As crises põem muitas vezes a nú conceitos e modelos que nos eram apresentados como exemplos e verdades intangíveis.
A actual crise, dita financeira, veio também mostrar com mais nitidez um conjunto de mitos entre os quais os do «Consenso de Washington» elevados à categoria de «ciência económica».
Muitos dos conceitos que têm sido impingidos nas universidades e à opinião pública são pura ideologia. E a ideologia dominante é a da classe dominante.
Sem qualquer preocupação de ordem e arrumação, atente-se nos diversos modelos económicos de países que já nos foram apresentados como exemplos.
Numa certa época foram os tigres asiáticos e volta meia volta lá vinha um sapiente a propor que Portugal se tornasse na Singapura da Europa!
Mais recentemente foi o caso da Irlanda. Diversos políticos visitaram este país, tiveram conversações com dirigentes e depois apresentaram os receituários à Pátria lusa. Lembram-se de Paulo Portas?
Pois bem, a Irlanda foi o primeiro país europeu em entrar em recessão, o que nos mostra que só por si, a formação profissional e o aumento das qualificações de um povo – questão de enorme importância não se nega – só por si não são suficientes.
A Irlanda serviu de placa giratória ao investimento estrangeiro, americano e inglês, que foi o mais atingido pela crise, o que põe em evidência a importância decisiva de um forte e dinâmico sector empresarial do estado. O caso português nesta crise, mostrou também a importância de uma Caixa Geral de Depósitos nas mãos do Estado, como factor estabilizador do sector financeiro e a importância que teria no seu combate uma posição decisiva do Estado em empresas estratégicas, como a Galp ou a EDP.
Entre diversos conceitos tidos como essenciais e verdades intangíveis e que se revelaram como dogmas ideológicos – o Estado mínimo, o mercado como supremo regulador, o privado como o mais eficiente, figura também a “estabilidade de preços” e um “défice orçamental tendencialmente nulo ou superhabitário”, como condições prévias ao desenvolvimento económico.
A absolutização da estabilidade de preços surge como resposta dos neoliberais, ao keinesianismo no período da «estagno-inflação» e é elevado à condição prévia do desenvolvimento económico, sem qualquer demonstração científica. Visa sobretudo criar uma certa estabilidade social, isto é, a aceitação da chamada «moderação salarial», que se traduz por baixos aumentos nominais dos salários e até pela diminuição de salários reais como o caso português o evidencia.
Com uma taxa de inflação baixa é também mais fácil conter a contestação social difundindo-se a ilusão de que não há erosão de poder de compra.
Os salários são «comidos» pela subida de preços mas lentamente, para não se dar conta de imediato e assim se poder conter melhor as tensões sociais.
Também a absolutização do défice tendencialmente nulo ou superhabitário tem objectivos muito para além da estabilidade de preços e da estabilidade da moeda. Na verdade o Estado para reduzir os défices orçamentais tem o pretexto para recorrer às privatizações e à desresponsabilização das suas funções sociais em que se insere a tese do Estado mínimo e a da maior eficácia dos privados.
Isto não quer dizer que pela nossa parte entendemos que é negligenciável qualquer valor do défice do orçamental ou da taxa de inflação.
O que consideramos é que quer um quer outro devem ter limites máximos aceitáveis e que sobretudo devem estar subordinados a um objectivo central: o crescimento económico e a elevação do nível e qualidade de vida do povo.
No caso do BCE a sua aparente teimosia na manutenção de uma taxa de referência elevada, quando já era evidente que tal política estava a travar o crescimento económico, dificultando a recuperação e as exportações, mesmo as menos sensíveis ao preço como são as da Alemanha, visava sobretudo a valorização, a credibilização e a atracção do euro. O grande objectivo estratégico do BCE e da fracção mais concentrada do capital financeiro europeu é a de que o euro ganhe o estatuto de moeda de reserva, de «petro-euro» de modo a pelo menos partilhar os privilégios do dólar.
É neste sentido que se deve entender as declarações do sr. Trichet, de que se tinha de regressar aos bons princípios de Bretton Woods, cobertura ouro, ou a iniciativa de Sarkozi, para a «refundação do capitalismo».
Por agora avançam com propostas para aumentar a regulação – o que dentro do limite, não terá grande desacordo, mas o seu objectivo é a criação de uma futura moeda internacional que substitua o dólar. No entanto, a política do BCE levou à contracção da economia europeia e agora à necessidade evidente de diminuição da taxa de juro de referência... Tal perspectiva tem levado nos últimos meses à valorização do dólar em relação ao euro, tornando mais difícil a concretização estratégica da criação de uma nova moeda e de um novo sistema monetário internacional.
Como é evidente este objectivo conta com a oposição dos EUA e com a sua força militar! As tensões tenderão a aumentar à medida que a União Europeia pressione nesse sentido. Em relação a esta questão a China tem também uma palavra a decisiva. Os EUA contam ainda com a Arábia Saudita, convidada de Bush para a Cimeira de 15 de Novembro e que não fazia parte da lista de Sarkozy.
Para francês ver, Sarkozi tem clamado contra os «paraísos fiscais». Mas o mais certo é tudo do que é essencial fique na mesma.
Isto não significa que estejamos contra as medidas que introduzam maior regulação. O que não desconhecemos é o seu limite designadamente com a liberdade de circulação de capitais e com os off-shores. Aliás na última crise foram tomadas medidas consideradas na altura suficientes para evitar novas bolhas especulativas e engenharias contabilísticas.
As respostas à crise – têm sido as clássicas intervenções do Estado – numa das maiores operações keinesianas a nível mundial no quadro do clássico princípio: nacionalizar prejuízos para depois privatizar os lucros. As sucessivas injecções dos Bancos Centrais e as emissões de dívida pública mostram com clareza que as «vacas sagradas»da estabilidade de preços e da dita não intervenção do Estado são secundarizadas em relação ao objectivo de salvar a oligarquia financeira. A factura será naturalmente endossada aos contribuintes, no essencial aos assalariados.
Portugal não foge à regra em relação às medidas tomadas. É no entanto de sublinhar que propostas que há muito o PCP reivindicava – diminuição das taxas de juro do BCE, suspensão do Pacto de Estabilidade, reforço do investimento público, a dura realidade acabou por impô-las.
Insistimos na necessidade de se apoiar o parelho produtivo nacional; de desagravar as tensões de tesouraria das empresas e desafogar os orçamentos familiares, não só das mais desfavorecidas mas também das camadas médias.
No plano ideológico é interessante verificar a mudança de discurso de Sócrates. Parafraseando um título relativo a Wall Street poderíamos centrar uma intervenção exclusivamente sobre o tema: “Quando Sócrates se tornou socialista”! Na verdade nas últimas intervenções temo-lo visto a condenar a roleta da Bolsa, o neoliberalismo, a defender o investimento público e a intervenção do Estado, chegando a zurzir nos que no passado, defenderam a privatização da Caixa Geral de Depósitos...
Uma tese conhecida e ciclicamente repetida quando as situações mais apertam é a de que vivemos acima das nossas possibilidades, procurando incutir a passividade e a resignação. Aos defensores de tal tese nunca lhes ocorreu que a maioria dos portugueses vivem sim abaixo das suas necessidades e o país abaixo das suas potencialidades e possibilidades.
Mesmo em relação às tão repetidas questões de competitividade é necessário lembrar que na adesão ao euro, enquanto a Espanha desvalorizou a peseta em 30%, Portugal desvalorizou o escudo em apenas 12%. O comissário Almúnia, num interessante Relatório, comemorando os 10 anos do euro, considera esta uma das principais razões das nossas dificuldades. E como é evidente os trabalhadores e o povo não são responsáveis por aquela decisão política que nos afecta e muito na nossa competitividade externa. Agora, perante as dificuldades crescentes decorrentes da valorização do euro, procura-se com os mais diversos argumentos a desvalorização dos salários.
Há um ano contra a corrente e mesmo contra aqueles que admitindo a crise a viam apenas como uma mera crise cíclica. Dissemos num encontro como o de hoje, que a crise estava para durar, que não estávamos perante uma crise como as anteriores, mas perante uma crise sistémica, muito mais longa e profunda e que atingia o coração do imperialismo e o seu sistema financeiro. Um ano após creio que os factos nos deram razão!
Afirmámos também que a crise teve o seu epicentro no subprime