Intervenção de

Lei de Bases do Sistema Educativo<br />Intervenção da Deputada Luísa Mesquita

Senhor Presidente, Senhoras Deputadas, Senhores Deputados, Senhores Membros do GovernoEstamos hoje a discutir alterações relevantes ao mais importante instrumento legislativo em matéria educativa.Naturalmente que uma substância tão importante como esta deveria ter sido objecto de uma abordagem metodológica exemplar.Abordagem que, necessariamente, deveria ter integrado, antes de qualquer discussão e votação em sede de Assembleia da República, uma ampla e participada discussão pública, sem nenhuma limitação, nem condicionalismos temporais desajustadosUma ampla e participada discussão pública que deveria ter sido assumida e coordenada pelo Parlamento, aproveitando a excelente experiência, quando da discussão em todo o país e com todos os interlocutores interessados, da actual lei de Bases do Sistema Educativo que, por isso mesmo, recolheu um dos mais amplos consensos, em sede última da Assembleia da República.De facto, havendo total disponibilidade na Comissão de Educação Ciência e Cultura para assumir, com empenho, este trabalho, foi, com preocupação que verificamos a vontade da maioria, para de forma inesperada, impedir, logo de início, esta ampla e participada avaliação dos portugueses, em particular dos intervenientes aos mais diversos níveis do sistema educativo, relativamente à totalidade dos textos apresentados.Independentemente da legitimidade da Assembleia da República para dentro das quatro paredes desta casa proceder ao agendamento e discussão desta matéria, não deixa de ser incompreensível que conteúdos tão relevantes tenham tal tratamento.É agora desejável, depois desta primeira apreciação, que o país possa conhecer todas as propostas, sem excepção, que poderão constituir uma mais valia na construção do texto final e na procura do mais amplo consenso parlamentar.Até porque a actual Lei de Bases do Sistema Educativo não tem constituído nenhum obstáculo às opções do governo em política educativa.Têm sido inúmeras e diversas as matérias alvo de profundas alterações, em todos os níveis do sistema.O governo do PSD e do CDS tem pautado a sua intervenção, como se à sua chegada à 5 de Outubro em Abril de 2002, não tivesse por lá passado e permanecido quase 20 anos, e, portanto, não tivesse enormes responsabilidades nos resultados educativos da população portuguesa que hoje nos prendem aos últimos lugares da lista dos nossos parceiros europeus.Mas o governo também tem pautado a sua intervenção como se os graves problemas da qualificação dos portugueses dependessem da produção maciça de legislação, e o sistema tivesse vivido até hoje sem leis e sem responsáveis.Um outro elemento que, na nossa opinião, justifica a metodologia que defendemos, reside no facto da proposta de lei do governo sugerir profundas transformações à estrutura do sistema educativo, sem avaliação, que se conheça, de adequação e capacidade de resposta do diploma legal e ainda em vigor.É a exposição de motivos que o declara, ao afirmar que estamos “perante uma nova Lei, (…) perante um novo texto global, com uma nova sistemática (…) e com inovações do maior significado nos princípios, nos objectivos, na organização e no funcionamento do sistema educativo português”.Consideramos que a actual lei beneficiaria de uma apreciação global que viabilizasse os necessários ajustamentos e permitisse verificar o muito que ficou por cumprir e regulamentar ao longo destes dezassete anos de vigência.E que os níveis de qualificação e desenvolvimento do país não decorrem da melhor ou pior adequação da actual lei de Bases do Sistema Educativo às necessidades e legítimas expectativas dos portugueses e das portuguesas, mas resultam das políticas educativas e das acções que os diferentes governos puseram em curso.Os direitos constitucionais no que à educação, cultura e ciência diz respeito estão longe de ser cumpridos.Os deveres do Estado na promoção da democratização da educação, da cultura, da ciência e da investigação têm sido e são hoje, particularmente, alvo de atentados neo-liberais e de políticas economicistas que põem em causa esses deveres.Hoje, mais que nunca, numa sociedade sustentada pela presentificação sistemática de saberes que incentivam, ininterruptamente o conhecimento, o direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolares é uma questão de direitos humanos.E por isso se exige ao estado, na realização da política de ensino a universalidade, a obrigatoriedade e a gratuitidade de uma cada vez mais lata escolaridade, porque só assim será possível garantir a educação permanente e eliminar o analfabetismo.E é por isso também que ao estado cabe criar uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que responda às necessidades de toda a população, independentemente da garantia do direito de criação de escolas particulares e cooperativas que o estado reconhece mas tem o dever de fiscalizar.E são estes, em síntese, os pressupostos que sustentam a apresentação, pelo PCP, de um projecto de lei que define as bases do sistema educativo, e do qual relevamos doze aspectos:1 – O direito constitucional à educação é assegurado por um ensino público, gratuito e de qualidade, para todos. É reconhecida a especificidade do ensino particular e cooperativo e da sua possibilidade de contratualização pelo Estado.A iniciativa privada mantém o direito de se constituir como alternativa para os cidadãos que a ela, de livre vontade, queiram aderir, não podendo, no entanto, ser potenciada pelo constrangimento da rede pública.Esta complementariedade não dispensa, antes pressupõe, que o Estado se assuma como protagonista insubstituível da expansão da rede pública e da melhoria das condições de acesso e sucesso escolares.2 – O alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos, medida que tem agora a concordância das restantes forças políticas e que nos apraz registar. A importância desta decisão não pode fazer esquecer a necessidade de efectivar todas as acções indispensáveis ao cumprimento da actual escolaridade obrigatória de 9 anos.Os níveis de abandono precoce e de insucesso são ainda muito preocupantes.3 – A existência de uma estrutura organizativa por ciclos que:

• reconhece a educação pré-escolar como a primeira etapa da educação básica, articulada com a rede de creches e também com o 1º ciclo do ensino básico. • defende um ensino básico de 9 anos, com um 1º ciclo de 4 anos, assegurado por um trabalho em equipa educativa; um 2º ciclo de 2 anos, assegurado por professores por áreas disciplinares e ainda um 3º ciclo, de 3 anos, de consolidação de saberes e competências, através de um plano curricular unificado que integre componentes de formação técnica e artística, assegurado por um regime de professor por disciplina ou grupo de disciplinas. • propõe um ensino secundário de um só ciclo de 3 anos, organizado de formas diferenciadas, contemplando a oferta de cursos tecnológicos, profissionais ou orientados para o prosseguimento de estudos e assegurado em regime de um professor por disciplina. • e ainda um ensino superior que procure a comparabilidade europeia com 3 ciclos (licenciatura, mestrado e doutoramento), admitindo durações variáveis e salvaguardando a soberania do nosso sistema educativo.

O nosso projecto garante também a mobilidade e a permeabilidade permanentes entre diferentes cursos, desde o terminus do ensino básico.4 – A constituição de um sistema único, no ensino superior, que integre as actuais universidades e politécnicos, sem prejuízo da diferenciação de soluções organizativas, de conteúdos científicos, de modelos pedagógicos e de modalidades de formação.Propomos ainda que as instituições de ensino superior se possam articular em redes, quer temáticas, quer territoriais.5 – A eliminação progressiva do numerus clausus, enquanto obstáculo às legítimas expectativas dos jovens candidatos e às necessidades do país em quadros qualificados.Só assim é possível garantir, por exemplo, que os portugueses não terão necessidade de recorrer ao sector privado da saúde, na Galiza, e que os nossos jovens não necessitarão de se matricular nas faculdades espanholas para responder às necessidades do país que não os quer formar.6 – O nosso projecto garante a gratuitidade do ensino até final da licenciatura, no respeito pelo preceito Constitucional.Propondo ainda que a frequência do curso de formação avançada (mestrado e doutoramento) na rede pública, seja comparticipada pelo Estado.Para além da conformidade com a Constituição, estas medidas justificam-se, quer pelas baixíssimas taxas de diplomação da população portuguesa, quer pelo contributo que poderão dar à democratização do ensino, num quadro de origens sociais muito diversas e das evidentes e diferentes condições de frequência que daí resultam, para além ainda dos encargos que as famílias e os estudantes assumem, mesmo quando o ensino é gratuito.7 – Propomos também que o Estado assegure condições de organização, de equipamentos e financeiras que garantam a concretização de áreas cruciais à efectiva igualdade de oportunidades, referimo-nos, nomeadamente:

• Ao ensino especial; • Ao ensino recorrente; • Ao ensino português no estrangeiro; • À educação física e ao desporto escolar; • À educação sexual e à saúde escolar; • À educação inter-cultural; • Aos serviços de psicologia; • Aos trabalhadores-estudantes.

8 - O nosso projecto garante também sistemas de formação profissional e de educação ao longo da vida, com reconhecimento, validação e certificação das competências adquiridas.9 – Relativamente aos recursos humanos a nossa iniciativa assegura a qualificação profissional e a formação contínua de todos os educadores, professores e outros profissionais da educação.10 – A direcção e a gestão das escolas ou agrupamentos orientam-se por princípios de elegibilidade e colegialidade dos órgãos e de participação de todos os directamente implicados no processo educativo, prevalecendo nesse exercício, sempre, critérios de natureza pedagógica e científica.Relativamente aos estabelecimentos de ensino superior é assegurada a autonomia, sem prejuízo da acção fiscalizadora do Estado.11 – A educação deverá continuar a ser considerada como uma prioridade nacional.E o financiamento deve ser assegurado a todas as escolas públicas, através de um orçamento próprio, adequado às suas missões e ao seu funcionamento com qualidade, impedindo os recorrentes sub-financiamentos impostos pelos diferentes governos.12 – Propomos que o sistema educativo seja objecto de uma avaliação continuada, sistemática e abrangente que deverá ser realizada por um Observatório criado para o efeito, garantindo quer a participação dos diferentes implicados no processo educativo, quer especialistas nesta área.Relativamente à proposta de lei do governo, parte, na nossa opinião de dois pressupostos que merecem a nossa discordância.Considera-se que o processo de democratização é um dado adquirido para justificar que, agora, a intervenção é ao nível da qualidade.Não serão necessárias grandes pesquisas para pôr em causa esta avaliação.É suficiente ler os elevados números relativos ao abandono precoce do sistema e as assustadoras taxas de insucesso escolar nos diferentes níveis de ensino.Um segundo fio condutor que articula toda a proposta, decorre do primeiro.Concluído o processo de democratização, na perspectiva do governo, o Estado desresponsabiliza-se dos seus deveres constitucionais no que à educação diz respeito e operacionaliza uma rede nacional única, onde integra o ensino público e o ensino privado, com iguais direitos e deveres.Propõe-se assim a destruição do edifício democrático que a actual Lei de Bases consagra, no respeito pela Constituição.Estes dados sustentam toda a arquitectura da proposta governamental.Se lhe anexarmos, pelo menos até 2006, as inúmeras medidas de contenção financeira previstas no Programa de Estabilidade e Crescimento para todo o sistema educativo, entender-se-ão melhor, quais os verdadeiros objectivos do governo.E entender-se-á também que muitas das medidas propostas não terão condições para se concretizarem, e, simultaneamente, importantes áreas educativas serão alvo de políticas restritivas, pondo em causa o direito à educação, através de um ensino público, gratuito, de qualidade e para todos.Vejamos alguns exemplos.A educação pré-escolar, deixa de ser considerada como 1ª etapa da educação básica, o estado descompromete-se na criação de uma rede pública capaz de responder às necessidades da população e por isso não se garante a gratuitidade da sua frequência.Propõe-se o alargamento da escolaridade obrigatória, mas não se enunciam nenhumas medidas conducentes à efectiva concretização da actual escolaridade de 9 anos que não é cumprida.As propostas relativas ao ensino superior agudizam a distância entre as Universidades e o Politécnico.Teima-se, sem nenhuma sustentação, que as instituições de ensino superior politécnico não podem formar os seus docentes e não têm direito à investigação.Teimosia que só poderá ter uma consequência – um ensino de 1ª e outro de 2ª qualidade.O numerus clausus mantém-se como medida administrativa intolerável, perante o cenário de diplomação da população e a falta de quadros qualificados.O governo afirma mesmo que o numerus clausus pode ser determinado por directivas comunitárias ou compromissos internacionais. Naturalmente o governo está disponível para aceitar quotas no ensino superior em nome da mercantilização dos saberes e da Organização Mundial do Comércio.Depois da agricultura e da pesca, o governo prepara-se para a subserviência em política educativa.A educação especial, como modalidade fundamental à integração sócio-educativa de todas as crianças, jovens e adultos com necessidades educativas especiais, por serem portadores de deficiência, ou quando essas necessidades tenham origem em disfunções do comportamento ou em problemas de natureza sócio-cultural ou étnica é literalmente reduzida a dois adjectivos que põem em causa a declaração de Salamanca, assinada por Portugal.O governo só responderá quando as necessidades forem “prolongadas” e “acentuadas”.Não sendo, poderá ter assegurado a modalidade especial do insucesso escolar.Finalmente, a proposta do Governo abre a porta ao fim da gestão democrática das escolas.Já não há dúvidas. O governo impôs, de forma prepotente e ilegal, às escolas, aos pais e encarregados de educação, aos municípios e aos alunos, nos últimos dias, um conjunto de medidas anti-democráticas que pretende concretizar até Setembro, ao arrepio de toda a legislação em vigor.Senhor Presidente, Senhoras Deputadas, Senhores Deputados, Senhores Membros do Governo,Por tudo o que dissemos, só podemos desejar que dentro e fora desta casa se processe um ampla e alargada reflexão, em torno do Sistema Educativo Nacional e dos diversos contributos apresentados e que o parlamento construa um diploma capaz de responder às necessidades de Portugal e dos Portugueses

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