Desde a revolução industrial que a duração da jornada de trabalho está no cerne da luta de classes. Com avanços e recuos em função da correlação de forças existente, foi a luta organizada dos trabalhadores ao longo de todo o século XIX e XX que permitiu a redução da jornada de trabalho sem diminuição de salários.
As série longas apontam no sentido de uma tendência secular de diminuição da jornada de trabalho. Assim, os economistas estimam que o número de horas trabalhadas anualmente nos países da OCDE, terão baixado de 3000 horas para cerca de 1500 a 2000 horas entre 1870 e 1990 (Maddison, 1995). A partir desta data, quebra-se esta tendência, dando lugar a um período de estabilização, com alguns exemplos onde o número de horas trabalhadas aumenta como é o caso dos Estados Unidos, da Suécia, da Espanha e Alemanha. É bom esclarecer que estamos a falar de horas trabalhadas em empregos a tempo inteiro. Com efeito, há por aí muita confusão com as estatísticas, misturando-se trabalho parcial com tempo integral, bem com horas anuais divididas pelas 52 semanas do ano sem considerar férias e outras paragens. Note-se que o trabalho a tempo parcial tem progredido de forma constante ao longo da última década, representando hoje cerca de 20% da população activa. Que fica igualmente o registo, nada surpreendente, segundo o qual os trabalhadores a tempo parcial recebem menos 12% por cada hora de trabalho, e são na sua generalidade trabalhadores precários.
Os anos 80 e 90 marcam então um culminar desta luta com a imposição em muitos países e sectores da semana das 35 horas. Em França a redução legal das 35 horas para todos os sectores da economia, iniciada em 1982 e finalizada em 1997 leva à criação só naquele país de cerca de 500 000 postos de trabalho.
O grande capital, como é fácil entender, nunca se conformou com estas derrotas e cedo começou a usar todos os instrumentos para reverter a duração da jornada de trabalho a seu favor. O grande patronato europeu, através das suas diversas ramificações nacionais procura desde então trabalhar em várias frentes. Procura aumentar a jornada normal de trabalho, com êxitos assinaláveis na Alemanha contando sempre com o habitual contributo da social democracia do SPD. Procura impor mecanismos de flexibilização dos horários de trabalho. Procura, finalmente, afastar os sindicatos dos instrumentos de gestão do tempo de trabalho, deslocando os respectivos centros de decisão e negociação para dentro das empresas. Sob o quadro de uma concorrência internacional acrescida, cresce a pressão sobre a jornada de trabalha cujo alongamento é apresentado como único meio de manter o salário e a competitividade da empresa. A criação de um enorme exército de reserva e a ameaça do desemprego reforçam os argumentos patronais, contribuindo assim para iniciar a fase de regressão social em que nos encontramos.
Em Portugal é aprovada a 23 de Julho de 1996, no Diário da República a Lei 21/96 que consagra a redução do horário de trabalho para 40 horas por semana. Na altura os diversos sectores da indústria, particularmente os sectores têxteis, vestuário e calçado e todos os subsectores trabalhavam 44 horas (8 horas, de segunda a sexta, e 4 horas ao sábado). Mas como é sempre bom lembrar, os direitos sempre tiveram que ser conquistados através da luta dos trabalhadores e dos seus sindicatos de classe. É bom por isso lembrar a história, nem que seja de relance. Com efeito, ao mesmo tempo que esta lei era aprovada pondo fim ao trabalho ao Sábado, o Governo Guterres fazia mais um «acordo de concertação» com os patrões e a UGT com a introdução da flexibilidade e da polivalência. É assim que, logo a seguir, diversas empresas, apregoando o «acordo», informam os trabalhadores de que em vez de trabalharem 42 horas por semana iriam trabalhar 45 horas, jogando com a eliminação das pausas para efeito da contabilização do tempo de trabalho. Não faltaram então quer ao primeiro ministro António Guterres na altura nem à ministra do emprego de então, Maria João Rodrigues, nem às confederações patronais pareceres jurídicos a dar-lhes razão e a legitimar o roubo das 40 horas. Mais recentemente, Portugal tem sido, como é usual, um bom aluno nestas matérias, merecendo por isso um elogio nas propostas de recomendações aos países feitas no quadro do semestre europeu. Lá podemos ler, como se não ou sentíssemos na pele que:
“Portugal aplicou uma vasta gama de reformas do mercado de trabalho desde o início do seu Programa de Ajustamento Macroeconómico. A fim de promover a criação de postos de trabalho em contratos por tempo indeterminado e a dar resposta às questões de dualidade, as indemnizações por despedimento relativas a contratos permanentes têm sido reduzidas e as condições de despedimento por justa causa têm sido facilitadas. Procedeu-se a um aumento da flexibilidade do horário de trabalho. A fim de facilitar o ajustamento dos salários, foram aplicadas medidas para alargar o âmbito da negociação a nível de cada empresa. As prestações do subsídio de desemprego foram revistas a fim de aumentar os incentivos a um regresso rápido ao trabalho etc.”
Mais palavras para quê?
É neste cenário que deve ser analisada a evolução da politica da União Europeia relativamente a esta matéria. Confirmando-se como ponto de lança ao serviço do capital, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu aprovam em 1993 e primeira directiva sobre tempo de trabalho, procurando, através de um denominador comum, nivelar por baixo as normas relativas ao tempo de trabalho. Desta forma, a flexibilidade laboral é introduzida com a consagração das 48 horas como limite máxima num período de referencia de 4 meses. Mais tarde, a directiva é revista em 2003 com o objectivo de “clarificar” conceitos. Um destes prende-se com o trabalho nocturno que apenas é considerado como tal entre as 24 e as 5 horas da manhã, muito abaixo como é sabido de muitas legislações nacionais. Ainda assim qualquer pais pode optar pelo “opt-out” e ultrapassar estes limite como o fará o Reino Unido onde a semana de trabalho por ir às 80 horas sem pagamento de horas extraordinárias. Mais tarde, o Conselho e a Comissão Europeia voltam à carga tentando consagrar em letra de lei uma interpretação judicial que pretende excluir os período inactivos do tempo de trabalho. Não contente com isto pretende igualmente alargar para um ano o período de referencia e rever a clausula de “opt-out” impondo um limite de 65 horas desde que haja “acordo” do trabalhador . Felizmente estamos em vésperas de eleições e a proposta de revisão da directiva é chumbada no Parlamento Europeu em 2008, sob o aplauso de milhares de trabalhadores em luta.
Em Março de 2010, a Comissão Europeia decidiu iniciar mais um período de consulta aos parceiros sociais com vista à completa revisão da directiva sobre o tempo de trabalho. Voltam a estar em cima da mesa o período de referência, o período inactivo e a necessidade de flexibilizar ainda mais os horários de trabalho. As declarações da “Business Europe”, organização que representa o patronato europeu, não poderiam ser mais claras: “o trabalhador assalariado deve ter a possibilidade de trabalhar para lá das 48 horas semanais se assim o deseja. Os assalariados não devem estar limitados por uma legislação europeia demasiado severa”.
Neste período de consulta a Comissão Europeia, numa salada sempre bem temperada com a habitual retórica social, coloca mais uma vez os argumentos decisivos, ditados pelo patronato. Ao mesmo tempo que pretende defender a qualidade de vida dos cidadãos europeus, a Comissão lá vai alertando para a volatilidade dos mercados, para a concorrência mundial, para a nova organização da cadeia de valor e do deslocamento da produção para for a do continente etc.. Ao memo tempo, tecem loas ao surgimento de novas tecnologias geradoras de novas formas de organização do tempo de trabalho, como o teletrabalho ou o trabalho em casa.
Mas a Comissão Europeia, no seu documento introdutório vai mais ao concreto, pondo em cima da mesa duas propostas específicas cada uma delas pior do que a outra.
A primeira proposta, classificada de cirúrgica, pretende só (?) mexer nos períodos inactivos e no descanso compensatório. Para ambos os casos recomenda, como não poderia deixar de ser uma abordagem mais flexível. Ainda a reboque do descanso compensatório, chega a colocar em causo o domingo com dia de repouso semanal.
A segunda proposta preconiza, para alem do tratamento das duas questões referidas anteriormente, uma mais completa revisão da directiva capaz de potenciar as novas tendências de organização do trabalho. Volta a flexibilização, as novas fórmulas organizativas, a gestão personalizada do tempo de trabalho. Deixem-me citar o próprio documento num trecho que exemplifica bem o que está em causa: “As regras da UE deverão adaptar-se à tendência constante de flexibilização da organização do trabalho e à gestão personalizada do tempo de trabalho. O objectivo é atingir uma flexibilidade bem dirigida e durável das regras em matéria de tempo de trabalho, a qual irá favorecer a produtividade e a competitividade.”
Para isso propõe uma maior margem de manobra na abordagem das novas fórmulas de trabalho ao nível da contratação colectiva e, para não ficar por meras propostas genéricas um alargamento para 12 mês do período de referência. A proposta versa depois sobre outras aspectos importantes como seja os contratos múltiplos, os trabalhadores autónomos, o “opt out” e as férias pagas. Todo a favor de quem nós sabemos claro está.
Felizmente, não foi possível chegar a qualquer consenso sobre estas matérias. A bola está portanto do lado da Comissão Europeia que, pressionada pelo grande patronato europeu, não deixar de propor nesta legislatura a sua revisão da directiva, forçando uma discussão no Parlamento Europeu, de preferência em início de mandato, evitando assim o fiasco de 2008. Pela parte dos deputados do PCP no Parlamento Europeu, continuaremos atentos e vigilantes, procurando intervir no quadro das instituições europeias e contribuir ao mesmo tempo para a necessária mobilização dos trabalhadores contra uma mais que provável ofensiva à escala europeia no sentido da degradação das condições de trabalho e aumento da exploração.