vos falei, e sobre outros que certamente passarão pelo nosso debate, importa dizer que as coisas não estão ainda decididas. Se o ponto de partida para esta discussão são as intenções da Comissão e dos interesses que esta serve, é importante dizermos que o ponto de chegada desta reforma poderá ser diferente. A mobilização e a luta dos agricultores e das suas organizações, do mundo rural, mas mais do que isso, da generalidade da população em torno de objectivos de indiscutível estratégico nacional, serão determinantes para o desfecho deste processo. Ela poderá mesmo inviabilizar a concretização destas perigosas intenções. O PCP tem um vasto património de intervenção, de luta e de proposta, seja no plano nacional, seja no Parlamento Europeu, em torno das questões relacionadas com a agricultura e o mundo rural. Um património construído em permanente e estreita ligação com os agricultores e as suas organizações, que assim queremos manter. Será pois em diálogo e aprendendo com a experiência de todos vós que travaremos mais esta batalha.

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