Permitam-me no encerramento deste seminário co-organizado pela Delegação do PCP no Parlamento Europeu e pelo GUE/NGL, começar por saudar todos os participantes e valorizar os contributos que aqui nos trouxeram os diversos oradores deste seminário, nomeadamente aqueles que não sendo militantes do PCP aceitaram o nosso convite para connosco partilhar as suas reflexões. A todos o nosso agradecimento.
Um agradecimento que em nome da Direcção do PCP gostaria ainda de estender de forma especial aos nossos convidados estrangeiros, representantes do AKEL do Chipre, do Partido Comunista Britânico, do Partido Comunista Francês, do Partido da Refundação Comunista de Itália e do Partido Comunista da Ucrânia.
A eles reafirmamos a nossa solidariedade para com as lutas em que estão envolvidos, as batalhas comuns em prol dos direitos, do progresso, do desenvolvimento, da paz e pela soberania. Uma solidariedade que queremos reiterar de forma especial aos camaradas do Chipre na luta pela reunificação do seu País e pelo fim da ocupação turca, bem como aos camaradas ucranianos vitimas da repressão e perseguição fascista e anticomunista.
Por este seminário passaram várias intervenções que comprovaram que os povos do continente europeu vivem tempos de grande instabilidade, de profunda crise social e económica, de regressão civilizacional e de retrocesso democrático. Não será exagero afirmar que vivemos um dos mais delicados, complexos e perigosos períodos após a Segunda Guerra Mundial. Um período em que páginas negras da História do nosso continente surgem novamente no horizonte - como a guerra e o fascismo -; em que conquistas sociais alcançadas pela luta de gerações e gerações de trabalhadores são atacadas abertamente; em que os direitos democráticos e de soberania dos povos são postos em causa; e em que os mais básicos direitos humanos são espezinhados e negados às vítimas da maior crise humanitária de que há memória desde a Segunda Guerra Mundial.
Poder-se-á afirmar que esta situação decorre de uma tendência global, do aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e da ofensiva imperialista que com ela se aprofunda. E isso é verdade, tal como é verdade que a Europa e os seus Estados são também afectados, de acordo com as suas próprias condições, pelo muito complexo processo de rearrumação de forças que se desenvolve no plano internacional.
Mas, simultaneamente, vivemos num continente onde o desenvolvimento do capitalismo na sua fase imperialista na Europa se traduziu, sobretudo desde a segunda metade do século XX, em tentativas diversas de construção de uma superestrutura de natureza imperialista que correspondesse aos interesses do grande capital no continente europeu; que abrisse caminho à reafirmação no plano mundial das “velhas” potências coloniais europeias; que desse resposta económica, política e ideológica aos processos de construção do socialismo no leste europeu e na URSS e que se articulasse de forma mais efectiva com a principal potência imperialista – os EUA – nomeadamente no plano económico, militar e geoestratégico.
Trata-se acima de tudo de um processo de concentração de capital e de poder, um instrumento de domínio e afirmação imperialista das principais potências europeias, com destaque, na actualidade para a Alemanha. E é devido a essa sua natureza de classe que esse mesmo processo é cada vez mais corroído pelas mesmas e cada vez maiores contradições insanáveis do capitalismo.
Durante décadas foi possível, devido a condições particulares do desenvolvimento capitalista na Europa mitigar essas contradições. Com o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, nomeadamente no plano económico, intensificam-se de forma rápida e violenta as contradições do processo em torno de questões de classe, da questão nacional, da legitimidade política e das rivalidades inter-imperialistas, com expressões muito importantes nos planos económico, político, institucional e de evolução dos sistemas políticos.
Estes vectores de contradição confluem numa crise «sistémica», profunda, persistente. É óbvio que essa crise sempre esteve latente no processo de integração capitalista. Faz parte do processo e ele próprio foi-se alimentando das manifestações de crise em ciclos sucessivos de crise/superação em que o binómio alargamento/aprofundamento serviu para avançar no processo.
A história do capitalismo no plano mundial e do próprio processo de integração capitalista na Europa aconselham prudência na leitura da situação e obrigam-nos a recordar a, às vezes surpreendente, capacidade de recuperação do sistema das suas próprias crises. Contudo, e não esquecendo isso, o grau de concentração de poder a que chegou o processo é tão grande, as contradições - nomeadamente entre a base e a superestrutura – estão a intensificar-se de tal forma, que é correcto afirmar que à enorme magnitude da crise estrutural do capitalismo no Espaço da União Europeia corresponde uma profunda crise da União Europeia, dos seus pilares, estrutura e fundamentos. Uma crise que comporta elementos qualitativamente distintos face a momentos anteriores.
Elementos esses que já conduziram a acontecimentos que há poucos anos pareciam inverosímeis – como a decisão em referendo da saída da União Europeia de uma das mais antigas potências imperialistas da Europa ou a discussão aberta sobre a possibilidade de desagregação da União Europeia – e que podem conduzir a outros cenários como o de uma reconfiguração do próprio processo.
Cenários à parte, uma coisa é certa, estamos perante uma muito profunda crise na e da União Europeia.
Uma crise que se expressa desde logo no plano económico e social. A realidade de Estados mergulhados em processos de autêntica destruição económica; a profundíssima crise social com mais de uma centena de milhões de pobres e dezenas de milhões de desempregados; a estagnação económica e a tendência deflaccionária persistente; os níveis insuportáveis das dívidas soberanas; a instabilidade permanente do sistema financeiro; a desindustrialização em vários países da chamada «periferia», são elementos dessa profunda crise económica e social sem fim à vista.
A gestão das instituições da União Europeia, nomeadamente do BCE, com a redução histórica das taxas de juro e a injecção massiva de capital no sistema financeiro, não só se está a revelar ineficiente como está a contribuir para mascarar problemas de fundo e inflacionar a bolha financeira e especulativa que pode estar prestes a rebentar de novo. Como os recentes dados económicos relativos ao segundo trimestre de 2016 comprovam, as grandes economias da União Europeia padecem de sérios problemas, como o demonstra a estagnação económica na França e na Itália, as quebras da produção industrial e das exportações na Alemanha ou ainda as situações explosivas em alguns dos megabancos europeus.
Como seria de esperar esta crise está associada e atinge em cheio o principal instrumento de domínio económico da União Europeia - o Euro e a União Económica e Monetária. A propaganda de que o Euro serviria de “escudo” contra uma crise “externa” ruiu por completo. Se há realidade que é hoje evidente essa é a de que a existência do Euro, longe de ser solução para coisa alguma, é, ao invés, um dos principais factores da crise económica, financeira e social, impeditivo do desenvolvimento económico e social de vários estados membro, elemento agressor de direitos e dignidade dos trabalhadores e dos povos. Os discursos da “solidariedade” e da “coesão” são liminarmente desmentidos pela realidade da crise social, das enormes assimetrias e desigualdades e das crescentes contradições económicas.
Nem poderia ser de outra forma pois é essa a sua natureza de classe.
Na experiência portuguesa são por demais evidentes as consequências profundamente negativas do ponto de vista económico e social da adesão ao Euro. Mas mais. Como a discussão em torno do Orçamento de Estado que hoje é apresentado demonstra, qualquer política, qualquer medida, mesmo que tímida, que vá de encontro aos justos anseios e direitos dos trabalhadores e do povo entra em confronto com as chamadas regras e critérios associados ao Euro. Como já hoje foi aqui denunciado a pressão e chantagem que está a ser exercida contra os portugueses tem um único fim, tentar impedir que recuperem direitos e rendimentos, e que isso possa servir como força de exemplo para outros países, sobretudo num quadro em que a intervenção do Partido Comunista foi e é determinante para a actual solução política.
A nossa situação nacional é bem elucidativa dos embates de classe e de soberania nacional que estão em curso no seio da União Europeia. Como a situação na Grécia demonstra é uma ilusão, ou uma tremenda mentira, afirmar-se que se pode desenvolver uma política progressista de real defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo aceitando simultaneamente os constrangimentos da União Europeia e em particular do Euro. Não. O embate é inevitável. O Euro e a UEM não são um mero problema económico e técnico. São acima de tudo uma questão política que choca com direitos fundamentais dos povos e com a afirmação soberana de um povo e de um país. Não há leituras inteligentes, reformas democráticas, ou pilares sociais da UEM, que resolvam esta contradição de fundo.
Na nossa realidade nacional a questão que hoje se coloca já não é a da permanência ou não no Euro - é por demais óbvio que não só deveremos como teremos de sair. A questão que está verdadeiramente colocada é a premência, possibilidade e viabilidade da libertação dessa amarra. Sem moeda própria, sem um banco central emissor e prestamista de último recurso, a dependência face aos «mercados financeiros» ou, igualmente grave, ao BCE, à União Europeia e ao FMI é total.
Essa libertação é tão mais necessária quanto as instituições europeias se lançam em tentativas que visam aprofundar ainda mais o colete-de-forças com que asfixiam países e povos inteiros e se articulam nessa chantagem com os ditos mercados, como aliás o revelam os recentes acontecimentos envolvendo Durão Barroso.
De facto, para onde quer que olhemos na análise da evolução da União Europeia o que vemos é um processo de confronto cada vez mais directo com os direitos, interesses e aspirações dos povos.
O aprofundamento da crise económica e o processo de concentração e centralização de capital que a acompanha, implicou uma ainda maior centralização e opacidade do poder político, um cada vez mais aberto ataque aos direitos democráticos, à democracia e à soberania e uma ainda mais acentuada afirmação do carácter imperialista da União Europeia.
Se há traço que é hoje muito visível, e bem o sentimos aqui em Portugal, esse é a da cada vez maior e despudorada arrogância e postura de tipo «colonial» das instituições da União Europeia e dos países que as comandam. A forma como os dirigentes e instituições da UE lidaram e lidam com países como Portugal ou a Grécia, tentando humilhar povos inteiros, fizeram estalar todo o verniz com que se pintou o processo durante décadas.
Simultaneamente, os recentes escândalos financeiros, envolvendo altos responsáveis de instituições da UE, bem como as portas giratórias entre instituições como a Comissão ou o BCE e os centros de comando do grande capital financeiro, tornam ainda mais visível o grau de promiscuidade entre o poder político e o poder económico, revelando a quem servem e para que servem as políticas e instituições da UE.
Como não poderia deixar de ser, o processo de ataque a direitos sociais, económicos e democráticos é acompanhado por uma deriva securitária e autoritária no plano «interno», e militarista e intervencionista no plano «externo».
A visão imperialista, militarista, intervencionista e xenófoba que caracteriza a dita «política externa» da União Europeia é hoje muito mais perceptível, como foi aqui bem exposto nas intervenções sobre a militarização da União Europeia, sobre as reais causas do terrorismo e sobre a politica e responsabilidades da União Europeia face à crise humanitária.
A forma desumana como se lida com o fluxo de refugiados criado pelas guerras de ingerência e agressão em que a UE está envolvida; um mar Mediterrânico pejado de cadáveres de refugiados; os muros e cercas que se multiplicam; o ilegal e criminoso acordo da União Europeia com a Turquia; o vergonhoso papel da União Europeia na Ucrânia, apoiando e financiando um regime abertamente fascista e alimentando um irresponsável e perigoso quadro de confrontação com a Federação Russa; a cimeira da NATO de Varsóvia e as decisões aí tomadas; o envolvimento de potências europeias no financiamento e apoio a organizações terroristas na guerra contra a Síria; os atentados terroristas em solo europeu com as cortinas de fumo que os rodeiam como foi hoje aqui bem sublinhado; as políticas militaristas e de cerceamento de liberdades que em nome do combate ao terrorismo são implementadas; as revelações relativamente às Guerras do Iraque e da Jugoslávia, confirmando os crimes que ali foram cometidos; a natureza política dos Tratados de livre comércio que a União Europeia está tentar a impor aos povos e Estados da Europa (com destaque para o CETA e o TTIP); a vergonhosa atitude da Alemanha e da Comissão Europeia no processo de designação do novo Secretário Geral da ONU, são apenas alguns exemplos de muitos elementos que, no seu conjunto, destroem a imagem construída durante anos de uma União Europeia de paz, respeitadora dos direitos humanos, da legalidade internacional, da democracia, da ajuda ao desenvolvimento, do progresso social e da preservação ambiental, ao mesmo tempo que deitam por terra o discurso das «liberdades», nomeadamente a tão propalada «liberdade de circulação».
É este o resultado do velho e putrefacto consenso de Bruxelas entre direita e social democracia. A evolução da União Europeia, as suas crises simultâneas, os seus pilares, dinâmicas e tendências de fundo são os factores que estão na origem de fenómenos como o crescimento da extrema direita e do fascismo e das tendências racistas e xenófobas. Essas tendências não só são indissociáveis como estão intimamente ligadas à natureza das politicas da União Europeia, à acentuação do carácter reaccionário das suas instituições e dos sistemas políticos na Europa, bem como à crise de identidade da social-democracia, indiferenciável, nas grandes questões europeias, da direita - como aliás os acordos na recente cimeira de Bratislava, com tudo o que comportam de deriva militarista, securitária e reaccionária, comprovam.
Estas conclusões e o caminho ali traçado apenas comprovam o vazio das afirmações em torno da “reforma” da União Europeia. Demonstram mais uma vez que os pilares em que assenta a União Europeia constituem uma inamovível matriz política e ideológica que não permite espaço para uma «refundação» que ponha em causa a natureza de classe e o rumo da União Europeia.
O processo que está a ser desenhado, assente nos slogans de «refundação do projecto europeu» e de «legitimação democrática das instituições da UE», pode até seduzir alguns, inclusive no campo progressista. Mas não porá em causa nem a natureza de classe da União Europeia nem a sua estrutura de poder, pelo contrário visa reforçar essa estrutura e o seu carácter supranacional.
Esse processo assenta no discurso de que a resposta às crises e ao surgimento dos «nacionalismos» tem de assentar na ideia de «mais Europa», o eufemismo manipulador para «mais União Europeia». Mas a realidade está a demonstrar que foi exactamente o aprofundamento do processo de integração capitalista – a União Europeia – que fez regressar ao continente europeu a guerra, o terrorismo, a pobreza, o desemprego em massa, o racismo, a xenofobia, os nacionalismos reaccionários, a perseguição política aos comunistas e o fascismo.
É necessária mais Europa sim. Mas mais Europa significa um outro quadro, diametralmente oposto ao actual, de relacionamento entre Estados, partindo do principio, como já foi referido, de que os processos de cooperação e de integração não são neutros do ponto de vista de classe.
Salvar a Europa significa cada vez mais derrotar a União Europeia. Esse processo não será súbito, e muito menos será baseado em soluções voluntaristas, desprovidas de uma análise cuidada dos factores objectivos e subjectivos para o desenvolvimento da luta pela emancipação social. Na resposta à célebre pergunta “o que fazer?” emergem quatro condições essenciais para os povos da Europa poderem conhecer novas e inovadoras formas de cooperação, direccionadas para o progresso social, o desenvolvimento, a real cooperação e solidariedade, a igualdade entre Estados e a paz.
A outra Europa dos trabalhadores e dos povos nascerá da conjugação de quatro factores convergentes: o desenvolvimento da luta dos trabalhadores e dos povos e a crescente tomada de consciência política sobre a natureza de classe da União Europeia; a afirmação soberana do direito ao desenvolvimento económico e social dos Estados europeus e a rejeição das imposições da União Europeia; a alteração da correlação de forças, política e institucional, ao nível dos Estados-membros da União Europeia; e a articulação e cooperação das forças progressistas e de esquerda, com destaque para os comunistas, baseada numa clara posição de ruptura com o processo de integração capitalista europeu.
É este o caminho e a luta em que estão empenhados os comunistas portugueses. Um caminho e uma luta que assenta na profunda convicção que o actual rumo da Europa não é uma inevitabilidade; que a experiência histórica dos nossos povos nos municia de lições importantes sobre as etapas desta luta; que cada luta, por mais pequena que seja, serve este grande objectivo; e por ultimo, e o mais importante, que o real poder de transformação, que tudo pode mudar, reside nos trabalhadores e no povo conscientes da poderosa força da sua unidade e da justeza das suas aspirações.