Estando provavelmente quase tudo dito sobre a questão do serviço público de televisão e da RTP, mas nunca estando dito o suficiente sobre a brutal agressividade e total desconchavo das posições do novo Governo a este respeito, arrisquemos ainda assim quatro observações.
A primeira destina-se a sublinhar que bem sabemos como se chegou a este ponto de que vamos falar já a seguir mas isso não pode conduzir a que ajoelhemos perante a inversão da exigência de discursos de justificação que hoje está revoltantemente em cena.
E que é particularmente patente no facto de serem os defensores do serviço público de televisão que têm de demonstrar porque é que ele é necessário em vez de, como devia acontecer, deverem ser os defensores da sua extinção a oferecerem a detalhada justificação das razões porque é que um poderosíssimo meio de comunicação que opera num bem restrito - o espaço hertziano - de incontroverso domínio público e que exerce uma influência decisiva na formação da opinião dos cidadãos e no próprio curso da vida nacional devia ser monopolizado por entidades privadas (que, lembre-se aos esquecidos, receberam concessões temporárias outorgadas pelo Estado) sejam elas nacionais ou estrangeiros, como muito bem pode acontecer de um dia para o outro graças à sacrossanta liberalização dos movimentos de capitais.
A segunda observação é para abordar a questão da publicidade no serviço público de televisão, começando logo por dizer que ficamos verdadeiramente comovidos quando vemos representantes do PSD e do CDS-PP a proclamar que a existência de publicidade gera a luta por ela, que esta gera por sua vez a luta pelas audiências, e que esta gera por fim a inevitável degradação da programação.
Do nosso ponto de vista, não se trata tanto de negar os nexos possíveis entre os fenómenos descritos mas de assinalar o simplismo e esquematismo da tese. Para quem, como nós, sustenta simultaneamente que o serviço público de televisão não deve participar numa luta dementada pela conquista de audiências a qualquer preço mas também não deve desistir de ter a significativa audiência que é essencial à sua própria missão, o problema tem de ser resolvido ao nível de uma cuidada e firme orientação e não através do fim da publicidade.
Lembramos a este propósito que a RTP/2 não era seguramente participante da luta pelas audiências e, no entanto, havia empresas que lá colocavam publicidade até ao dia em que, administrativamente, o Governo do PS a proibiu, ao mesmo tempo que impunha maiores restrições quantitativas à publicidade na RTP/1.
Mas, nesta matéria, o que é mesmo curioso é ver partidos e personalidades que, em quase tudo o mais, andam sempre a defender o excelso "mercado" e as suas famosas "leis", quando se trata de publicidade na televisão já quererem que seja o famigerado Estado a decidir a favor de uns - os canais privados - e contra outros - os canais públicos, oferecendo por via legislativa ou regulamentar aos primeiros a vitória total sobre os segundos que não conseguiram no "mercado".
E porque há pequenas coisas que falam mais do que as grandes, registamos que foi sob o interrogado título "O fim do saque à RTP?" e para aplaudir "a vontade que o Governo manifesta de encarar de frente os problemas da RTP" que o desinteressado "Expresso" inaugurou, no passado sábado, a publicação de uma nota-editorial logo na primeira página, neste caso conveniente realçada por um fundo de azul.
E para a pequena história desta questão da publicidade, talvez deva ficar ainda como exemplo de autismo perante a realidade e de dogmático acantonamento em torno de "princípios" ou aspirações abstractas, a defesa pelo Bloco de Esquerda ( consagrada em projecto de lei que apresentou) do fim da publicidade nos canais de serviço público de televisão, como se fosse possível fugir à evidência de que isso significaria inevitavelmente dar um generoso brinde aos canais privados, aumentar os encargos do Estado e, com isto, dar alimento a maiores pressões futuras para a privatização ou liquidação da RTP.
A terceira observação tem em vista salientar que só o preconceito, a teimosia e a deriva conservadora podem explicar que, após anos e anos de debate em torno destas questões, continue a haver pessoas cultas e informadas, como o director do "Público", que não querem perceber que falar de serviço público de televisão não é falar apenas de um conjunto de serviços concretos que se prestam ( e que os canais privados e a sua lógica não asseguram) mas também de uma concepção global de informação e programação que integra naturalmente esses serviços concretos mas que é mais do que a sua soma e que, sem que isso possa causar escândalo, tem de incluir componentes de entretenimento e outras próprias de canais generalistas, que. sem mimetismos com o pior das privadas, assegurem uma significativa relação com o público.
A quarta é para assinalar que o PCP está intervindo activamente em defesa de um reestruturado e renovado serviço publico de televisão mas que o faz sem nenhuma rasura ou amnésia sobre um longo e pérfido conjunto de malfeitorias e errados critérios de informação, programação e gestão que consistentemente criticou ao longo de anos e anos e que, em parte essencial mas não exclusiva, foram consumados pelos mesmos que agora pretendem a liquidação do serviço público de televisão ou a sua redução a uma flor de estilo. Mas também sem participar dessa vaga de opiniões precipitadas e ligeiras que tendem a não ver absolutamente nada de positivamente diferenciador entre a RTP e os canais privados.
Por fim, queremos deixar expressa a opinião de que, entre milhares de palavras bem ditas e bem escritas em defesa do serviço público de televisão, foi em meia dúzia de aparente simplicidade, que encontrámos uma ideia importantíssima e de uma profundidade maior do que se pode imaginar.. Foram ditas por Amélia Muge ao "Público" e vieram lembrar aos distraídos que, citamos de memória, há coisas de que só sente a falta quando se perdem.