I
Os recentes desenvolvimentos no âmbito do processo judicial conhecido como “Operação Marquês” geraram na sociedade portuguesa compreensíveis expressões de preocupação e indignação.
Esta situação não pode ser desligada da sucessão de casos que, ao longo de décadas, têm alimentado um sentimento de impunidade de práticas de corrupção, tráfico de influências e de criminalidade económico-financeira.
Escândalos envolvendo a banca e o sector financeiro, com destaque para o BPN, BPP e BES/GES, negócios milionários feitos em nome do Estado mas em prejuízo do erário e interesse públicos, utilização e apropriação indevida de fundos públicos e europeus por grandes grupos económicos são alguns dos exemplos que se conjugam naquele sentido.
A sucessão destes acontecimentos não tem correspondência na responsabilização criminal dos seus protagonistas, somando-se com frequência ao arrastar dos processos judiciais e gerando um sentimento de que a Justiça é forte e impiedosa com os fracos mas simultaneamente fraca e ineficaz com os ricos e poderosos.
Ignorar os justos fundamentos e preocupações de quem se indigna com tal visão da realidade seria abandonar à sua sorte todos aqueles que reclamam o aprofundamento da democracia, deixando-os à mercê de quem exercita o discurso de descrédito da Justiça apenas com o objectivo de corroer os fundamentos da democracia, tal como ela é concebida pela Constituição.
Ignorar a necessidade de acção perante tal realidade significaria deixar campo aberto aos discursos fingidos de preocupação com a democracia daqueles que todos os dias agem no sentido de manter intocados os privilégios e benefícios dos interesses económicos que minam o regime democrático promovendo a corrupção, o tráfico de influências, a criminalidade económico-financeira.
II
O combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira é um combate a travar em defesa do regime democrático e pelo aprofundamento da democracia.
A luta pela liberdade e a democracia conquistadas com o 25 de Abril foi também a luta contra um regime em que a corrupção era política do Estado. A absoluta fusão entre o poder político fascista e os grandes interesses económicos e financeiros, no mais profundo silenciamento e promiscuidade, além de inegável demonstração da podridão moral do fascismo, constitui ainda uma prova cabal da verdadeira natureza e razão de ser do regime fascista.
A subordinação do poder económico ao poder político, inscrita na nossa Constituição, e o combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira são, por isso, problemas do regime democrático e da acção em sua defesa, bem como objectivos da luta por uma plena democracia nas suas dimensões política, económica, social e cultural.
Não é possível combater com eficácia a corrupção e a criminalidade económico-financeira sem considerar as suas causas de fundo, sem confrontar os fundamentos de um sistema económico assente na acumulação capitalista, sem pôr em causa a natureza e papel dos grupos económicos e financeiros e os critérios da sua actuação, especialmente a sua recusa em conter-se dentro de regras que não aquelas que lhe permitam a maximização do lucro.
Isso coloca na primeira linha de prioridades a concretização efectiva do comando constitucional da subordinação do poder económico ao poder político e a necessidade de uma firme actuação do poder político na definição das condições de prossecução do interesse público nas diversas áreas da vida nacional, com particular destaque para aquelas que correspondem a sectores estratégicos e direitos universais.
A par disso, é essencial a criação de condições para a acção de prevenção e combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira, seja com a adopção e actualização de instrumentos legais que enquadrem esses objectivos, seja com a alocação dos meios necessários à sua eficácia.
III
A evolução da realidade nestes domínios revela uma crescente sofisticação nos esquemas utilizados em práticas de corrupção e de criminalidade económico-financeira, uma significativa possibilidade de recurso a artifícios e expedientes legais para ocultar ou dissimular tais práticas, bem como amplas possibilidades de as furtar a quaisquer mecanismos de controlo administrativo ou judicial.
Esta situação contrasta com a dificuldade em garantir à investigação criminal os meios e instrumentos de intervenção que permitam acompanhar a rapidez da evolução destes fenómenos criminais de forma a assegurar uma intervenção eficaz e atempada.
A demora dos processos judiciais, reflectindo dificuldades da própria configuração da investigação criminal e entropias geradas pela utilização indevida de expedientes processuais, redunda com frequência em situações objectivas de fuga ao escrutínio pela Justiça.
IV
Não deixará de haver quem queira aproveitar esta realidade como pretexto de circunstância para ressuscitar propostas de condicionamento da autonomia do MP e da independência do poder judicial, incluindo linhas mais ou menos assumidas de governamentalização. Esse é um caminho que o PCP continuará a recusar e a combater.
O que nos parece necessário é que haja vontade política para avançar com medidas que há muito estão identificadas e que a realidade e a experiência demonstram serem imprescindíveis para um salto qualitativo no combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira.
É esse o sentido em que o PCP faz hoje a entrega de dois Projectos de Lei com vista à criação do crime de enriquecimento injustificado e à proibição do recurso pelo Estado à arbitragem.
Em síntese, o que se propõe com a criação do crime de enriquecimento injustificado é a criação de um dever geral de declaração às Finanças por parte de quem disponha de património e rendimentos de valor superior a 400 salários mínimos nacionais mensais e, posteriormente, um dever de declaração sempre que esse património registe um acréscimo superior a 100 salários mínimos, havendo nesse caso o dever de justificação da origem desse enriquecimento.
Esta solução constitui uma medida de grande importância para a prevenção e detecção de crimes de corrupção, não sendo violadora de princípios e normas constitucionais, designadamente por inversão do ónus da prova.
Relativamente à proibição do recurso pelo Estado à arbitragem em matéria administrativa e fiscal, o que se propõe é que se ponha fim ao regime de privilégio que é concedido aos grandes devedores de impostos ou às concessionárias dos contratos de PPP, entre outros, que vêem os seus litígios com o Estado arredados do escrutínio pelos tribunais e remetidos para a arbitragem, com evidentes e significativos prejuízos para o interesse público e para o tratamento em condições de igualdade.
V
(Enriquecimento injustificado)
Desde Fevereiro de 2007 que o PCP tem vindo a propor a criminalização do enriquecimento injustificado. Ao longo de vários anos e legislaturas, as propostas do PCP contaram sempre com os votos contra do PS, do PSD e do CDS.
Na XII Legislatura, o PSD passou, alegadamente, a defender a criminalização do enriquecimento ilícito, fazendo-o sempre, no entanto, com a aprovação de soluções que foram declaradas inconstitucionais. Na parte final dessa Legislatura, em 2015, o PSD, mesmo conhecendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, rejeitou a proposta do PCP e insistiu, com o apoio do CDS, numa proposta que sabia de antemão que seria declarada inconstitucional. Foi o que veio a acontecer.
O PCP reitera a sua convicção de que a criação de um tipo criminal de enriquecimento injustificado poderá ser um elemento de grande importância para a prevenção e detecção de crimes de corrupção e que é possível encontrar uma solução que não seja violadora de princípios e normas constitucionais.
O que o PCP propõe é a criação de um dever geral de declaração às Finanças de quem disponha de património e rendimentos de valor superior a 400 salários mínimos nacionais mensais, e posteriormente, um dever de declaração sempre que esse património registe um acréscimo superior a 100 salários mínimos, havendo nesse caso o dever de justificação da origem desse enriquecimento. A criminalização incide sobre a omissão dessa declaração e da justificação da origem desse acréscimo patrimonial. O bem jurídico tutelado é a transparência da aquisição de património e de rendimentos de valor significativamente elevado.
O acréscimo patrimonial não constitui, em si mesmo, qualquer presunção de ilicitude. O que se sanciona como ilícita é a ausência de declaração ou da indicação de origem do património e rendimentos, o que a ser corrigido implica a dispensa de pena.
A criminalização é agravada no caso dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
VI
(Proibição de recurso pelo Estado à arbitragem como forma de resolução de litígios em matéria administrativa e fiscal)
O PCP apresenta ainda um projecto de lei que proíbe o Estado de recorrer à arbitragem como forma de resolução de litígios em matéria administrativa e fiscal.
Proibir o Estado de recorrer à arbitragem como forma de resolução de litígios que o envolvam em matéria administrativa e fiscal, e nomeadamente em matéria de contratação pública, é uma decisão legislativa que se impõe em nome da mais elementar estratégia de prevenção da corrupção e da decência na defesa do interesse público.
É através dos tribunais, que administram a Justiça em nome do povo, que é assegurada a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, que é reprimida a violação da legalidade democrática e que são dirimidos os conflitos de interesses públicos e privados. Só as garantias de imparcialidade dadas pelos tribunais estaduais estão em condições de garantir a aplicação da Justiça material, ditada pelo Direito e respeitadora do interesse público e dos princípios da legalidade e da igualdade.
Em matéria tributária, o recurso à arbitragem, só ao alcance dos grandes devedores, viola manifestamente o princípio da legalidade da actividade administrativa e o princípio segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei. A Justiça fiscal não pode tratar os devedores ricos como cidadãos de primeira que negoceiam o que pagam e os devedores pobres como cidadãos de segunda que pagam o que lhe for exigido sem se poder defender.
Em matéria de contratação pública, o Estado, ao abdicar de submeter os litígios emergentes de contratos públicos aos tribunais, submete-se a uma forma de justiça privada que lhe é invariavelmente desfavorável, com graves prejuízos para o interesse público e com enormes proventos para os interesses económicos privados envolvidos. No final do primeiro trimestre de 2018, o Estado já tinha perdido 661 milhões de euros em litígios com concessionárias de PPP rodoviárias decididos por via de arbitragem.