Há pouco mais de um ano, realizava-se em Portugal um dos maiores negócios de que há memória no sector das telecomunicações. A Portugal Telecom, depois de meses de uma nebulosa negociação, consumava a venda da sua participação na empresa VIVO – operadora brasileira – à Telefónica – empresa espanhola – pela astronómica quantia de 7500 milhões de euros, que havia adquirido 12 anos antes por cerca de 1000 milhões de euros realizando assim uma mais valia de cerca de 6000 milhões de euros numa só operação.
Um lucro fabuloso no maior negócio de sempre em Portugal, um dos maiores do mundo em 2010, e que não pagou um cêntimo sequer de imposto!
Como foi possível toda esta facilidade? Simples: a participação da PT na Vivo era detida por uma empresa com domicílio fiscal na Holanda, a Brasilcel BV, empresa que pertence à PT, SGPS. Esta rede de relações entre entidades aparentemente diversas, mas que na verdade são uma só unidade empresarial, fez com que a empresa com sede na Holanda tenha sido aí isenta de pagar imposto sobre as mais-valias realizadas com a venda da Vivo e, numa fase posterior, que estes lucros pudessem ter sido integralmente transferidos da sucursal holandesa para a empresa-mãe, isto é, para a PT, sempre sem pagar um cêntimo de imposto sobre lucros.
Mas este caso a todos os títulos exemplar não ficou por aqui. A rede montada para isentar de tributação este tipo de rendimentos prosseguiu até à distribuição efectiva dos lucros, isto é, dos dividendos das empresas-mãe pelos seus accionistas. Dos 6000 milhões de euros de lucros realizados em Junho do ano passado, a PT distribuiu cerca de 1500 milhões de euros em dividendos pelos accionistas, designadamente o BES, a Caixa Geral de Depósitos, a Ongoing, o Grupo Visabeira ou a Controlinveste. A legislação fiscal permitiu, porém, que estes lucros continuassem livres de impostos, na medida em que se tratavam de dividendos provenientes de sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), sendo que a legislação impedia a chamada dupla tributação, que foi e é, na maioria dos casos uma eficaz forma de não haver tributação nenhuma.
Pior: perante o anúncio feito com dois meses e meio de antecedência, isto é, em 15 de Outubro de 2010, que a intenção do Governo na altura passava afinal por tributar os dividendos recebidos por SGPS a partir de 1 de Janeiro de 2011, os grupos económicos e financeiros «desataram» a anunciar a antecipação da distribuição de dividendos antes do final do ano, quando à partida só seriam distribuídos em Abril ou Maio de 2011.
Foi o que fez, a PT – e também a Portucel e a Jerónimo Martins - anunciando a antecipação de cerca de 60% dos dividendos extraordinários resultantes da venda da Vivo, isto é, cerca de 900 milhões de um total de 1500 milhões. Recorde-se ainda, que, à época, o Estado português era detentor das chamadas Golden Shares, isto é, um accionista com poderes especiais que poderia e deveria tê-los usado para evitar esta situação, mas que optou pelo silêncio cúmplice perante o público esbulho que entretanto se processava.
Confrontados com esta situação, para além da sistemática denúncia deste verdadeiro roubo que estava a ser feito às receitas do Estado, o PCP apresentou na altura na Assembleia da República uma proposta visando impedir que esse golpe fosse concretizado, permitindo ao Estado arrecadar de imposto o equivalente a 200 milhões de euros sobre esses mesmos dividendos. Essa proposta foi chumbada pelos votos do PS, do PSD e do CDS, que preferiram ir buscar esse valor ao corte no abono de família que atingiu já no presente ano cerca de 600 mil famílias.
Maior hipocrisia é, de facto, impossível para designar um verdadeiro esquema legal de ausência de tributação e de pagamento de impostos da parte de grandes grupos económicos e financeiros organizados em torno das chamadas SGPS.
Este caso, a todos os níveis exemplar é parte do retrato da política que tem vindo a ser concretizada ao longo dos últimos anos em Portugal. Um caso que contém vários dos ingredientes dos temas que vamos hoje aqui analisar e que convém ser lembrado, na medida em que os mecanismos que o mesmo revelou, lançam alguma luz sobre as causas que conduziram o nosso país a uma das mais dramáticas situações desde os tempos do fascismo.
Um caso que revela o quadro em que hoje se processam operações financeiras de grande escala, expressão concreta da globalização capitalista a que assistimos nas últimas décadas e que é inseparável também da sua actual crise. Um mundo onde o poder dos monopólios se sobrepõe a tudo e a todos, com o conjunto de mecanismos de carácter nacional e internacional que conduzem à concentração e acumulação capitalista. E que traduz as consequências da crescente financeirização da economia e da livre circulação de capitais.
Um caso que põe a nu as consequências das privatizações para os interesses nacionais. Uma empresa outrora pública, de um sector básico e estratégico no nosso país, que foi sendo privatizada ao longo dos anos, sendo que a última etapa se realizou já neste verão com a eliminação das chamadas Golden-shares, não obstante o facto de apesar da existência deste instrumento, o governo de então, ter optado por metê-lo na gaveta e fazer de conta, enquanto os interesses do Estado eram flagrantemente prejudicados. PT que é hoje já largamente detida por capitais estrangeiros, fonte de drenagem da riqueza nacional para o exterior e prisioneira das estratégias e interesses desses mesmos grupos.
Um caso que expõe o tipo de investimento de capitais portugueses no estrangeiro que hoje predomina. Investimento no estrangeiro que recebendo volumosas quantias do Estado para estratégias ditas de internacionalização se dirige essencialmente para operações de natureza financeira de rápido e volumoso retorno, onde o único proveito foi o lucro dos seus accionistas.
Um caso que concretiza de forma cristalina qual o papel dos off-shores, estejam eles sediados na Holanda – para onde aparentemente as empresas do PSI-20 parecem estar a fugir - ou aqui na Madeira. Uma operação financeira realizada num paraíso fiscal que permitiu que não fosse pago um tostão pelas mais-valias realizadas no negócio.
Um caso que nos diz o porquê do enfoque colocado pela União Europeia, relativamente à chamada competitividade fiscal, cujas consequências, mais do que um instrumento para a captação de investimento, se traduzem numa cada vez vais vasta rede de possibilidades que permite que o grande capital se exima de qualquer imposto. Bem como, do papel que esta União Europeia desempenha em favor dos monopólios, a começar pelo estímulo, senão mesmo imposição da privatização dos sectores públicos.
Um caso que revelou a profunda injustiça fiscal que existe no plano doméstico, e as imensas possibilidades que o grande capital tem para a poder contornar, como se revelou na não tributação dos dividendos entretanto distribuídos. Aquilo que eufemísticamente alguns chama de planeamento fiscal, mais não é do que um expediente de fuga que está só ao alcance dos mais ricos e poderosos.
Um caso que permite ver aquilo que tantas vezes é negado em matéria das razões dos sucessivos défices orçamentais. Não são seguramente as despesas com saúde, educação, justiça ou segurança que estão na origem do problema do défice das contas públicas, mas sim um quadro legislativo que permite ao grande capital passar incólume perante o fardo dos sacrifícios e da austeridade que está hoje a ser servido em dose reforçada.
Um caso que exprime de forma contundente onde é que estão os milhões de euros produzidos pelo trabalho. Não estão seguramente nos bolsos dos trabalhadores, dos reformados, das pequenas e médias empresas, ou mesmo do Estado, mas sim na algibeira sem fundo dos especuladores, dos banqueiros, do capital financeiro.
E por último, um caso que não pode deixar de responsabilizar o poder político, cada vez mais submetido ao poder económico, como aliás se verificou pelo comportamento sem distinção de PS, PSD e CDS que em cada momento se comportaram seja no governo, seja na Assembleia da República, como agentes ao serviço dos interesses mais poderosos, executantes sem alma, da actual política de direita que está a conduzir o país para o desastre.
O detalhe que aqui se usou não visa focar o debate que se segue neste caso, mas tão só partir de um exemplo concreto e recente para a avaliação de uma realidade mais geral que infelizmente se agravou nos últimos meses.
O nosso país é hoje alvo de um processo de intervenção externa que resultou do compromisso entre os três partidos da política de direita e a União Europeia e o FMI. Um pacto de agressão que como temos sublinhado, não vai resolver, antes a gravar o conjunto dos problemas nacionais.
Nos objectivos centrais deste pacto, está o agravamento da exploração de quem trabalha, o saque das riquezas nacionais, uma cada vez maior subordinação do país aos interesses do grande capital e das grandes potencias estrangeiras.
O problema do défice das contas públicas é erguido como justificação primeira para a imposição de sacrifícios. Mas não há nenhuma medida que aponte para o combate a esse mesmo défice indo buscar recursos aonde eles estão. Todas as medidas estão construídas para o aumento das receitas fiscais é por via do IRS – veja-se o roubo ao subsídio de natal que começará – , do IVA, do IMI. Junta-se um programa de privatizações essencialmente dirigido para a aquisição de muitas dessas empresas pelo capital estrangeiro, ou não fosse o périplo que os diferentes ministros têm realizado por algumas capitais da Europa e do mundo, um indicativo sinal de quem está a vender o país a patacos.
E aos que vêm ou querem ver na troika, um qualquer sinal de moralização e medidas enérgicas, visando pôr as contas na ordem, só por cegueira, ou interesse próprio, é que não chega à conclusão de que tudo quanto está no programa de agressão, na política do governo, e previsivelmente nas medidas do orçamento de estado que será apresentado nos próximos dias, mais não é do que o aprofundamento do conjunto de políticas que empobrecem o povo português, delapidam os recursos nacionais e comprometem o futuro do país.
Dando continuidade à intensa intervenção política que temos dedicado a estes temas e que o debate público é hoje um exemplo, não deixaremos de continuar a lutar e a confrontar o país, com propostas e medidas concretas que permitam uma inversão no grossíssimo problema da fuga de capitais que está em curso. Desde a proposta do fim das isenções fiscais das empresas financeiras no off-shore da Madeira, passando pela obrigatoriedade de tributação fiscal das empresas na base do país onde exercem a sua actividade, até ao combate às privatizações, o PCP não só não deixará cair estas bandeiras, como intensificará a sua acção em torno destes problemas, cuja resposta é inseparável da política patriótica e de esquerda que propomos ao povo português.