Intervenção de João Amaral na Assembleia de República

Serviço Militar Obrigatório

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

A passagem de um modelo de Forças Armadas baseado no Serviço Militar Obrigatório para umas Forças Armadas de profissionais e contratados representa uma profunda alteração qualitativa numa área particularmente sensível e de uma enorme importância para a credibilidade externa do Estado. Um salto como esse exige, absolutamente, ponderação, previsão completa dos efeitos do novo sistema, e clara definição da resposta a dar aos problemas emergentes. Não se pode dar um salto como este para depois verificar que afinal o sistema não funciona, que não há gente suficiente para as necessidades, que se provocou uma crise grave nas Forças Armadas designadamente quanto à sua aceitação pelo país, que se retirou toda a eficácia a quaisquer mecanismos que assentem na obrigatoriedade do serviço militar, deixando a componente militar de defesa poder degradar-se e perder os padrões mínimos que o país lhe exige.

Discutimos hoje esse novo modelo de Serviço Militar nas piores circunstâncias imagináveis: quando o trabalho da Comissão e as audições feitas já demonstraram que não há resposta na proposta do Governo para os problemas emergentes do novo modelo, e que portanto o salto que se pretende dar é um salto no escuro, totalmente inadmissível quando se está a tratar de defesa nacional e da sua componente militar.

Aqui estamos então sob o signo da superficialidade e do eleitoralismo. Superficialidade, que se torna irresponsabilidade quando se vê o Governo a apresentar uma proposta desta importância sem a preparar devidamente e sem medir as suas consequências. Eleitoralismo, porque é agora, a seis meses das eleições, que chega a febre de aprovar à pressa uma reforma com este alcance, mesma que esteja demonstrado que a proposta tal como está feita é aventureira, imponderosa e contraditória.

A superficialidade e o eleitoralismo começaram no Governo, mas depressa se estenderam ao PSD, que resolveu, como o cuco, fazer a postura em ninho alheio. De facto, o PSD entrou na corrida eleitoralista com um projecto apresentado há dias, em boa parte decalcado de observações e críticas que toda a Comissão ouviu nas audições, mas de que o PSD se resolveu apropriar. Aquilo que o PSD talvez achasse que era um brilharete (copiar observações feitas e pespegá-las num papel a que chama projecto), não passa de um pífio oportunismo, por que o PSD apresenta um projecto sem ter o mínimo controlo sobre a informação de suporte. A proposta do Governo é um tiro no escuro, a do PSD é um tiro para o ar. Aliás, os objectivos do PSD ficam claros quando se registam três factos: primeiro, que o líder do PSD veio à Assembleia discutir esta matéria com os Deputados da JSD, e não com os Deputados da Comissão de Defesa. Quer lá o Professor saber de defesa nacional, o Professor quer é votos! Segundo facto: a proposta de redução do período de transição dos 4 anos propostos pelo Governo para um período de 2 anos, ainda por cima com redução do período de SEN durante esses dois anos. Isto é, propaganda irresponsável e oportunista, quando está provado que mesmo o período de 4 anos é questionável por escasso! Terceiro facto: o ridículo de criticar o Governo por continuar a propor o SMO como recurso para a falta de contratados e afinal no artigo 37º propor o mesmo, com uns toques de disfarce, mas, na realidade, exactamente o mesmo. O ridículo mata, Senhores Deputados do PSD!

Esta irresponsabilidade e eleitoralismo do PSD e do PS não é de agora. Vem de 1991, quando foi aprovado o Serviço Efectivo Normal de 4 meses, com o qual o PS competiu com uma proposta que previa a hipótese de um SMO de 3 meses. Hoje não há ninguém que não diga que um SEN de 4 meses era a morte anunciada da obrigatoriedade do serviço militar. O PSD vem agora com todo o despudor gabar-se disso. Na altura, só PCP denunciar a farsa. O PS embarcou. Durante anos, os dirigentes do PS e do PSD deixaram crescer, quando não alimentaram, uma campanha de descrédito das Forças Armadas e do SMO. Não mexeram uma palha para dignificar a prestação do Serviço Militar. Deixaram apodrecer a situação. Para quê? Para agora mostrarem que não têm soluções sérias para os problemas que a reforma militar vem criar. Não querem pagar o preço que, em termos orçamentais, ela representa para ser eficaz. Apresentam propostas que são um logro, já que se baseiam na previsão do recurso ao mesmo SMO com que dizem querer acabar. E um logro perigoso para as Forças Armadas, por que nada pode garantir a exequilibilidade social de uma obrigatoriedade quando a propaganda anuncia o fim da obrigatoriedade!

A proposta do Governo sobre o serviço militar, repito-o, é uma proposta de enorme fragilidade, imponderada, mal preparada, cheia de erros técnicos. Contam-se por dezenas e dezenas as propostas de alteração na especialidade que foram apresentadas à Comissão por especialistas e entidades diversas. A insatisfação é geral. Raramente uma proposta consegue um tão longo largo de críticas e oposições.

No espaço desta intervenção não é possível analisar todas as questões, mas apenas as essenciais.

Os desafios fundamentais para o modelo de Forças Armadas de profissionais e contratados são essencialmente quatro: primeiro, o sistema tem de garantir que consegue produzir o número de aderentes (profissionais e contratados) considerados necessários para as missões e sistema de forças em tempo de paz; segundo, o sistema deve conter os mecanismos necessários para o crescimento necessário das Forças Armadas para as situações de excepção, incluindo a guerra; terceiro, deve ficar garantida uma correcta compreensão por parte da população sobre os deveres gerais militares que sob ela impendem, no quadro do dever de defesa da Pátria; quarto, deve estar garantido que não se cria um fosso entre as Forças Armadas e o país.

A proposta é absolutamente um desastre, vista de qualquer destas quatro exigências.

A questão insolúvel da proposta é que ela não faz o que anuncia, isto é, não acaba com o SMO. Para acabar com o SMO teria de abrir os cordões à bolsa, propondo remunerações atractivas, incentivos concretos e não balelas como doutoramentos e mestrados, e muita flexibilidade na gestão destes incentivos ano a ano. A questão teria de se pôr aqui como com uma qualquer outra actividade. A partir do momento em que as Forças Armadas têm de concorrer no mercado para arranjarem soldados, têm que ter meios para vencer a competição. Basta ler as críticas da Associação Nacional dos Contratados do Exército para compreender que o Governo está muito longe de ter percebido o problema.

Como não quer abrir os cordões à bolsa, o que o Governo faz é pura e simplesmente prever o que chama "recrutamento excepcional", e que não passa da manutenção do SMO, ainda por cima na desgraçada versão do SEN de quatro meses! Só que, entretanto, ao anunciar que esse SEN desaparecia mas afinal mantê-lo, cria todas as condições para um conflito com os jovens, cujo despacho nada garante à partida que seja favorável à componente militar de defesa nacional.

Basta analisar a proposta para perceber o descalabro a que ela conduz.

Desde logo, a proposta acaba com o recenseamento militar universal e subsequentes operações de classificação e selecção, distribuição e alistamento. É uma opção irresponsável, por quatro razões: primeiro, porque desta forma se dá cabo de um conjunto de operações necessárias para conhecer a realidade da juventude do ponto de vista das necessidades militares do País; segundo, porque esse conhecimento é essencial para as operações de mobilização em situações de excepção; terceiro, porque, propondo o Governo a continuação do SEN, tem que fazer o recenseamento geral e definir a partir daí os critérios objectivos de recrutamento obrigatório. Ou seja, é a própria lógica da proposta do Governo que obriga a fazer o que o Governo dispensa, o recenseamento geral. A quarta razão pela qual esta opção é uma opção errada tem a ver com uma outra questão central, onde o Governo falha completamente e que é a ligação dos portugueses às questões e à realidade da defesa nacional na sua componente militar. Este conjunto de operações representam e consubstanciam uma expressão dos deveres militares que impendem sobre todos os portugueses e a sua concretização é uma oportunidade para realizar um contacto com as Forças Armadas. O Senhor Ministro vem com a escola e o seu papel formativo. Muito bem, embora muitos de nós tenhamos tido a triste experiência da cadeira de Organização Corporativa que o regime fascista impunha. Às vezes, isso tem um efeito perverso...

Mas, nada substitui o contacto directo, o conhecimento do que são as Forças Armadas e as suas missões, conhecimento que estas operações permitem e que pode e deverá ser potenciado.

Ao mesmo tempo que acaba com o recenseamento geral, a proposta deixa sem resolução os mecanismos para o crescimento das Forças Armadas em tempo de crise.

Não há soluções ao nível do processo de mobilização, e a convocação dos contratados aparece como uma espécie de recurso de via única, que funcionará inevitavelmente como um desincentivo ao contrato! Aliás, esta convocação dos disponíveis após contrato permite que seja feita nos seis anos seguintes mesmo que para além de 35 anos, criando uma situação de desigualdade insustentável.

A irreflexão da proposta vai ao ponto de ter ignorado sérios avisos que altos responsáveis das Forças Armadas fizeram acerca do recrutamento de voluntários. Os dados disponíveis mostram que o Exército precisará de subir das actuais praças em regime de contrato em número de 8.600 para cerca de 16 mil. Ora, os números mostram que das 8.600 praças contratadas a esmagadora maioria vem do SEN. O que mostra que o SEN é o maior recrutador. Se o SEN acabasse, as consequências sobre o recrutamento de contratados seriam desastrosas (agravadas por um índice preocupante, que foi uma regressão no número de contratados entre 1997 e 1998 - menos cerca de 1000 militares). Depois de isto tudo, prever 4 anos para acabar com o SEN é pura demagogia. Se fosse mesmo para acabar por imposição administrativa, seria uma irresponsabilidade criminosa. Assim, é eleitoralismo barato e inconsequente.

Por falta de tempo, não poderei fazer uma análise de especialidade detalhada a outras questões que a proposta levanta. Falarei só de algumas, de passagem.

O ficheiro de dados pessoais referido no artigo 48º (o "recenseamento de características pessoais") corresponde a uma espécie de ficha do cidadão, com cruzamento de informações. Era só o que faltava que a Lei do Serviço Militar servisse ao Ministro Veiga Simão e ao Governo PS para criar um "Big Brother"!

A dispensa de deveres militares para os jovens do ensino superior é um escândalo. Mostra que o Governo quer uma espécie de exército da ralé, de que estão dispensados os doutores e os engenheiros. Esta visão socialista do princípio da igualdade é de um despudor sem limites!

O princípio da igualdade é também violado no artigo 31º. Os deveres das mulheres têm que ser iguais, para serem iguais também em direitos.

Chamarei a atenção da Comissão para o artigo 38º, que modifica o regime actual de garantias dos militares. Até hoje, ninguém podia ser prejudicado no seu emprego por razão do cumprimento dos deveres militares. Nesta versão, só os que têm emprego permanente é que são protegidos. Se se combinar isto com o incentivo do pacote laboral do PS ao emprego não permanente, isto significa esvaziar enormemente a norma.

Finalmente, as penas aplicáveis às infracções passam a ser coimas. Quem tiver "massa" paga! Não há política criminal que resista a esta negação de valores, contida nesta alteração!

Outros dois aspectos têm a ver com a questão de idade de recrutamento e com o tempo de contrato. Não parece curial prever novamente o recrutamento aos 17 anos quando há um movimento internacional centrado na ONU, para passar a idade mínima de serviço militar para os 18 anos.

Por outro lado, os nove anos de contrato parecem excessivos. E muito mais excessivos, absurdos mesmo, os contratos de 20 anos para certas situações. Vinte anos de trabalho, se não é trabalho permanente, então o que é trabalho permanente?

Não queria deixar de dizer umas breves palavras sobre a outra proposta do Governo que também está em debate, de alteração da Lei de Defesa Nacional. A proposta limita-se na maior parte a reproduzir as alterações à Constituição posteriores à aprovação da Lei nº 11/82. Às vezes de forma inconsequente, dizendo como diz a Constituição, que "a lei regulará" isto ou aquilo. Para dizer isso, não vale a pena escrevê-lo... na lei. Por outro lado, partilhamos da crítica de que a missão principal das Forças Armadas, a defesa militar da República, acaba diluída.

Por outro lado ainda, é um bocado exagerado(!) dizer que a organização das Forças Armadas se baseia em tempo de paz no serviço militar voluntário, quando o que se constata na proposta respectiva, é que se mantém o SEN!

O que interessa, entretanto, são as alterações ao artigo 31º. Não vou referir as falsas alterações de redacção (basta ver o nº 4), ou até equívocas (ver o nº 9, que permite a recusa de passagem à reserva). Vou referir a alteração ao nº 6, que se refere ao direito de associação.

A proposta é uma pura mistificação, por manter a obrigação das associações profissionais terem de ter "carácter técnico ou deontológico". Esta norma pode mesmo dizer-se que até já caiu em desuso, basta ouvir as audiências que a Comissão de Defesa tem dado às associações sócio-profissionais sobre problemas sócio-profissionais e até sobre questões com a relevância política e institucional que tem a presente proposta de Lei de Serviço Militar.

A apresentação desta proposta de nº 6 do artigo 31º viola compromissos públicos que têm sido assumidos em nome do PS, corresponde a uma concepção retrógrada do papel dessas associações e do que é o militar-cidadão, e representa, repito-o, um recuo em relação à prática existente.

Estamos claramente contra esta proposta, que justamente foi objecto de severas críticas das associações e, implicitamente, dos muitos militares que defendem abertamente o reconhecimento do associativismo socio-profissional (sem natureza sindical). Essa posição é aliás hoje assumido por vários ex-chefes militares, generais e almirantes, que subscreveram declarações nesse sentido.

Terminamos com um desafio e com uma saudação. Está demonstrado que a proposta de Lei do Serviço Militar não é uma base de discussão aceitável. Nem o clima político pré-eleitoral é o clima de serenidade necessário para ponderar e tomar decisões tão condicionantes para o nosso país e para a estratégia global do Estado.

Por isso, desafiamos os Senhores Deputados e o Governo a tomarem uma decisão talvez eleitoralmente difícil, mas que o sentido de Estado impõe: Propomos aos partidos aqui representados e ao Governo, a suspensão deste processo para ser retomado após às eleições, com toda a serenidade e sentido da responsabilidade, e com tempo suficiente para o seu estudo e decisão acertada.

Enfraquecido por sucessivas crises, desde a crise das chefias militares do ano passado, aos choques com a Comissão de Defesa e agora a crise do SIEDM e os comportamentos impróprios que tem gerado, este Ministério da Defesa Nacional não está à altura nem em condições de conduzir e ser responsabilizado por uma reforma como esta. Para o fazer, teria de ter demonstrado outra sensibilidade para os problemas que ela levante, outro posicionamento como Ministro desta área.

A proposta de suspensão do debate e adiamento para depois do período, corresponde à defesa do interesse nacional na adopção de soluções concretas nesta área. Mas é feita também pensando nas centenas de milhar de portugueses, de compatriotas nossos que agora nos ouvem, e que cumpriram o Serviço Militar.

Estes devem ser hoje aqui saudados, pelo contributo que deram à comunidade, e que a muitos causou sacrifícios, às vezes irreparáveis.

Eles têm o direito de esperar que a Assembleia da República não deite fora irreflectidamente o património que essas gerações de conscriptos criaram, um património de relacionamento, de cumprimento de obrigações, de solidariedade nacional. Eles exigem ponderação, e defesa do interesse nacional.

Disse.

 

  • Soberania, Política Externa e Defesa
  • Assembleia da República
  • Intervenções