Assinalamos os 38 anos da Constituição da República e os 40 anos do 25 de Abril, acontecimentos inseparáveis, ideia bem expressa por Álvaro Cunhal ao recomendar que «quem queira saber o que foi a Revolução de Abril leia a Constituição aprovada e promulgada em 2 de Abril de 1976», «ela significa a institucionalização em termos constitucionais da Revolução de Abril».
Esta realidade é ponto de partida para se compreender o que significou a promulgação da Constituição, a posição de diferentes forças militares e políticas, as alianças que se estabeleceram a favor e contra a Constituição e que esta se tenha tornado, ainda antes da sua existência, alvo da ofensiva contra-revolucionária, ofensiva que ainda hoje se mantém apesar das mutilações que a Constituição já sofreu.
Esta intervenção não versará, naturalmente, sobre os ordenamentos jurídico-constitucionais, mas do lugar que a nossa Lei fundamental ocupou e ocupa no confronto entre as forças da revolução e da contra-revolução, entre as forças que defendem os valores de Abril e as que querem liquidá-los. Um confronto que radica na natureza da Revolução portuguesa e suas conquistas, e estas forças nunca aceitaram.
Torna-se necessário lembrar que no centro deste confronto, de forma encapotada ou aberta, esteve sempre o Partido Socialista, como eixo e motor da constituição de um bloco político-social e, em certos momentos, militar, de suporte político á acção contra-revolucionária. Dizêmo-lo por ser um facto. Dizêmo-lo porque as alianças do PS com a direita criou um grave problema - que persiste - à arrumação de forças no campo democrático, à defesa da constituição. Uma actividade que começou logo nos primeiros dias da Revolução. Primeiro com Spínola e os spinolistas que se opunham à transformação do golpe militar numa revolução.
Com o avançar do processo revolucionário, foi o empenho na criação de um bloco político-social, mas também militar, mais amplo, com vista a conter o desenvolvimento do processo revolucionário. Bloco que se consolidou com as tentativas para impedir a promulgação da Constituição, tentativas que chegaram a equacionar o afastamento do General Costa Gomes da Presidência da República.
Derrotadas os planos para impedir a promulgação da Constituição, investido na chefia do I Governo Constitucional, em resultado das primeiras eleições para a Assembleia da República,Mário Soares assume já como tarefa expressa no programa do seu Governo, reverter essa derrota.
Não seria só o socialismo mas também o projecto de regime democrático consagrado na Constituição, que viriam a ser metidos na gaveta.
Não falamos de elucubrações teóricas. Falamos de uma longa história de factos, hoje amplamente documentados, e dos quais referiremos apenas alguns.
Logo na noite de 25 para 26 de Abril, Spínola tentou impor ao MFA a revisão do seu Programa. Apesar de derrotado, não se coibiu de anunciar à comunicação social que ia ser distribuída uma cópia do Programa do MFA revisto, sem explicitar em quê e qual a entidade responsável pela revisão.
Sabemos que Spínola sonhava com um regime de liberdades limitadas, no qual seria mantido o essencial do poder político, económico e colonial do fascismo, um regime naturalmente incompatível com a ideia de eleger uma Assembleia Constituinte com a função de elaborar uma Constituição, à margem do seu poder e dos seus objectivos.
A manobra de Spínola para se fazer eleger Presidente da República, antes das eleições para a Constituinte, visando chamar a si a elaboração de uma Constituição que fosse plebiscitada, contrapondo a sua legitimidade eleitoral à legitimidade revolucionária, foi derrotada como o foram outras suas manobras.
Realizadas as eleições para a Assembleia Constituinte a 25 de Abril de 1975, o PS/Mário Soares, com o apoio dos partidos da direita, vai contrapor de forma sistemática a legitimidade eleitoral à legitimidade revolucionária, tentando que a Assembleia Constituinte, cuja função exclusiva era a elaboração da Constituição, se tornasse no centro da contestação à acção popular, à política do Governo de Vasco Gonçalves, à institucionalização dos militares na vida política e, de modo geral, ao processo revolucionário e suas conquistas.
São suficientemente conhecidas as sucessivas acções, apoiadas pelas forças mais reaccionárias, que varreram o país durante meses em apoio dos seus planos. No período da crise que antecedeu o 25 de Novembro, sectores militares chegaram a equacionar com Mário Soares, a transferência da Constituinte para o Norte.
A promulgação da Constituição representou pesada derrota para as forças da contra-revolução. É surpreendente e demonstrativo da profundidade da Revolução portuguesa, das transformações operadas no país, e do enraizamento dos seus valores nas massas populares e em sectores democráticos e militares que, quatro meses depois das profundas alterações no poder político-militar desfavoráveis à esquerda resultante do reunião de Tancos e do 25 de Novembro; quando se encontrava em funções o VI Governo Provisório no qual PS e PSD eram dominantes; que esses partidos na Assembleia Constituinte, procurando tirar partido da nova correlação de forças, tenham tentado rever artigos já aprovados, e que, apesar de terem movido o céu e a terra para impedir a promulgação da Constituição, esta tenha sido promulgada, institucionalizando um regime democrático que era o resultado da acção revolucionária.
Com a promulgação da Constituição, o regime democrático passou de provisório a definitivo; todas as grandes conquistas da revolução - reforma agrária, nacionalizações, direitos dos trabalhadores, incluindo o controlo operário - não só eram consagradas constitucionalmente, como se tornou obrigatória a sua defesa para todos os poderes instituídos. Com a promulgação da Constituição, a liquidação do poder político e económico do fascismo tornava-se igualmente definitiva.
Que se tenha conseguido aprovar e promulgar a Constituição no quadro político de então é uma das originalidades da nossa Revolução o que se explica porque a Constituição constitucionalizava uma realidade que se tornara profundamente enraizada na sociedade e que gozava de profundo apoio no povo português; porque a acção revolucionária continuava a existir a par da legitimidade eleitoral; porque sectores militares que se tinham aliado ao PS e aos partidos da direita no processo de contenção do avanço revolucionário diziam não querer um regime social-democrata; além de, esses militares, a começar pelo Presidente da República, serem a favor da promulgação da Constituição como factor de estabilização do regime democrático.
Acontece ainda que, parte significativa dos deputados do PS não estava em consonância com os projectos da direcção do seu partido. Neste quadro a aqueles partidos, não tendo por consolidado o quadro das alterações na correlação de forças, jogaram num compromisso político, com reserva mental à espera de melhores dias. As profissões de fé de Mário Soares num regime democrático a caminho do socialismo, na irreversibilidade das nacionalizações, sobre o capitalismo obsoleto e retrógrado, opiniões em muitos aspectos secundadas pelo PSD, não correspondiam obviamente às suas convicções, nem à ideia de aceitar que as grandes conquistas democráticas, «filhas da acção revolucionaria», se tornavam irreversíveis, como se viria a mostrar poucos dias depois de promulgada a Constituição, na sequência das eleições para a Assembleia da República realizadas em Abril de 1976 e consequente formação do I Governo Constitucional chefiado por Mário Soares.
O programa de Governo apresentado à Assembleia da República tornava clara a intenção do PS/Mário Soares, contrapondo a legitimidade eleitoral à legitimidade revolucionária para intensificar os ataques às conquistas democráticas, escudado numa aliança com a direita, aliança que se tornou no suporte dos ataques à Constituição e às conquistas que esta consagrava praticamente até aos nossos dias.
A partir de então, as políticas dos sucessivos governos entraram cada vez mais pelo caminho da violação da Constituição, de ataques às grandes conquistas democráticas.
Constitucionalizar a contra-revolução passou a ser a tarefa dos sucessivos governos e das maiorias na Assembleia da República na base do PS, PSD e CDS-PP.
A revisão de 1982 procedeu à reconfiguração dos órgãos de poder com a
extinção do Conselho da revolução e a participação institucional dos militares na vida política; a de 1988 atacou a consagração constitucional das grandes conquistas socioeconómicos da Revolução, e a de 1992 abriu caminho ao à submissão de Portugal aos interesses do imperialismo.
Os argumentos usados ao longo dos anos pelo PS, PSD e CDS, de que a Constituição se tornou um factor fracturante na sociedade portuguesa, que impede a modernidade do país, é uma falsidade. O que é fracturante são as violações da Constituição e os planos, hoje claramente assumidos, de liquidação do regime democrático constitucional, planos que encontram na Constituição forte obstáculo à sua concretização.
Passados 38 anos, a Constituição portuguesa, apesar das mutilações, continua a ser importante instrumento de luta pela defesa do regime democrático. Cumpre a todos os que estão com os valores de Abril, defendê-la.