Como referimos no convite que vos foi dirigido para esta sessão de apresentação do livro «Clara Zetkin e a luta das mulheres. Uma atitude inconformada. Um percurso coerente», o objectivo que nos norteou foi dar a conhecer algumas das suas reflexões teóricas e aspectos mais marcantes da sua vida e do seu percurso político, reflectindo sobre a actualidade do seu pensamento, no presente, para a luta das mulheres pela efectivação plena dos seus direitos.
Clara Zetkin nasceu a 5 de Julho numa pequena aldeia na Saxónia (Alemanha) e morreu a 20 de Junho de 1933 na União Soviética, país onde se refugiou com a subida dos nazis ao poder na Alemanha e de que foi uma entusiástica apoiante da Revolução Socialista de 1917.
Porquê recordar Clara Zetkin 150 anos após o seu nascimento?Porque foi uma incansável lutadora em defesa de direitos económicos, sociais, políticos e culturais para as mulheres, numa época em que as classes dominantes lhes negavam tais direitos, com base em supostas razões «científicas», como sejam a associação do volume do seu cérebro à menor capacidade das mulheres; nos países industrializados o trabalho fabril era realizado em condições desumanas a troco de salários de miséria de homens, de mulheres e crianças, com jornadas de trabalho de 12 a 14 horas, em semanas de seis dias, incluindo, frequentemente, as manhãs de domingo.
Do ponto de vista teórico, o seu contributo marca a luta das mulheres no século XX. Da sua vasta produção lega-nos teses de enorme riqueza, profundidade e actualidade, que marcaram o seu percurso político e a sua actividade revolucionária. Entre elas, destaco:
• Em defesa dos direitos das trabalhadoras, acentuando sempre a importância decisiva da participação da mulher no mercado do trabalho como primeira condição da sua autonomia económica, retirando a mulher de uma situação de dependência e sujeição perante o marido, ao mesmo tempo que o trabalho lhe permitia aumentar a sua consciência social e política.
Clara Zetkin mostrou a natureza exploradora do capitalismo: «A mulher que se liberta da dependência económica do homem continua sobre o domínio do capitalista; de escrava do homem passa a escrava do patrão».
E mostrou como o trabalho das mulheres é usado pelo capital para diminuir o salário dos homens, evidenciando a forma como o sistema capitalista explora a mão-de-obra das mulheres - como um novo e importante factor económico ao serviço da maximização do seu lucro.
São de Clara Zetkin as seguintes palavras: «o sistema capitalista é o único culpado de que o trabalho feminino tenha como resultado exactamente o contrário da sua tendência natural: que em vez da redução do dia de trabalho conduza ao seu aumento e não contribua para o reforço da riqueza da sociedade e do bem-estar dos seus membros, mas apenas para o aumento dos lucros de um punhado de capitalistas e para alastrar a pobreza».
• Pela participação das mulheres nas organizações sindicais, afirmando:
«Quanto mais os sindicatos puderem contar com as trabalhadoras prontas a lutar lado a lado com os seus camaradas de fábrica ou de oficina por melhores condições de trabalho, maiores serão as oportunidades de verem aumentados os salários femininos e de se realizar o princípio: para trabalho igual, salário igual, sem distinção de sexo. A trabalhadora sindicalizada e tratada de modo igual ao trabalhador deixa de ser para ele uma concorrente desleal».
Sobre esta matéria responsabilizou os sindicatos: «Cabe aos sindicatos tomar consciência desta necessidade e trabalhar energicamente para a inserção das mulheres nas organizações».
• Pelo sufrágio universal de todas as mulheres. Clara Zetkin empenhou-se na luta pelo sufrágio universal das mulheres, afirmando:
«O direito de voto ajuda as mulheres da burguesia a derrubar as barreiras que, sob a forma de privilégios masculinos, limitam as suas possibilidades de acesso à educação e à vida profissional. E arma as mulheres trabalhadoras na luta que levam a cabo contra a exploração e a dominação de classe para conseguirem ser reconhecidas como seres humanos de corpo inteiro. Dá-lhes o meio de participar de forma mais ampla na conquista do poder político pelos trabalhadores, a fim de vencer o capitalismo e instaurar o sistema socialista, a única solução para o problema das mulheres».
Mas ao mesmo tempo adverte: «o direito ao voto sem liberdade económica não é mais nem menos do que um cheque sem provisão. Se a emancipação social dependesse dos direitos políticos, a questão social não existiria nos países onde está instituído. A emancipação social da mulher, como de todo o género humano, só se tornará realidade no dia em que o trabalho se emancipar do capital».
• Sobre a educação das crianças considerou dever ser uma tarefa conjugada entre a família e a sociedade, defendendo uma escola laica, pública e gratuita - desde os jardins de infância à universidade; onde o ensino misto fosse uma realidade como forma de cooperação harmoniosa entre os dois sexos; e onde a igualdade direitos entre homens e mulheres fosse uma realidade, confiando-se às mulheres os mais altos postos do ensino e da administração.
• Quanto à família defendeu que a educação dos filhos é uma tarefa conjunta da mãe e do pai como num «segundo acto de criação e muitas vezes o mais importante».
Segundo, ela os pais devem educar as crianças «contra preconceitos, segundo os quais existem trabalhos indignos do homem, mas que convêm à mulher. É preciso que rapazes e raparigas saibam fazer todas as tarefas do lar com a mesma habilidade e o mesmo prazer».
• Assume a crítica à concepção de casamento na sociedade burguesa que remete a mulher para uma posição servil. Clara Zetkin defende o casal como uma união por amor de dois parceiros iguais. Ao contrário da opinião dominante do seu tempo que via no divórcio um sinal do declínio da moralidade, ela defendeu o divórcio por mútuo acordo e entendendo-o como um sinal de «grande exigência moral».
Entre Abril e Setembro de 1905, numa altura em que na Alemanha se discute a reforma do casamento, Clara publica na revista A Igualdade, de que é redactora-chefe, uma série de artigos sobre as alterações ao direito conjugal e familiar. A sua crítica incide sobre as disposições legais que só «valem para as coisas e não para as pessoas para não lesar a intocável propriedade privada» e sobre as disposições legais que remetem a mulher para a tutela do marido.
• Igualmente Clara Zetkin se pronunciou pela suspensão da severa punição do aborto na lei alemão.
• E cedo teve consciência das causas económicas e sociais que levavam à prostituição: «... a fome obriga as operárias a procurar, parcialmente ou provisoriamente, recursos na prostituição, a vender o seu corpo para ganhar o pão que a força do seu trabalho não lhe permite».
Importa destacar que em toda a sua reflexão teórica e intervenção política que lhe deu suporte Clara Zetkin acentuou sempre e de forma clara natureza de classe da luta pelos direitos das mulheres. E mostrou como eram distintos os objectivos finais que norteavam as reivindicações pela igualdade de direitos das mulheres em função da sua classe social.
• Vejamos no plano dos direitos económicos: para as mulheres das classes detentoras da propriedade a sua luta visava o acesso ao direito de propriedade sobre os seus bens. Tratava-se de uma luta dirigida contra os privilégios dos homens da sua classe social, sem nunca pôr em causa o domínio desta classe sobre as mulheres e homens das classes trabalhadoras.
• Em contrapartida, a obtenção de direitos económicos para as trabalhadoras não era dirigida contra os homens da sua classe social, na medida em que o direito ao trabalho não representava uma oposição entre os interesses de umas e outros. Pelo contrário, a defesa dos direitos económicos das trabalhadoras e dos trabalhadores tinha como única e verdadeira oposição o antagonismo de interesses entre o capital e o trabalho.
• Vejamos no direito ao voto para todas as mulheres (pelo qual Clara Zetkin se bateu vivamente): significava para as mulheres das classes detentores do poder económico o fim dos privilégios dos homens da sua classe social, não alterando qualquer relação de poder entre as classes sociais. Aliás, a maioria das organizações feministas burguesas alemãs defendeu o voto limitado apenas às mulheres da sua classe, uma posição que só mais tarde rectificarão.
Enquanto que a luta pelo direito ao voto das mulheres trabalhadoras deveria ser um importante meio de luta contra o sistema capitalista, a base
Importa ainda referir que o modo como Clara Zetkin acentuou a natureza de classe da luta das mulheres pela conquista dos seus direitos não significou a desvalorização da luta das mulheres burguesas. A mostrá-lo está a sua afirmação:
«A mulher burguesa não só exige o seu próprio pão, mas também requer uma vida intelectual e o desenvolvimento da sua individualidade.
... mulheres que estão cansadas de viver como bonecas e querem partilhar o desenvolvimento da cultura moderna: e tanto por um lado económico como por um lado intelectual e moral os esforços das feministas burguesas são inteiramente justificados».
Clara Zetkin mostrou o carácter limitado das «reformas», no quadro do sistema capitalista:
«A sociedade burguesa não tem uma posição de princípio oposta aos movimentos das mulheres burguesas, facto provado pelas reformas tanto no campo das leis privadas como das públicas em favor das mulheres já iniciadas em vários Estados. A garantia da igualdade política das mulheres não altera o actual equilíbrio de poder. A mulher proletária acaba como proletária, a mulher burguesa no campo burguês».
Clara Zetkin quis estar ao lado da luta das mulheres da classe trabalhadora:
«Apesar dos pontos de contacto no plano das reivindicações jurídicas e políticas, a trabalhadora não tem nada em comum com as mulheres de outras classes sociais no que respeita aos seus interesses económicos decisivos».
Clara Zetkin não se preocupou apenas com a reflexão teórica. Ela deu uma grande importância à intervenção política e revolucionária, numa actividade que teve enorme importância na dinamização da organização entre as trabalhadoras na Alemanha e em diversos países, consciente da importância decisiva de aumentar a sua consciência social e política e consequentemente fortalecer os objectivos de luta do conjunto do movimento operário e revolucionário.
São delas as seguintes palavras: «A luta de libertação da mulher trabalhadora não pode ser semelhante à luta que as mulheres burguesas desenvolvem contra os homens da sua classe. Pelo contrário, deve ser uma luta conjunta com os homens da sua classe contra a classe inteira de capitalistas».
Clara Zetkin concentrou muito da sua actividade na criação da organização das trabalhadoras, destacando sempre o papel da sua participação nos sindicatos e igualmente assumindo um activo papel na aprovação de orientações claras para a luta organizada das mulheres no seio dos partidos comunistas nos diversos países. Nesse sentido, empenhou-se na realização de conferências internacionais de mulheres, nas quais se iniciou a cooperação entre mulheres revolucionárias de diversos países, se debateram e formularam reivindicações específicas que deram conteúdo concreto ao desenvolvimento da luta organizada das trabalhadoras, tendo como objectivo a luta contra o sistema capitalista e a edificação de uma nova sociedade onde a emancipação humana fosse uma realidade – a sociedade socialista.
Foi uma mulher politicamente comprometida. A sua vida e o seu percurso político - que damos a conhecer de forma pormenorizada na primeira parte deste livro - revelam-nos uma mulher culta, aberta a novas aquisições e conhecimentos, cuja formação política se alicerçou na observação permanente da realidade, na leitura dos principais teóricos do movimento operário e revolucionário e no aprofundamento da sua própria reflexão.
Clara Zetkin deu enorme importância ao papel que deveria ser desenvolvido pelo movimento operário e revolucionário na primeira linha em defesa dos direitos das trabalhadoras. Ela contribuiu para um debate frontal das diferentes posições em matérias que foram polémicas e até antagónicas no seio deste movimento. Em muitas destas matérias contou com o apoio de Lénine, bem patente nas Recordações sobre Lénine, onde relata as conversas que com ele manteve. Foram debates intensos em que se acertaram orientações ideológicas e linhas de acção que afrontaram as concepções políticas e ideológicas das classes dominantes e tornaram o movimento comunista pioneiro na luta emancipadora das mulheres.
Os seus escritos mostram a sua permanente atenção à evolução da realidade social e política na Alemanha e noutros países que visitou em diversas circunstâncias, e o seu inconformismo perante a situação dos mais desfavorecidos e perante os graves flagelos sociais e políticos: a exploração capitalista, os salários de miséria, o militarismo, a guerra e o perigo do fascismo.
Aos 20 anos adere ao Partido Socialista Operário Alemão (que passará a designar-se Partido Social-Democrata da Alemanha).
No Congresso Internacional Operário, realizado a 19 de Julho de 1889 (congresso fundador da II Internacional e que consagraria o 1º de Maio como o Dia do Trabalhor), Clara Zetkin apresenta um Relatório sobre a questão das mulheres perante 400 delegados vindos de toda a Europa, em que relata a situação das trabalhadoras no regime capitalista. Este discurso «Pela libertação da mulher» é o seu primeiro grande discurso e a primeira vez que, numa instância internacional, se defende a causa da igualdade e o direito das mulheres ao trabalho. Este discurso (que integra o conjunto de escritos que apresentamos na segunda parte deste livro) contém algumas das teses centrais sobre a emancipação da mulher, teses que Clara Zetkin continuará a desenvolver de forma sistemática.
A partir de Janeiro de 1892 passa a ser a redactora-chefe de uma nova publicação dirigida às mulheres A Igualdade que dirigirá durante 25 anos – desde o seu primeiro número até 1917. Nas vésperas da guerra esta revista contava com 125 mil assinantes. Não há um único número que não retrate o desenvolvimento da luta das trabalhadoras, a sua escandalosa exploração e a necessidade de protecção social, a miséria das operárias com salários que não chegavam para uma refeição quente uma vez por semana. Não há número que não informe sobre o calendário de acções ou actividades de grupos de mulheres em vários países.
Quando, em 1907, Clara Zetkin é eleita Secretária do Movimento Internacional das Mulheres Socialistas, esta publicação torna-se o seu órgão oficial.
Clara Zetkin situa-se na ala esquerda do partido social-democrata alemão. Com Rosa Luxemburg, com quem manterá uma relação de grande amizade e consulta mútua, e com outros dirigentes, fazem uma importante oposição contra o revisionismo de Bernstein, que combatia a luta pela revolução socialista declarando como única tarefa do movimento operário a luta por reformas no quadro da sociedade capitalista.
Clara Zetkin rompe com a social democracia e em 1919 adere ao Partido Comunista da Alemanha, sendo eleita para o seu Comité Central. É membro do seu Bureau Político até 1924 e do Comité Central até 1929. Foi eleita deputada comunista nas eleições de 1920, mantendo esta função até 1932, onde proferiu um discurso sobre os perigos do fascismo. Gozando de enorme prestígio, Clara Zetkin torna-se dirigente da Internacional Comunista.
Entre 1921 e 1925 tem a seu cargo a direcção da revista A internacional Comunista das Mulheres. Em Junho de 1923 apresenta no Comité Executivo da Internacional Comunista o seu relatório sobre o fascismo «A luta contra o fascismo», numa altura em que os fascistas já estão no poder em Itália e na Alemanha surgem os primeiros grupos nacional-fascistas e racistas.
Clara Zetkin não foi uma mulher só, nem nas causas sociais que abraçou, nem na reflexão teórica que lhe deu suporte. Esta revolucionária alemã, que se tornou uma prestigiada e influente dirigente do movimento comunista alemão e internacional, é sem dúvida uma figura incontornável da luta do movimento operário e comunista e da história de luta das mulheres no século XX.
Para a Organização das Mulheres Comunistas o pensamento de Clara Zetkin insere-se no património de luta e intervenção do PCP ao longo de 86 anos de actividade, em que a condição da mulher portuguesa e a luta pelos seus direitos foi sempre uma preocupação.
A nossa acção no presente centra-se numa empenhada luta pelo reforço da intervenção das mulheres portuguesas em defesa do pleno exercício dos seus direitos e numa luta que tem como horizonte a defesa dos direitos das mulheres, a transformação social e o socialismo.