Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados
A proposta de Lei em discussão tem o mérito de visar conferir eficácia á acção executivo através da simplificação processual e da desjurisdicionalização de actos a praticar no âmbito das acções executivas.
Na verdade, sabido é que se as acções declarativas são morosas, maior morosidade ainda se verifica nas execuções que se arrastam muitos anos nas prateleiras das secções, terminando muitas vezes por impossibilidade de obter cobrança para títulos executivos.
Vários factores contribuíram para tal situação que redundam numa verdadeira explosão de títulos executivos.
A judicialização da crise social foi inevitável perante um incentivo claro e apelativo ao consumo que determinou um sobrendividamento das famílias portuguesas.
A inexistência de medidas sociais que debelassem a crise tornaram os Tribunais em instâncias de resolução dos mesmos conflitos. E daqui também resultou o aumento da morosidade da Justiça.
Esta proposta de lei surge num momento em que já se fala de uma recessão inevitável, de uma anunciada descida das taxas de juro e de possíveis chamamentos apelativos ao aumento do consumo. O que a verificar-se, e sem as necessárias medidas sociais, transferirá a morosidade da justiça para as Secretárias dos Solicitadores de execução e dos funcionários judiciais de execução.
Impõe também a verdade que se diga que, apesar da criação das secções de serviço externo, que poderiam ter potenciado uma maior celeridade da justiça, nunca foram estas secções dotadas de meios técnicos e humanos necessários a um eficaz desempenho das suas funções.
A medida praticamente caiu em saco roto.
De maneira que, surge esta proposta quase como inevitável. E entendemos ser inevitável a reforma, que se apresenta com um sinal positivo.
Mas não é inevitável, e nunca o será num estado de direito democrático, o cerceamento de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em nome de uma Justiça descaracterizada da sua face humana.
Assim, se concordamos com muitas das disposições da proposta quanto á desjurisdicionalização de actos que não são, de facto, jurisdicionais; se concordamos, por exemplo, com a criação do Juiz de Execução, dos funcionários de execução, do oficial público de execução, pensamos, no entanto que a proposta contém soluções que devem ser objecto de uma profunda reflexão, sendo algumas, em nosso entender, inconstitucionais, ou roçando a inconstitucionalidade. Outras cerceiam para além do razoável, garantias dos cidadãos, o seu direito à defesa perante uma ordem injusta.
Estão entre as propostas que nos parecem muito discutíveis, algumas mesmo de rejeitar as que se referem:
1. À redução dos casos em que é obrigatório o patrocínio forense;
2. À desjurisdicionalização de actos intrinsecamente jurisdicionais;
3. À imposição de medidas de coacção disfarçadas com a eficácia asséptica da máquina executiva.
Em primeiro lugar penso que é importante reproduzir aqui algumas reflexões do professor Doutor Lebre de Freitas relativamente á situação única da ordem jurídica portuguesa perante outras ordens jurídicas europeias.
E passo a citar:
" A generalidade dos países europeus é avara na concessão de exequibilidade a títulos não judiciais....
Portugal constitui o país europeu mais generoso na concessão da exequibilidade, progressivamente mais aberta e finalmente concedida pela revisão de 1995- 1996 a todo o documento particular que, não respeitando a prestação de entrega de coisa imóvel, contenha o reconhecimento duma dívida líquida ou liquidável por mero cálculo aritmético, ainda que não se apresente reconhecida a assinatura do devedor. Dado o aumento que tal representa , do risco de imputar a autoria do documento particular a quem não o haja subscrito a abertura foi compensada ( no artigo 812º do Código do Processo Civil).
E acrescenta: Ao actuar no campo da acção executiva, o legislador não pode esquecer esta especificidade do título executivo na lei portuguesa"
Ora, a proposta de lei, contrariando, neste aspecto o artigo 32º do Código do Processo Civil, cuja alteração não se propõe, reduz os casos em que é obrigatória a constituição de advogado. O que não parece ser uma forma de dignificar o patrocínio forense.
O legislador parece simpatizar muito mais com as situações em que o exequente fica sob a alçada do oficial público de execução, do funcionário judicial de execução, entregue a uma minuta standartizada de um formulário onde se apõem umas cruzinhas.
Esta proposta contraria, aliás o espírito do artigo 208º da Constituição da República que considera o patrocínio forense como elemento essencial à administração da Justiça.
E a proposta tende a favorecer uma solução menos garantísticas dos direitos dos cidadãos.
Não se trata aqui de uma questão corporativa. Embora o percurso dos diplomas do Ministério da Justiça possam levar a que um estudioso conclua- quiçá erradamente ou não- que nuns diplomas se privilegia uma classe que logo se desatende no seguinte para favorecer uma outra.
Quando, o que verdadeiramente está em causa são os direitos do cidadão.
É assim que não pode entender-se o que consta da proposta de lei sobre o processo especial de execução hipotecária.
Outros ordenamentos jurídicos atribuem, é certo, a competência para a venda de bens aos Notários.
Mas não se pode fazer uma transposição cega de disposições de outras ordens jurídicas.
Sabe-se que os licenciados em direito na Carreira dos Registos e Notariado foram aliviados das suas tarefas com a privatização de actos notariais.
Mas mesmo assim, impõe que se pergunte se as Conservatórias do Registo Predial dispõem de instalações adequadas para o efeito e de funcionários para as novas tarefas.
Segundo o Presidente da Associação dos Conservadores e Notários, os Conservadores dispõem de competência técnica mas os funcionários precisam de formação específica que não está prevista.
Outro membro da referida Associação comentou que a nova medida governamental assenta na miragem da informatização dos registos, sendo esse o problema. E cito : " o Governo já está a pensar que a informatização dos registos vai permitir uma grande disponibilidade de tempo e de pessoas, só que, por enquanto essa informatização ainda é uma miragem.
Mas há ainda mais outra questão a ponderar.
Parece-nos que há actos, como a graduação de créditos, que são actos verdadeiramente jurisdicionais, que só ao Juiz podem caber segundo a Constituição da República.
Nos termos do artigo 202º é ao Juiz que compete a função jurisdicional. E assim o processo especial de execução hipotecária deve ser devidamente ponderado, á luz das suas consequências práticas, e à luz dos preceitos constitucionais.
Por último, trataremos de duas últimas questões, a última das quais da maior relevância.
Não se percebe se o Governo pretende alterar o Código dos Processos Especiais de recuperação de empresas. Mas assim parece. Se todos os casos em que não há pagamentos, qualquer que seja o montante, são remetidos ao Ministério Público para propor o processo, os requisitos e condições constantes daquele Código são em parte revogados. E isto será prudente? A ameaça de um mal deve sobrepor-se á prudência constante do Código.
Noutras disposições aparece de novo a ameaça de um mal como justificando determinadas soluções, que nos parecem violar direitos, liberdades e garantias.
Com o artigo 8º da proposta de lei pretende o Governo autorização legislativa para a criação de uma base de dados de pessoas sem património conhecido, identificando a pessoa, o processo e o valor da execução.
Apenas se fica a saber os casos em que, por despacho judicial, as pessoas passam a constar dessa base de dados.
E sabe-se ainda que pode ser requerida a eliminação ou a correcção dos dados.
Nada se fica a saber quanto às garantias relativas à segurança e à fiabilidade dos dados, nem quanto ao direito de acesso.
É depois o diploma que nos foi enviado remete para regulamentação o acesso às mesmas bases. Norma assaz vaga, sem qualquer suporte na autorização legislativa.
Na concretização da autorização o artigo 807º acrescenta à proposta de lei que pode ser requerida a rectificação ou a actualização dos dados inscritos na lista, designadamente a eliminação da inscrição do executado quando seja cumprida a obrigação.
Dispositivo cuja análise se revela de grande relevância nas considerações seguintes.
Não se estabelece qualquer prazo para a manutenção do executado na lista.
Nem descortinamos qualquer disposição legal sobre a obrigatoriedade de informação ao executado desta recolha de dados.
Nesta matéria importa ponderar sobre a constitucionalidade da autorização legislativa relativamente ao artigo 8º.
Em duas vertentes.
Desde logo impõe-se saber se à face do artigo 35º da Constituição da República pode ser criada esta base de dados.
Não importa se esta base de dados é feita com tratamento automatizado ou não. Na medida em que, nos termos do artigo 35º n.º 7 da CR. os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à dos dados constantes de ficheiros automatizados.
Ora, o inciso constitucional no seu n.º 3 proíbe expressamente as bases de dados relativos à vida privada, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação.
A situação de solvabilidade de um cidadão cai manifestamente no âmbito da vida privada. Como aliás já foi decidido em acórdãos do Tribunal Constitucional. Estando, assim, proibida a constituição de ficheiros sobre a situação patrimonial das pessoas fora dos casos admitidos no artigo 35º.
Parece-nos manifesto, e salva melhor opinião, que a solução constante da proposta de lei viola a proibição contida no artigo 35º da Constituição. O qual exige sempre em relação ao tratamento dos dados relativos à vida privada, o consentimento expresso do titular.
E a inscrição na lista das pessoas sem património conhecido apresenta-se, de resto, como uma medida de coacção destinada a impor o pagamento da obrigação ( só nestes casos o executado poderá obter a eliminação da lista), e também como uma medida destinada a obter eficácia à máquina judiciária.
Dessa forma se visa reduzir as estatísticas sobre acções executivas.
A consideração destes dois objectivos é assaz importante se quisermos prosseguir a análise do diploma tendo em conta a Lei 67/98 de 26 de Outubro.
Independentemente da análise da conformidade constitucional de alguns preceitos desta lei, que agora não se fará, sempre e tem de concluir que, de qualquer forma, a base de dados pretendida pelo Governo, não pode ser constituída.
Com efeito, o artigo 7º da Lei reafirma a proibição do tratamento em ficheiros de dados relativos á vida privada.
Acrescentando-se, no entanto no n.º 2 que é possível o tratamento daqueles dados mediante disposição legal quando por motivos de interesse público importante esse tratamento for indispensável ao exercício das obrigações legais do seu responsável.
O n.º 3 do artigo 7º dispõe ainda que a proibição do tratamento de dados relativos à vida privada cai quando for necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e for efectuado exclusivamente com essa finalidade.
Ainda nesta leitura que a lei faz da Constituição, que não nos parece, aliás a correcta, não é possível a constituição da base de dados pretendida pelo Ministério da Justiça.
De facto, nem a base é necessária para a prossecução de um interesse público importante que se sobreponha ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, nem é necessária à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial.
Porque o que o Senhor Ministro da Justiça pretende é aliviar os Tribunais de acções executivas. Limpar as estatísticas de conflitos não resolvidos. Conferir eficácia aos meios judiciais. Agilizar o processo judicial. Coagir ao pagamento de obrigações. O exequente, pelo facto de não haver uma base de dados de pessoas sem património conhecido não fica privado do exercício judicial do direito.
Os objectivos pretendidos com a proposta não se sobrepõem aos direitos fundamentais á reserva da vida privada e ao direito fundamental à garantia constitucional de proibição do tratamento de dados relativos á vida privada.
De resto, nem sequer a garantia de não discriminação dos cidadãos ficava salvaguardada.
Porque seriam os cidadãos mais carenciados, e até mais carenciados de tutela jurídica que não conseguem, os cidadãos que foram incentivados a consumir com a miragem de um a vida mais aproximada de uma vida humana, os que correriam mais riscos de se ver incluídos na lista de pessoas sem património conhecido.
Assim, parece-nos que nesta vertente analisada o artigo 8º da proposta de lei, e consequentemente o artigo 2º n.º 2 alínea c) são inconstitucionais.
Mas, ainda de uma outra forma estão viciados os mesmos dispositivos de inconstitucionalidade.
É que não está definida a sua extensão.
Não sabemos, nem pouco mais ou menos, quem vai ter o direito de acesso aos dados. Não se estabelece qualquer prazo para a manutenção da inscrição na base de dados. Não se prevê a informação ao executado da recolha dos dados tal como está prevista na lei.
Assim, também nesta óptica há uma violação da Constituição . Mais concretamente do artigo 165º n.º 2 da Constituição da República.
Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados
Sendo inegável a necessidade de uma reforma da acção executiva, deve no entanto ponderar-se algumas das soluções aqui trazidas que podem exorbitar para além do necessário, violando direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
A Assembleia deve conseguir o difícil, mas possível equilíbrio, entre a eficácia da justiça e o sistema garantístico da nossa lei fundamental.