Os textos reunidos no presente tomo são provenientes do período que vai de Janeiro de 1976 até às vésperas do VIII Congresso do PCP que se realizou de 11 a 14 de Novembro do mesmo ano.
Uma primeira parte é constituída por textos integrais de discursos e entrevistas ordenados cronologicamente, enquanto numa segunda parte é posta à disposição dos leitores uma ampla selecção de excertos, ordenados tematicamente por Álvaro Cunhal, de respostas dadas quase exclusivamente em sessões de esclarecimento durante a campanha para a Presidência da República em 1976. Através desses excertos, num directo exercício de pedagogia política, Álvaro Cunhal, respondendo às perguntas dos participantes, reflecte não apenas sobre a conjuntura política e a problemática económica e social que então o País vivia e que condicionavam as eleições presidenciais, mas também sobre temas como as particularidades do processo revolucionário português, quer quanto às transformações económicas e sociais quer quanto à estruturação e dinâmica do poder político; ou as questões relativas à prossecução da política de unidade do PCP, à sua história, identidade, organização e formas de intervenção na vida política.
Não podia evidentemente estar ausente deste tomo uma apreciação sobre a política seguida pelos diversos intervenientes no desenrolar da crise político-militar no verão de 1975 que conduziram à alteração da correlação de forças no processo revolucionário com o golpe de direita de 25 de Novembro. Relembrando o acerto das orientações e da acção do PCP, Álvaro precisa: «Se se chegou à divisão e ao confronto que se veio a verificar em prejuízo das forças revolucionárias, é porque além da colagem à direita de certos sectores do MFA havia muitos aventureiros, muitos irresponsáveis, que julgam que uma revolução se faz com palavras acerca do socialismo e da luta de classes. Uma Revolução faz-se com uma intervenção eficiente de forma a facilitar o progresso do movimento revolucionário e a impedir a derrota das forças progressistas.» E prossegue Álvaro Cunhal: «Se o nosso Partido tivesse embarcado nessa linguagem e tipo de actuação, teríamos acompanhado a derrota da esquerda militar no 25 de Novembro.» Realça então uma distinção fundamental que deviam também ter em conta certos historiadores ultra-revolucionários (no papel): «Os pequenos grupos provocatórios podem tomar qualquer posição — isso não tem efeitos políticos. Mas é coisa muito diversa se um grupo cria em palavras um conflito com as Forças Armadas ou se é o Partido Comunista. Já nessa altura evitámos cair nessa armadilha, que tanto a direita como os esquerdistas nos procuraram armar ». E que, acrescente-se, continuariam a tentar fazer.
A alteração da correlação de forças introduzida pelo golpe de direita do 25 de Novembro de 1975 teve como consequência imediata uma viragem na política prosseguida pelo VI Governo Provisório (em cuja participação o PCP sempre declarou que em nada diminuiria ou limitaria a sua acção revolucionária), viragem que assumiu claramente um carácter antioperário e antipopular, uma política de direita, portanto, visando a recuperação capitalista e a destruição das conquistas da revolução e pondo em perigo o regime democrático que a Constituição da República Portuguesa, promulgada em 2 de Abril de 1976, consagrou. Foi assim que, ainda no rescaldo das operações político-militares do 25 de Novembro, logo o remodelado (à direita) Conselho da Revolução decretava o congelamento dos salários até ao final de Dezembro de 1975, prazo que o «Ministério das Corporações» (nome com o qual os trabalhadores baptizaram o Ministério do Trabalho) se encarregaria de fazer prolongar por mais dois meses. E entretanto permitia-se uma galopante subida dos preços que anulava e agravava em sentido contrário a relação salários/preços favorável aos trabalhadores verificada nos anos de 1974-1975. As dificuldades económicas que o País atravessava eram desligadas da crise económica do capitalismo, da sabotagem dos monopolistas e da praticada pelos países capitalistas, entre outros factores. O fogo do Governo, de concerto com o patronato lançado à recuperação das posições perdidas, concentrava-se nos ataques aos trabalhadores, particularmente naquilo que eram considerados excessos reivindicativos, responsabilizados por fazer com que os trabalhadores vivessem acima das possibilidades da economia. Ainda não há muito voltamos a ouvir essas patranhas.
Junte-se a este quadro, muito genericamente evocado, o prosseguimento e o mesmo o recrudescimento das acções e atentados terroristas levados a cabo de forma praticamente impune pelas forças reaccionárias contra instalações e militantes do PCP e de outros partidos e organizações de esquerda, e compreenderemos as difíceis condições em que o PCP teve que disputar as campanhas eleitorais, primeiro para a Assembleia da República e depois para a Presidência da República.
Quanto às primeiras lembra Álvaro Cunhal que os objectivos colocados pelo PCP de, «por um lado, evitar uma maioria da direita reaccionária CDS e PPD e, por outro lado, criar condições para uma maioria de esquerda», foram alcançados: o CDS e o PPD ficaram em minoria; o PS e o PCP obtiveram uma folgada maioria de deputados. A haver um entendimento entre socialistas e comunistas «haveria possibilidades para a formação de um governo de esquerda assente nessa maioria». Mas como lembra Álvaro Cunhal, «até hoje o PS tem respondido negativamente e os dirigentes do PS, incluindo o seu secretário-geral, continuam os ataques ao PCP». Não obstante isso, afirma, «temos insistido na necessidade do acordo dos socialistas», pois caso contrário «o PS vai aliar-se à direita, vai aliar-se ao PPD e talvez ao CDS» e «seguirá uma política antioperária e antipopular». A história não demoraria muito a mostrar que assim seria.
Quanto à eleição para a Presidência da República, em que a direita procurava recuperar em Belém o que perdera em São Bento, a ela concorriam dois candidatos, ambos pertencentes ao Conselho da Revolução. Apoiar ou combater qualquer um deles não era, acentua Álvaro Cunhal, «uma intervenção favorável para facilitar a unificação daqueles que, nas Forças Armadas, procuram defender a democracia». Tornava-se, isso sim, necessário nessas circunstâncias «que na campanha aparecesse a voz independente do movimento operário, da classe operária, do movimento popular». E para isso não bastava um candidato antifascista, era preciso «um comunista, um dirigente do nosso Partido, que, com o apoio de todo o nosso Partido», levasse a cabo o esclarecimento requerido da situação política. Daí que o PCP tivesse avançado com a candidatura de Octávio Pato.
Em toda a actuação política do PCP sobressai um aspecto para o qual Álvaro Cunhal chama a atenção. Contra aqueles que, temendo a força do PCP alicerçada na sua profunda ligação às massas e na sua orientação revolucionária, o acusavam de «ortodoxo», «rígido», «estalinista», Álvaro Cunhal, dirigindo-se «aos portugueses que têm acompanhado, que têm vivido e têm participado no processo de democratização da vida nacional desde o 25 de Abril», sublinhava que, «no que respeita às soluções políticas, ao sistema de alianças e à busca de soluções que correspondam ao próprio processo» tão «complexo da Revolução portuguesa», o PCP tinha «tido uma extraordinária maleabilidade», não recorrendo «a receitas, a cópias» tomadas de «modelos estrangeiros».
Mas maleabilidade, advertia Álvaro Cunhal, «não desmente de nenhuma forma a fidelidade a princípios que consideramos essenciais».
Daí, por exemplo, a rejeição das pressões para que o PCP seguisse o modelo dos partidos ditos eurocomunistas, que seguisse a via da social-democratização do Partido. A este respeito Álvaro Cunhal declarava peremptoriamente: é «como Partido Comunista que somos» que «estamos muito interessados em nos unirmos aos socialistas e às outras forças democráticas».
E ser fiel aos princípios é ainda, acrescentava Álvaro Cunhal, ao contrário do que sucede com os partidos burgueses, «quando nos decidimos a seguir uma política determinada», poder o povo «confiar que aquilo que dizemos é aquilo que fazemos».
Mas voltemos à situação que então se vivia e de que o presente tomo nos dá conta.
A necessidade de conjurar o perigo real de um regresso ao fascismo e de salvaguardar as liberdades e as outras conquistas da revolução impunha desenvolver todos os esforços para «o entendimento e a unidade de acção das forças democráticas e progressistas», que o PCP, consciente da sua responsabilidade perante a classe operária, o povo e o País, não se cansará em todo este período de procurar alcançar, mal grado a recusa acintosamente proclamada e envolta no mais primário anticomunismo por parte dos dirigentes do PS.
Tal atitude reflectia evidentemente a submissão de Mário Soares e dos seus pares à exigência do imperialismo norte-americano e da social-democracia europeia, repetidamente então formulada, da não participação dos comunistas nos governos da Europa Ocidental, designadamente em Portugal.
Mas a acintosa rejeição pelo PS das propostas do PCP de entendimento e de procura de uma plataforma de cooperação entre comunistas e socialistas era também motivada por essas propostas estarem a encontrar cada vez mais eco entre os militantes do PS, em consequência do descontentamento gerado pela política de austeridade levada a cabo pelo VI Governo Provisório de hegemonia PS-PPD ao serviço da recuperação capitalista.
Por isso, Álvaro Cunhal comentava: «Parece que alguns dirigentes socialistas procuram agravar as relações com o PCP para impedirem este grande movimento de opinião unitária que se está a manifestar em sectores socialistas no sentido da unidade com os comunistas.» Era contrária a atitude do PCP que, como Álvaro Cunhal refere, «em todos os locais, em todas as condições», procurava contribuir para «o desenvolvimento do movimento de opinião de socialistas no sentido da aproximação e da cooperação com os comunistas».
Mostrando que a definição do seu sistema de alianças era uma «responsabilidade» a que o PS não se podia «furtar eternamente», tendo de escolher ou aliar-se «à direita, contra o voto e a esperança popular, ou à esquerda, com o PCP, correspondendo à vontade popular», o PCP insistia na renovação das suas propostas «para a transformação da maioria numérica existente na Assembleia numa efectiva maioria política». Mas, para que não houvesse ilusões, Álvaro Cunhal com toda a transparência e responsabilidade revolucionária reafirmava então: «Estamos prontos a dialogar, a discutir, a chegar a acordo com o PS, além do mais porque uma maioria PS-PCP é a única maioria democrática possível como resultado das eleições. Mas o PCP não é nem será uma muleta do PS ou de qualquer outro partido.»
Como é sabido, foi como governo minoritário que o PS apresentou o seu Programa de Governo na Assembleia da República em princípios de Agosto de 1976. O acolhimento que lhe dispensaram os partidos reaccionários PPD e CDS foram por si reveladores de que o PS não iria governar sozinho, mas em aliança de facto com aqueles partidos.
O diagnóstico feito no Programa de Governo das causas da crise indiciava já quais as «medidas para sair da crise» que apontaria, observava Álvaro Cunhal. Lembrando que tinham sido os comunistas «os primeiros a chamar a atenção para o excesso do consumo nacional em relação à produção», sublinhava que «a solução tem de encontrar-se em duas direcções claras e convergentes: aumento da produção e desenvolvimento económico; diminuição de consumos». A questão estava em qual a dinâmica para o aumento da produção e o desenvolvimento económico e quais consumos reduzir.
Quanto à primeira, para o PCP, a recuperação capitalista e o agravamento da exploração dos trabalhadores não podiam ser o caminho a seguir, «mas o da consolidação e prosseguimento das transformações estruturais realizadas com as nacionalizações, a Reforma Agrária e o controlo operário, ou seja, dentro da perspectiva do socialismo».
Quanto aos segundos, para o PCP, o agravamento das condições de vida dos trabalhadores e das camadas laboriosas da população não podia ser o caminho a seguir, «mas o da redução dos consumos sumptuários das camadas parasitárias e uma política de austeridade que comece por cortar consumos públicos e privados de secundária importância».
Outro problema de que o Programa do Governo enfermava era a falta de respostas concretas a questões fundamentais como, por exemplo, a redução dos défices.
O facto de se ter registado um défice na balança de pagamentos nos seis primeiros meses de 1976 quase igual ao de todo o ano anterior, levava Álvaro Cunhal a alertar para o «risco» de o Governo persistir no «erro» do recurso «ao crédito externo, aumentando ainda mais a já gigantesca dívida […], para pagar compras de artigos de consumo corrente, hipotecando o resto do ouro, aumentando os encargos em juros que levam cada ano milhões de contos para o estrangeiro e acentuam a dependência de Portugal». E acrescentava que ao «colocar-se na dependência do dinheiro vindo de fora, em vez de despertar e mobilizar os recursos e energias nacionais», o Governo revelava a sua incapacidade para solucionar os problemas económicos do País. Por isso reafirmava: «Se a situação económica e financeira representa um sério perigo para o País, é com uma política nacional, e não de demissão nacional, que se devem encontrar as energias necessárias para sair destas dificuldades.» Em vez da aceitação passiva ou fatalista da dependência do crédito e ajuda externa o que se impunha era «uma política externa fundada na firme determinação de defender e assegurar a independência política e económica de Portugal».
Ainda a respeito da política externa, Álvaro Cunhal novamente expressará, como vinha fazendo há mais de uma dezena de anos, a posição do PCP em relação Mercado Comum.
Concordando e considerando «mesmo indispensável a negociação de acordos com o Mercado Comum», diz Álvaro Cunhal, o PCP rejeitava «uma integração que acentuaria os laços de dependência e cortaria a perspectiva de desenvolvimento económico e de progresso social do nosso país». O aviso foi feito, mas não, infelizmente, tido em conta!
Igual destino teria outro aviso, daquele complementar, respeitante à «aceitação de instâncias supranacionais» que a projectada admissão ao Conselho da Europa implicava e que Álvaro Cunhal considerava como «particularmente perigosas para um país pequeno atravessando um período de sérias dificuldades económicas». O resultado todos o conhecemos, ou melhor: sofremos.
O Programa do Governo era também passível de críticas por omissões de que destacamos o caso da Reforma Agrária. O facto de se omitir a «importância do grande êxito da Reforma Agrária» definia, segundo Álvaro Cunhal, «um sentido da política». Na verdade, tudo indicava já, e a história dentro em breve o confirmaria, que era a destruição da Reforma Agrária que Mário Soares e o seu Governo visavam com o objectivo confesso de pôr fim à influência política dominante do PCP no Alentejo, substituindo um seu ministro da Agricultura e Pescas que mostrava tibieza em recorrer à violência para conseguir aquele objectivo — Lopes Cardoso — por outro sem escrúpulos de o fazer — António Barreto.
Incluindo o presente tomo o discurso que Álvaro Cunhal pronunciou na primeira Festa do Avante!, realizada em finais de Setembro de 1976 na FIL, não poderíamos deixar de lhe fazer uma breve referência.
Começando por salientar que «esta Festa do nosso glorioso Avante!, do nosso glorioso Partido, é a maior, a mais extraordinária, a mais entusiástica, a mais fraternal e humana, jamais realizada no nosso país», Álvaro Cunhal aponta como suas características essenciais ser «um testemunho vivo dos objectivos da luta do nosso Partido», ser «um testemunho vivo das profundas raízes do nosso Partido na classe operária, nas massas populares, na juventude», ser «um testemunho vivo da política de unidade do nosso Partido», ser «um testemunho vivo da unidade interna inabalável do nosso Partido», ser, por fim, «um testemunho vivo dos laços de solidariedade fraternal» que uniam o PCP «aos partidos comunistas irmãos dos países socialistas e dos países capitalistas, às forças progressistas de todo o mundo, aos movimentos revolucionários que dirigiram a luta de libertação nas antigas colónias portuguesas».
Para concluir, desejamos salientar que a vida mostrou a verdade das análises então feitas por Álvaro Cunhal, como aliás demonstrou no seu livro «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se)», do qual destacamos a seguinte afirmação: «No tempo da ditadura, da revolução e da contra-revolução, lutando com objectivos correspondentes a tão distintas situações, o PCP manteve sempre e mantém no horizonte o objectivo da construção de uma sociedade socialista em Portugal. […] A luta por este objectivo não contraria, antes dá mais claro sentido, à luta presente pela democracia e independência nacional.» (1)
(1) Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), Edições «Avante!», Lisboa, 1999, p. 323.