Intervenção de Vasco Cardoso, Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP, Apresentação do livro «Privatização da Ana: Assalto aos Aeroportos»

Se a privatização da ANA constituiu um assalto aos aeroportos, as privatizações têm constituído um assalto ao País

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Camaradas e amigos

Permitam-me, em nome do PCP e da Editorial Avante!, agradecer a todos a vossa presença nesta sessão pública de apresentação do livro “Privatização da ANA: assalto aos Aeroportos”. Um livro que surge, cerca de um ano depois da apresentação de um outro, também ele dedicado à denúncia das privatizações, nesse caso sobre as várias tentativas de privatização da TAP.

Esta forma de intervenção do PCP, reunindo, organizando e sistematizando informação, formulando teses centrais sobre os responsáveis, as causas e os objectivos que estão por detrás de algumas das principais decisões que no plano económico e político têm sido tomadas no nosso País, assume, nos dias que correm um papel central no combate político e ideológico que travamos. 

É que, como afirmamos neste dossier “vivemos num mundo onde a informação e as opções políticas que ela conduz são determinadas pela espuma dos dias. A informação é demasiadas vezes desinformação, mentiras criadas para vender um qualquer produto, ideia ou ideologia.” De tal forma que “informar, simplesmente informar, é cada vez mais uma fundamental forma de propaganda revolucionária.”

Como é sabido, nos últimos dias o País tem sido sacudido com um vendaval de notícias e comentários a propósito de um outro tipo de assaltos nos aeroportos que, alegadamente, terão sido praticados por um deputado do Chega. Uma vez mais a voragem mediática para onde nos pretendem arrastar fez deste tema assunto nacional. Percebemos o pitoresco e o anedótico da situação, que, mais não seja, porque serviu para expor a todos a demagogia das forças reaccionárias que dizem uma coisa e fazem o seu contrário. Mas foi isso: um episódio. Um episódio que passou para rapidamente ser substituído pela notícia seguinte ou do dia seguinte, sem estar destinado a mais que gerar um reflexo - uma indignação, um aplauso, uma comoção – que durará um segundo ou um dia.  

O assalto aos aeroportos de que queremos falar neste livro é outro. Um assalto que começou há doze anos, que continua nos dias que correm e que ameaça prolongar-se pelas próximas décadas. Um assalto que, ao contrário do outro, não teve, nem terá honras de frenesim mediático, mesmo se não existe comparação possível entre a comédia e a tragédia. Mas um assalto bastante mais violento, profundo e impactante na vida nacional que, por envolver quem envolve, quem se julga dono disto tido, tem sido sistematicamente silenciado e desvalorizado.

Este livro é então a apresentação de um conjunto de factos e teses sobre a ANA, a gestora dos Aeroportos Nacionais, sobre a sua privatização e as amplas consequências que ela gerou na economia e em decisões urgentes de política pública, nomeadamente sobre a construção do Novo Aeroporto Internacional de Lisboa. 

Queremos deixar claro que, os factos que apresentamos neste dossier são todos auditáveis, e os leitores são a irem às fontes mencionadas de cada vez que um número lhe parecer estranho, exagerado, falso. 

Estamos perante um crime gigantesco. Uma privatização que gerou lucros de milhares de milhões de euros para um conjunto de capitalistas, e ganhos de muitos milhões para um conjunto de intermediários. Mas que principalmente provocou e continua a provocar prejuízos gigantescos ao nosso povo e ao nosso país. 

Quando o próprio Tribunal de Contas, numa auditoria feita à privatização da ANA, demonstrou a gravidade deste crime, e o PCP apresentou a proposta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito face à gravidade das conclusões aí tiradas, de imediato os mandantes e os executantes da privatização, não só se uniram na Assembleia da República para impedir essa Comissão Parlamentar de Inquérito, como se lançaram contra o PCP e mesmo contra o próprio Tribunal de Contas.

queremos aqui recordar que a proposta de constituição de uma CPI à privatização da ANA foi uma das primeiras iniciativas que o PCP tomou na presente legislatura. Uma proposta que foi rejeitada a 24 de Abril de 2024, com os votos contra do PS, PSD, CDS, CH, IL. Uma rejeição que mais do que esconder as responsabilidades passadas por mais este crime, visou manter as condições para que ele prossiga e para continuarem a privatizar, a liberalizar, a expropriar o povo português do que é seu. 

Foi nessa altura que este Livro passou a ser um projecto concreto. Para tornar clara a dimensão do roubo, desmontar as manobras de distorção da realidade e as narrativas falsificadoras. Para ser uma importante arma no combate em defesa do sector público empresarial e na luta por um Portugal com futuro, livre, soberano e independente.

Porque, e essa é a segunda grande razão deste livro, é preciso construir, na crítica às opções que têm sido impostas a Portugal, a alternativa patriótica e de esquerda que Portugal necessita e merece. Há opções que não devem ser repetidas e há opções que têm que ser revertidas. A recuperação do controlo público dos aeroportos nacionais é um objectivo do qual o País não pode prescindir, sob pena de ficar condenado ao papel de alimentar os lucros deste tipo de multinacionais. 

Camaradas e amigos

Queria aqui sublinhar que tendo sido concretizada durante o período do Pacto de Agressão das troikas, pelo Governo PSD/CDS, a privatização da ANA estava prevista desde 1998, tendo sido inscrito esse objectivo por um Governo do PS, partido que não só convive bem, como tem sido  um dos padrinhos da política de privatizações. 

A empresa pública ANA Aeroportos foi vendida em 2013. A forma utilizada para a vender foi um processo em duas fases: primeiro foi assinado com a ANA enquanto empresa pública um contrato de concessão por 50 anos da rede Aeroportuária nacional por 1200 milhões de euros, e depois foi a própria empresa vendida por 1127 milhões de euros com o valor criado pela concessão.

Este processo mereceu ampla oposição na altura. Daqueles que se opõem à privatização dos ativos estratégicos nacionais, mas também de muitos que não tendo essa posição de princípio não aceitavam a privatização da ANA em concreto. Na altura da privatização da ANA só um outro país da União Europeia – o Chipre – tinha a sua infraestrutura aeroportuária privatizada, apesar da imposição de venda partir da própria Comissão Europeia (uma das componentes da troika que assinou o Memorando de Entendimento com PS, PSD e CDS). 

Como acontece com a generalidade destes processos, os contornos concretos da privatização foram completamente escondidos do povo português e da própria Assembleia da República. De tal forma que o Governo da altura se permitiu afirmar publicamente que tinha vendido a empresa por um valor (3,08 mil milhões de euros) muito superior ao valor efetivo de venda (1,127 mil milhões de euros). 

Entretanto, factos da maior relevância vieram alertar o povo português para o verdadeiro impacto desta privatização, e fazer despertar as maiores suspeitas sobre a forma e os objetivos deste processo.

O primeiro facto foi o papel da ANA privatizada na oposição sistemática a qualquer tentativa de construção do Novo Aeroporto de Lisboa – NAL. Na altura da privatização, o país foi convencido que o NAL seria construído pela ANA mesmo depois de privatizada (alguns até juraram que seria graças à privatização). A realidade dos últimos 12 anos é que a multinacional Vinci demonstrou que não quer, de forma nenhuma, sair do Aeroporto Internacional Humberto Delgado, que considera altamente lucrativo para si. Ora, conforme referimos neste livro, retirar o Aeroporto de dentro da Cidade de Lisboa é um objetivo que está assumido pelo Estado português desde 1971. A multinacional Vinci, agora detentora da ANA, tem agido sistematicamente para travar esse objetivo, e tem usado para esse fim os imensos recursos públicos de que se apropriou com a privatização.

Conforme demonstramos no livro, a publicação do Relatório do Tribunal de Contas – concretizado mais de 10 anos depois da privatização e seis anos depois de ter sido solicitado-  veio confirmar a dimensão do assalto da Vinci aos recursos nacionais. 

O TdC demonstrou que a venda se realizou por 1127,1 milhões, quando o anúncio público foi de 3,08 mil milhões. E o Tribunal de Contas ainda denuncia que foram oferecidos à Vinci os dividendos de 2012 no valor de 71,4 milhões de euros, quando em 2012 a empresa era pública. 

O relatório do TdC tornou também claro que, durante o processo de privatização, o Governo alterou as condições e o valor do ANA, ao introduzir um conjunto de alterações nos contratos e na lei. O Relatório evidenciou o desastroso negócio realizado, demonstrando que o conjunto de dividendos que a multinacional retirará ao longo da concessão será superior a vinte mil milhões de euros, e que a divisão de receitas entre a multinacional e o Estado, será, na melhor das hipóteses de 79% para a multinacional e 21% para o Estado, um valor absolutamente fora do vulgar, para mais tratando-se de um conjunto de infraestruturas já construídas. 

Nesse relatório ficou também clara a promiscuidade entre a gestão da administração pública e privada, tanto na fase de privatização como na fase de gestão privada. A primeira situação apontada pelo Tribunal de Contas é a nomeação da última Administração da ANA já depois de iniciado o processo de privatização. Um mês depois de nomeada essa nova administração, a multinacional Vinci publicamente informa que irá contratar essa mesma administração para assumir a gestão privada da empresa, o que viria a ser concretizado, um ano depois, com a manutenção de todos os gestores «públicos» na gestão privada. Uma decisão que ajuda certamente a compreender a mudança de posição da ANA sobre a proposta global da Vinci, que passou numa primeira apreciação de «irrealista e irrealizável» para uma segunda opinião que assegurou ser a proposta « mais forte e a mais competitiva».

Entretanto, e como demonstramos no livro, o País foi confrontado com a própria gestão privada da ANA. Uma gestão marcada pela queda brutal do investimento com a privatização (menos de metade do investimento realizado nos 10 primeiros anos de gestão privada face aos 10 últimos anos de gestão pública). Recorde-se que, ao longo de décadas de gestão pública, para além dos muitos  milhões de euros de lucros entregues ao Estado, todos os investimentos realizados nos aeroportos nacionais, foram pagos com as receitas da ANA pública. Foi assim em Lisboa, no Porto, em Faro, nas regiões autónomas, e seria assim também com o novo aeroporto de Lisboa se não tivesse sido feita a privatização. Ora nestes doze anos, o País não só ficou sem as receitas aeroportuárias como continua sem ter o novo aeroporto prometido.

Mas não é apenas a degradação do investimento, é também a profunda degradação do Aeroporto de Lisboa - que a privatização transformou, em 10 anos, num dos piores da Europa - tal como dos restantes aeroportos que se assemelham hoje mais a uma espécie de centro comercial do que a um terminal de transportes. 

Um outro aspecto prende-se com a dimensão do aumento global de taxas praticadas com a privatização, e dos impactos desses aumentos na actividade económica em Portugal, incluindo na própria TAP que é, recorde-se, o principal cliente da ANA. E não menos importante, a situação dos trabalhadores da ANA, a crescente precariedade, e recurso à subcontratação, a degradação salarial e de direitos, e o impacto destas políticas, quer na vida dos trabalhadores, quer na resposta operacional da empresa.

Tudo isto confere a todo este processo, como aliás se verificou em relação a outras privatizações, a dimensão de crime económico contra os interesses nacionais que não pode ficar impune.

Camaradas e amigos

Conforme sublinhamos ao longo do livro, esta iniciativa do PCP, não tem apenas como objectivo fazer a denúncia sobre o que aconteceu lá atrás. Este livro visa também alertar para o que aí vem, sobretudo se se prosseguir com uma política de submissão do País aos interesses das multinacionais.

A luta e a intervenção do PCP, mas também de diversas estruturas, entidades, personalidades e das próprias populações, não permitiram, nem à Vinci, nem aos Governos do PS e do PSD, continuarem a fugir à necessidade da construção do Novo Aeroporto de Lisboa, nos terrenos do Campo de Tiro de Alcochete. O relatório da Comissão Técnica Independente, que confirmou aquilo que já tinha sido decidido antes da privatização da ANA, deixou claro isso mesmo. Mas aquilo que está em curso, e que foi confirmado recentemente pelo Governo, é a possibilidade de estender ainda mais o contrato de concessão, prolongar por mais umas décadas a exploração do aeroporto da portela, aumentar ainda mais as taxas aeroportuárias, sacar ainda mais recursos ao erário público, em nome de um aeroporto que há muito deveria estar concluído. Esta mesma denúncia, feita pelo PCP apesar do silenciamento a que foi sujeita, terá de continuar. 

Tal como precisamos de denunciar também o prosseguimento de outras privatizações. Como a da TAP, empresa estratégica para o país. Empresa que está hoje capitalizada e a dar lucros. Empresa que é o maior exportador de serviços no plano nacional, da qual dependem directa e indirectamente mais de 10 mil trabalhadores e centenas de empresas nacionais, que paga centenas de milhões de euros à segurança social e ao fisco e que o Governo quer privatizar.  E é também o caso das travessias sobre o Tejo, que estão actualmente concessionadas à Lusoponte até 2030, da qual a Vinci é também accionista, e que o Governo quer embrulhar em mais uma negociata que garanta à Vinci e à Mota Engil, mais umas décadas de rendas garantidas à custa da extorsão que é feita a todos os que diariamente se deslocam entre as duas margens do Tejo. 

Se a privatização da ANA constituiu um assalto aos aeroportos, as privatizações têm constituído um assalto ao País. 

Um assalto que precisa de ser interrompido, para dar lugar a uma outra política que coloque as empresas e sectores estratégicos ao serviço do nosso Povo. 

Uma outra política que defenda de facto os interesses nacionais, pelo que a luta contra as privatizações é hoje também, e sobretudo, uma luta em defesa da soberania nacional. 

O livro que hoje apresentamos é por isto tudo, um contributo à luta no plano ideológico que exprime sempre, um confronto de classe mais vasto que se trava em Portugal e no mundo. 

Um contributo que sem desvalorizar a denúncia, não prescinde em nenhum momento de afirmar um caminho alternativo à gestão e desenvolvimento dos aeroportos e do sector aéreo em Portugal. Um caminho que, tal como afirmamos no livro, passar pela recuperação do controlo público dos aeroportos e da ANA, pela construção faseada do Novo Aeroporto de Lisboa no Campo de Tiro de Alcochete e a saída da Portela, pelo desenvolvimento de toda a rede aeroportuária nacional, pela construção da terceira travessia sobre o Tejo em modo rodo-ferroviário, pelo desenvolvimento da Alta Velocidade Ferroviária, articulando todas e cada uma destas infra-estruturas com a dinamização do aparelho produtivo e a valorização dos direitos dos trabalhadores.  

Um caminho cuja concretização precisa de mais iniciativas como esta que o PCP realizou esta tarde.

Muito obrigado!

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