Intervenção de Ana Mesquita na Assembleia de República

«O Património Cultural é de todos, não pode ser moeda de troca em negociatas»

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Senhoras e Senhores Deputados,

Insólito, insulto, impensável, ilegal, incompetência. Estes são alguns dos epítetos utilizados nos últimos dias por associações, sindicatos, investigadores e tantas outras vozes que se levantaram em protesto contra a cedência de obras depositadas num museu público a um grupo hoteleiro privado e quanto ao conhecido novo elenco da Direcção Geral do Património Cultural.

Podemos acrescentar irónico: ao mesmo tempo que a Ministra da Cultura apresenta queixa pelo desaparecimento, não de 94, mas de 112 obras da Colecção de Arte do Estado, a Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural autoriza a cedência ao grupo Vila Galé, por 25 anos, de cerca de 50 peças da Coleção Rainer Daehnhardt, pertencentes ao Estado e incorporadas na reserva do Museu Nacional dos Coches.

Ou, podemos perguntar, será intencional? Pois há aqui uma estranha coerência, que se manifesta também nas alterações recentemente efectuadas ao nível da Direcção Geral do Património Cultural e na nomeação de um especialista do mercado imobiliário, que até passou na PARVALOREM, como director geral do património cultural, numa equipa sem um único arqueólogo.

Um aparente entusiasta, mesmo que por outro nome, de soluções do tipo REVIVE, da concessão e alienação do património público como, aliás, é possível ler na proposta, de seu próprio punho, para uma “Estratégia pública de gestão imobiliária em Portugal”, de 2013.

REVIVE que, aliás, é exactamente o início da história da cedência de obras a um grupo hoteleiro privado poder rentabilizar à conta do que é de todos e não só de alguns, pois o Hotel Vila Galé Collection Alter Real é exemplo de um imóvel alienado por via daquele programa.

Vão-se os dedos e também os anéis, e a ver se de uns e de outros um dia se saberá o paradeiro, como naquele episódio de má memória das Pousadas de Portugal e do património público. Pelo caminho, assiste-se a um inenarrável comunicado do grupo hoteleiro que ataca um museu nacional, dizendo que a colecção estava, e cito, em “estado deplorável e de abandono”. Que desfaçatez.

Ficará bem melhor, acharão, a decorar as vistas para turistas ricos do que a servir de património vivo para estudo, divulgação, discussão, problematização, ou seja, benefício colectivo nas reservas de um museu público e integração na sua normal programação museológica.

A política do Património não pode estar sujeita ou subordinada ao "mercado" e à política de turismo. O Património Cultural não pode ser alienado ou ver alteradas as suas características, nomeadamente físicas e de usos, apenas por mera vontade do governo e de interesses privados, independentemente de pressões que estes possam exercer.

E a pergunta que se coloca é que pressões existiram neste caso, pois há um parecer negativo do Departamento de Museus, Conservação e Credenciação em Agosto de 2019, aprofundado por comunicação da Directora do Museu Nacional dos Coches já este mês. E os termos são claros. Diz a Directora que “o despacho de 13 de janeiro de 2020 de sua excelência a secretária de estado adjunta e do património cultural padece, salvo o muito e devido respeito, de incompetência.”

Senhoras e Senhores Deputados, o que se exige é que este negócio ruinoso não avance e, mais ainda, que não possa concretizar-se a perspectiva aberta pela Secretária de Estado desta cedência vir a ser “a primeira de várias”.

O que se exige é o cumprimento cabal das responsabilidades do Estado na salvaguarda do património cultural, o que se exige é a concretização de propostas que o PCP há muito defende de reforço do investimento, de um programa coerente e progressista para o património cultural e o fim do esbulho, privatização, concessão que o Partido Socialista está a colocar em cima da mesa com medidas da natureza deste triste caso. O património não é nem pode ser moeda de troca em qualquer negociata.

E é por isso, senhoras e senhores deputados, que o PCP, além de ter já apresentado um requerimento para chamada à Comissão de Cultura da Senhora Ministra cabal esclarecimento de todo este caso, vai entregar um Projecto de Resolução para impedir a concretização da cedência das obras da Coleção Rainer Daenhardt e garantir a sua manutenção no Museu Nacional dos Coches.

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