É evidentemente difícil, no actual quadro, fazer a defesa de um serviço público de televisão, nos moldes que a realidade colou ao conceito.
Para a grande maioria do público e à luz do que diz e escreve, o essencial da diferença reside no que devia ser puramente instrumental: o que a RTP1 e 2 transmitem é serviço público, o que a SIC e as TVI transmitem não é.
A este simplismo cola-se um outro: o serviço público tem custos directos e incontornaveis (e gigantescos) sobre os contribuintes, enquanto o mesmo não se passa com as estações privadas. Neste aspecto, não é inteiramente certo que SIC ou TVI sejam negócios particularmente lucrativos, mas a isso se responde com o simplismo que, se alguém perder dinheiro, é o capitalista privado envolvido. Será?...
A primeira falácia deste debate reside em afunilá-lo exclusivamente sobre a programação e custos e, de preferência, num período histórico limitado, que permita sustentar pontos de vista definidos a priori. Ora, o problema do serviço público de televisão não é exclusiva, nem sequer essencialmente, uma questão de programação, mas uma realidade que só pode ser aprofundada a partir de critérios mais vastos e profundos.Confesso, antes do mais, ter hoje dúvidas sobre a operatividade do conceito audiovisual.
Penso que ele corresponde a um período embrionário em que a comunicação massiva por via auditiva e visual se separava crescentemente do monopólio anterior da comunicação escrita, mas que os diversos sectores que abrangia apresentam hoje evoluções e características que impõem separações. Muito em especial, penso que a televisão ganhou uma dimensão social (comunicativa, política, cultural, pedagógica, etc.) incomparavelmente mais influente do que qualquer dos outros componentes englobados naquele universo.
A televisão transformou-se, em escassas dezenas de anos, num elemento estruturante das sociedades contemporâneas, que, de forma alguma, pode ser lido exclusivamente à luz de uma das suas expressões. Não é uma infra-estrutura supletiva, que enriquece ou empobrece o funcionamento social conforme exista ou não: há um mundo antes da massificação da TV e outro quando ela ocupa o lugar central no quotidiano de células familiares em percentagens que rondam a totalidade dos lares.Buscando uma comparação ou a definição de um plano conceptual, pode hoje dizer-se, com aceitável rigor, que o problema televisivo é uma questão de soberania, por um lado, e um factor estratégico nacional da área do Estado.
Que o Estado abdique das suas responsabilidades na gestão de uma realidade com tais dimensões na vida nacional é tão absurdo quanto alienar integralmente ao tecido privado a educação, a defesa ou a segurança.Constitui um dos mais sombrios episódios da administração pública do Portugal democrático o défice da televisão pública, agravado por todos os Governos e por todos usado como pouco digna arma de arremesso. Mas, sobretudo, é uma inaceitável mistificação reduzir um problema nacional à sua componente contabilística, irresponsavelmente tratada por sucessivos Governos. Não são cifrões o elemento essencial do serviço público de TV de que uma sociedade necessita.Há um debate nacional a fazer, na certeza de que o Big Brother, que é bom para a TVI, não é bom para o País.