«A Paz é uma bandeira avançada dos povos»

Entrevista a Socorro Gomes, Presidente do Conselho Mundial da Paz
Avante Edição N.º 1921, 23-09-2010

«Só teremos paz quando desmontarmos essa máquina de guerra e opressão». As palavras de Socorro Gomes na entrevista concedida ao Avante! sintetizam o desafio que enfrentam os trabalhadores e os povos na defesa da paz e de um mundo de progresso e justiça, e face ao perigo de novas aventuras militares imperialistas.
No contexto da crise do sistema, a luta pela paz e contra a exploração não podem ser dissociadas, expressou ainda a presidente do Conselho Mundial da Paz, para quem a alteração do conceito estratégico da NATO, prevista para a Cimeira de Novembro, em Lisboa, se enquadra no objectivo de perpetuar a dominação global das grandes potências.
________________________________________________________

Avante!: A tua eleição para a presidência do Conselho Mundial da Paz (CMP) ocorreu num contexto em que as forças progressistas ao nível mundial enfrentam grandes desafios. Um dos mais imediatos é a luta pela paz?

Socorro Gomes: De facto assumi responsabilidades no CMP numa época de grandes mudanças. Desde logo porque a minha eleição para a presidência ocorreu na primeira Assembleia Mundial da Paz realizada na América do Sul, e, não por acaso, em Caracas, capital da Venezuela, país onde há mais de dez anos são levadas a cabo transformações de crucial importância e que estimularam a eclosão de outras experiências semelhantes.
Este novo papel da América Latina, distinto da anterior subserviência aos EUA, resulta de um processo histórico iniciado com a resistência às ditaduras militares e, depois, prosseguido com a luta contra o modelo neoliberal, culminando nas vitórias obtidas pelas forças populares em diversos países e nas consequentes alterações ao mapa geo-político da região.

A resistência de Cuba, apesar do bloqueio norte-americano, das campanhas difamatórias e das tentativas de destruição do regime e de desmoralização do povo cubano - que prosseguem inclusivamente pela mão de alguns países da UE -, foi outro factor de grande importância.
Refiro-te isto para sublinhar que atravessamos, de facto, um momento particular e um novo contexto para o CMP, e, sobretudo, que em resposta também o imperialismo redobrou a sua agressividade.
Com a invasão e ocupação do Iraque e a guerra da NATO no Afeganistão, o imperialismo já havia demonstrado que quem faz a guerra não quer a paz. Mas no actual contexto de crise capitalista, sobressai o perigo de novas aventuras militares, cujo objectivo é atacar os direitos dos trabalhadores, aumentar a exploração e abafar a soberania dos povos.
A história demonstra que o imperialismo sempre teve esta natureza e ímpeto belicista. A destruição de Hiroshima e Nagasaki pelos EUA, mesmo sabendo que o inimigo já se encontrava derrotado, ilustra isso mesmo com toda a clareza. Foi uma demonstração de força, uma forma de intimidação dos povos.
Mas é olhando para a realidade que vivemos que constatamos que à crise económica se somou, também, uma crise de fundamentos ideológicos e morais do capitalismo. Enganaram os povos durante anos com a conversa fiada da promoção da democracia, da defesa do meio ambiente, dos benefícios infindáveis e inesgotáveis da economia de mercado. Os povos sentiram-se defraudados e reagiram. Ora o imperialismo não aceita que os povos reajam.
É, portanto, um desafio no sentido em que nos vemos na necessidade de mobilizar cada vez mais e maiores forças na defesa da Paz, uma bandeira avançada dos trabalhadores, das mulheres, dos jovens, em suma, dos povos porquanto que sem paz é impossível percorrer caminhos soberanos.
Este é o desafio do CMP - intensificar a mobilização, aumentar o nosso contingente no momento em que as forças favoráveis ao progresso dos povos, ao lado de quem luta pela independência e a justiça não são demais.

Mas esse processo de que falavas de reacção do imperialismo vem desde 2001, a pretexto do 11 de Setembro e da guerra ao terrorismo…

De acordo. E o desmontar do imperialismo como inimigo da paz, dos direitos humanos e responsável por crimes de lesa humanidade teve momentos altos com o repúdio das guerras do Iraque e do Afeganistão; com o conhecimento das torturas em Abu Ghraib e das detenções em Guantanamo; com a denúncia dos voos ilegais que transportavam para prisões secretas situadas em vários países do mundo suspeitos de «terrorismo» e opositores incómodos na chamada guerra ao terrorismo; com a revelação de massacres como o de Fallujah.
Em cada uma dessas ocasiões, o imperialismo foi perdendo a máscara. Para muitos milhões de pessoas foi-se desvendado como sistema de opressão e guerra liderado pelos EUA.

Imperialismo desmascarado

E a eleição de Barack Obama foi uma tentativa de voltar a «limpar a face»?

O imperialismo procurou maquilhar-se vendendo-nos Barack Obama. Até puxou pelas suas origens e pela postura simpática. Mas a verdade é que essa cosmética não é capaz de ocultar o sistema de dominação. Vê que Obama assumiu logo como suas as guerras de George W. Bush.
Na América Latina, por exemplo, George W. Bush lançou a IV Frota, conjunto de navios de guerra que comportam inclusivamente a possibilidade do uso de armas nucleares.
Os EUA procuraram fazer crer que se tratava de um contingente para executar missões humanitárias, e chegaram mesmo a dizer que se tratava de um sinal de amizade para com os governos da região. Mas essa argumentação caiu pela base. Era insustentável.
Primeiro porque não falaram com nenhum governo da região antes de reactivarem a IV Frota. Isto é, fizeram-no nas costas dos governantes eleitos democraticamente, o que representa um sinal de hostilidade e não de amizade.
Depois, disseram que era um sinal apenas para os governos contrários à política externa dos EUA, leia-se para os governos que buscam um caminho independente e soberano como os liderados por Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, ou o governo de Cuba.
A IV Frota mantem-se com capacidade para operar em toda a extensão da América Latina, incluindo nos rios do subcontinente. O objectivo é vigiar, intimidar, aterrorizar e, no limite, atacar os povos.

Depois disso já depuseram Manuel Zelaya…

Justamente. E fizeram-no porque ele procurou acabar com as bases militares norte-americanas nas Honduras. Esse objectivo valeu-lhe a destituição num golpe apoiado pelos EUA.
Mas eu dizia que os argumentos do imperialismo norte-americano caíram por terra na América Latina e, acrescentaria, em boa parte do mundo. Qual é o objectivo de mais de 800 bases militares espalhadas pelos quatro cantos do globo? Qual a função de dezenas de frotas que controlam mares e oceanos, os céus e continentes inteiros, que têm debaixo de olho todo o fluxo comercial mundial?
Os EUA são conhecidos pelos povos como os principais protagonistas de um sistema de opressão e morte, cujo fito é muito claro: controlar todas as fontes de recursos naturais, como as áreas ricas em biodiversidade (a Amazónia, por exemplo), minérios, água e petróleo. Para cumprir esse fim e em nome desse objectivo estratégico, o imperialismo norte-americano é capaz de qualquer coisa.
Por isso insistimos que só teremos paz quando desmontarmos essa máquina de guerra e opressão. Quando as bases e a NATO, instrumentos da dominação mundial pelas principais potências capitalistas, forem desmanteladas.
Apesar dos perigos e dificuldades que isso comporta, observamos com optimismo os povos e os trabalhadores que estão em luta e resistem.

Então consideras que essa consciência dos povos, essa resistência desencadeada é contra o modelo político e social dominante?

É contra o modelo de saque e dominação global. É motivada pela evidência de que a saída capitalista para a crise passa por aumentar os lucros e a exploração. No Brasil, por exemplo, avançámos muito, muito. Mas os bancos continuam a ganhar como sempre. Para eles não há crise.
O que sublinho é que esse crescimento da consciência dos povos sobre o que é o imperialismo, sobre a sua natureza, está ligado às questões concretas dos crimes e das guerras, mas também à denúncia do militarismo no quadro do aumento da exploração.
Voltando à América Latina para que se perceba a ideia, nós, organizações do movimento em defesa da paz, estamos em campanha contra as bases militares norte-americanas na região. Connosco estão, nessa mesma luta, todas as principais centrais sindicais, estruturas de camponeses e outras organizações sociais e políticas. Então esse movimento não está circunscrito aos colectivos pela paz.
Concluímos, assim, que é ampla a compreensão de que a partir da Colômbia os EUA podem intervir em qualquer um dos países do Cone Sul e que isso é contrário aos interesses de todos os trabalhadores. Só compreendendo isto se percebe a aliança da luta contra a exploração e da luta pela paz.

Reforçar a luta pela dissolução da NATO

Durante a tua estadia em Portugal tiveste oportunidade de estabelecer contactos no âmbito das tuas responsabilidades?

Sim, participámos em conversas e debates com vários partidos comunistas e progressistas participantes na Festa do Avante!, bem como com o movimento da Paz. Naturalmente, também nos encontrámos com o PCP.
Fazendo o balanço, posso dizer que foi muito produtivo. Discutimos a campanha pela paz e contra a NATO que está em curso a propósito da Cimeira da aliança atlântica, que se realiza em Novembro, em Lisboa.
Estamos a acompanhar a actividade do CPPC e das mais de cem organizações que integram a campanha «Paz Sim! NATO Não!», e sabemos que estão todos a fazer um enorme esforço para ampliar o repúdio à NATO e a exigência do desmantelamento desta descomunal máquina de guerra, opressão e morte ao serviço das grandes potências.

Achas que a alteração do conceito estratégico da NATO, previsto para a Cimeira de Lisboa, vai acentuar o papel agressivo daquela organização?

Com certeza. É mais uma afinação na máquina belicista, cujo raio de acção, sendo seguidas as regras e normas vigentes, encontra-se circunscrito aos países membros. Ora o que se pretende é precisamente alargar o espaço de acção da NATO e, ao mesmo tempo, prepará-la para integrar mais e mais nações, promovendo, ainda, a consolidação da união das potências imperialistas sob comando militar norte-americano.
O que procuram com esse tal novo conceito é preparar a NATO para atacar em qualquer altura e em qualquer território.
A Aliança Atlântica foi criada com o pretexto de conter a «ameaça comunista». Na verdade, já naquela época e sempre sob a liderança dos EUA, a NATO foi criada para impor a dominação norte-americana.
Então isto a que chamam de novo conceito estratégico não passa de um salto qualitativo, obedecendo à mesma orientação estratégica: servir o sistema capitalista para dominar, saquear e garantir a hegemonia norte-americana sobre os povos e os trabalhadores.
Nesse novo conceito acenam com a ameaça do terrorismo nuclear. Mas quem são os detentores das armas nucleares? Quem as usou impunemente em Hiroshima e Nagasaki? Então o terrorismo nuclear vem de quem não tem armas nucleares? É uma falácia.
Tal como é um logro o argumento da defesa do meio ambiente. Então que moral têm as potências imperialistas para falar em preservação do meio ambiente no quadro da NATO? Logo elas que pelas guerras que desencadeiam e desencadearam, carregam um rasto de consequências ambientais em resultado do uso de armas de destruição em massa e radioactivas em regiões inteiras, do uso de agente laranja ou de fósforo branco. Que moral têm para falar em protecção do meio ambiente?

Festa do Partido de vanguarda

Visitaste pela primeira vez a Festa do Avante!. O que é que achaste?

É arrebatadora e contagiante. Superou em muito as expectativas que tinha. Impressionou-me o facto da juventude participar em tudo.
Depois observa-se a generosidade, o carácter voluntário, a aliança entre o conteúdo artístico e cultural e a consciência política.
É de facto uma iniciativa extraordinária, ainda para mais porque comporta uma forte componente internacionalista. A vossa Festa é, sem dúvida, o local onde se encontram e discute com comunistas de vários países, com diferentes origens e culturas. Só pode, de facto, ser realizada por um Partido de vanguarda.

  • Central
  • Artigos e Entrevistas
  • Bomba nuclear
  • EUA
  • Guerra
  • Hiroshima
  • Imperalismo
  • Japão
  • Nagasaki
  • Paz
  • Segunda Guerra Mundial
  • Terrorismo