O País, já em Janeiro, tinha vastas áreas em seca extrema e com um teor de água no solo no ponto de emurchecimento permanente, e continua a enfrentar a perspectiva de uma crise por falta de água em funções essenciais, ainda mais grave que na seca de 2005, sendo que a capacidade dos serviços públicos, quer científica, quer técnica e quer logística, já reduzida nessa altura, se degradou significativamente desde então. Sabendo que períodos de seca acontecem e acontecerão, o que se torna essencial é mitigar as suas consequências, garantindo que não falte a água nas torneiras, para consumo humano e, nos campos, para assegurar a produção agro-pecuária.
Numa linha contrária à prevista na Constituição, tem vindo a verificar-se uma desresponsabilização do Estado na administração, planeamento e gestão da água. Paulatinamente foram destruídos os Serviços da Administração Pública e dos Organismos Públicos de Investigação e Normalização, esvaziando-os de quadros e competências das estruturas no terreno, transferindo funções públicas de administração, gestão e planeamento, para entidades de direito privado ou de direito e capital privados. Este processo de destruição da capacidade técnica e científica, de alienação do conhecimento institucional de recursos hídricos, de física, química, biologia, engenharias, inviabiliza a gestão efectiva da água, a identificação correcta dos problemas e potenciais soluções. São disto exemplo, a extinção do INAG e suas delegações regionais e a degradação provocada por subfinanciamento público do Instituto de Meteorologia e do LNEC.
Como consequência de anos de política de direita, as estruturas públicas perderam trabalhadores, meios e competências, foram afastadas da gestão das albufeiras, todas concessionadas a entidades privadas ou de direito privado a quem se delegou competências de administração. Opções inseparáveis dos denunciados incumprimentos de caudais mínimos dos rios. Nos últimos anos agravaram-se problemas decorrentes da má gestão ou gestão concentrada na obtenção de lucro nas barragens de produção energética, agravando problemas de poluição e de perda de qualidade da água. Este caminho de favorecimento da mercantilização explica o porquê de, em períodos em que o País já se encontrava numa situação de seca, os detentores das barragens electroprodutoras continuassem a esvaziar as barragens aproveitando a alta dos preços da energia. Ajuda também a ilustrar os riscos de não existir controlo público do sector da energia e dos riscos decorrentes da venda de barragens da EDP, colocando importantes infraestruturas de armazenamento de água doce nas mãos de capital estrangeiro.
Agravaram-se os problemas, sendo que as estruturas públicas perderam capacidade de assegurar a gestão, a planificação e até a monitorização de protocolos internacionais.
Sucessivos governos têm adiado investimentos – barragens, albufeiras, obras hidroagrícolas – indispensáveis à captação das águas de superfície para assegurar o abastecimento regular, para facilitar a reposição dos lençóis freáticos e para assegurar os caudais ecológicos essenciais à salvaguarda ambiental, garantindo a fruição dos direitos de todos os cidadãos, a adequada utilização da água no sistema produtivo e a qualidade das suas funções ecológicas e ambientais.
Por outro lado, ao longo de décadas tem-se acentuado e intensificado a ofensiva contra a Gestão Pública da Água. Se por um lado os sucessivos governos têm apostado na transferência forçada de competências do Estado Central para as autarquias, por outro lado tem aumentado a pressão para a expropriação dos municípios da gestão da água, competência claramente municipal. Governos PS, PSD e CDS têm dificultado o acesso aos fundos comunitários às autarquias, dificultando investimentos fundamentais, com vista a forçar a agregação dos sistemas de água visando a sua posterior privatização e privilegiando o negócio em detrimento do controlo democrático da gestão da água.
A sensibilização das populações para uso racional da água é fundamental, mas a estratégia de responsabilização dos comportamentos individuais não resolve o problema. A utilização doméstica da água representa uma percentagem mínima dos caudais necessários ao global dos usos da água instalados e autorizados. Culpabilizar ou responsabilizar os utilizadores domésticos e/ou os serviços públicos de abastecimento de água pela sua falta para outros fins, não permite olhar para o verdadeiro problema e apenas se destina a justificar um caminho de mercantilização e de aumento dos preços da água como as recentes recomendações da Entidade Reguladora, agora em consulta pública, revelam.
É necessário definir critérios de hierarquização do uso da água em condições de seca, que privilegiem a sua utilização para uso humano, a saúde e os serviços públicos, a pequena e média agricultura e ainda o equilíbrio dos ecossistemas. Critérios que não podem ser definidos de forma avulsa e extemporânea ou de forma que introduz injustiças de classe como tem vindo a acontecer em vários pontos do País.
É preciso avançar com um Plano Nacional para a prevenção estrutural dos efeitos da seca. O PCP apresentou esta proposta em 2020, foi rejeitada com os votos contra de PS, PSD, IL e a abstenção de BE e PAN. Pelo caminho ficou assim o desenvolvimento e implementação de um plano integrado das necessidades de utilização da água para fins múltiplos, com as adequadas e possíveis capacidades de armazenamento, promovendo a utilização racional e eficiente da água como factor de desenvolvimento económico e social, assente na universalidade de acesso a este recurso, em detrimento da sua utilização massiva e da sua exploração numa base privada monopolista.
A política da água não pode ser objecto de preocupação apenas nos momentos de seca, impõe uma estratégia de largo horizonte, mas na situação com que o País está confrontado, implica medidas adequadas, não alarmistas ou precipitadas, mas urgentes e ponderadas. Nesse sentido o PCP considera necessário e urgente o desenvolvimento de uma Estratégia Nacional de Garantia de Segurança Hídrica que passe pelo investimento público, controlo público dos recursos hídricos, mais meios públicos para gerir, monitorizar e planificar a gestão de recursos hídricos e para avançar com investimentos há muito adiados. A construção de barragens e de albufeiras, bem como a recuperação de regadios já existentes, designadamente os tradicionais, terá que ser uma linha de investimento, assim como a modernização e construção de estações de tratamento de águas residuais e maior aproveitamento destas águas para diversos fins. Impõe-se o acesso a financiamento sem condicionamentos dos necessários investimentos na modernização e expansão das redes e condutas reduzindo significativamente as perdas. É necessário intervir para a contenção de modelos de exploração agrícola intensiva e superintensiva, que colocam em risco o fornecimento de água para abastecimento humano e projectos de exploração mineira que ponham em causa os recursos hídricos.
A posição do PCP e as medidas que entende necessárias inserem-se numa intervenção coerente e persistente. Como se diz na proposta de Lei de bases do Ambiente do PCP: «O uso da água não pode ser tratado na perspectiva da sua apropriação nem do seu comércio .... Não há lugar a individualismo, nem a competição, nem à procura de mais-valias de curto prazo. A menos que se queiram agravar as iniquidades actuais e hipotecar o futuro».