36 anos após a adesão de Portugal às Comunidades Europeias e 20 anos depois da entrada em circulação do Euro, pesem embora a propaganda das instâncias do sistema e o discurso laudatório dominante, a realidade aí está, a expor as verdadeiras motivações e natureza do processo de integração capitalista na Europa, bem como as suas consequências para os trabalhadores e os povos dos Estados-Membros.
Em Junho de 1985, na cerimónia em que, com pompa e circunstância, foi assinado o Tratado de Adesão de Portugal à CEE, Mário Soares - à altura Primeiro-Ministro de um governo PS/PSD -, não poupou nas palavras de exaltação da adesão às Comunidades e das suas alegadas vantagens e oportunidades para o País.
Era a criação «para os Portugueses» de «padrões de vida e de bem-estar verdadeiramente europeus»; as «exaltantes perspectivas de realização pessoal e de progresso» que se abriam «às jovens gerações»; «novas perspectivas e potencialidades de progresso e justiça social» para o «povo trabalhador de Portugal».
Porém, cerca de uma década antes da adesão à CEE, havia já tido início o processo contra-revolucionário e de recuperação capitalista no País, em que se inseria o ataque a direitos laborais e sociais, a outras conquistas de Abril e à própria Constituição da República.
Constituição revista em 1982, com alterações ao nível da organização do poder político saído da Revolução, entre outras, e fixação - também a pretexto da adesão – de artigos com impacto no mundo laboral, de que é exemplo a imposição do direito de tendência sindical. Almejavam, então, travar a luta organizada das massas, por via da divisão dos trabalhadores e do enfraquecimento do projecto sindical unitário e de classe consubstanciado na CGTP-IN, a grande central sindical dos trabalhadores em Portugal.
Ao longo dos anos, ao ritmo do aprofundamento do processo de integração capitalista europeia e, em particular, com a União Económica e Monetária e o Euro - instrumentos desenhados à medida dos interesses dos países economicamente mais desenvolvidos e dos grandes grupos económicos que neles imperam -, Portugal foi perdendo soberania e independência, o desenvolvimento do seu sistema produtivo foi posto em causa, estagnou no plano económico, a dívida pública e os juros a ela acoplados dispararam, intensificou-se a exploração do trabalho e as desigualdades na distribuição da riqueza, acentuou-se a degradação das condições de vida dos trabalhadores e do povo, comprometendo o futuro. Processo conduzido, no País, por sucessivos governos PS, PSD e CDS, no quadro da política de direita por si protagonizada, sempre no “pelotão da frente” do apoio à escalada neoliberal, federalista e, também, militarista da União Europeia, patente nos tratados e políticas comuns e expressa nos condicionalismos, imposições e chantagens de domínio político e económico.
Em 1989, Michel Rocard, à altura Primeiro-Ministro de França, com desfaçatez, admitia que «as regras do jogo do capitalismo internacional» impediam «qualquer política social audaciosa», pelo que, «para fazer a Europa», era preciso «assumir as regras» desse «jogo cruel».
Não será de estranhar, portanto, que, na Europa do capital, 20 anos de Euro desmintam, de forma cristalina, proclamações e ilusões vendidas, em torno da dita «política de coesão». Os Estados-Membros foram perdendo soberania monetária, cambial e orçamental e o propalado «modelo social europeu», fruto da luta de gerações de trabalhadores, foi sendo estilhaçado, através da crescente liberalização e desregulação das relações laborais, da amputação do direito de contratação colectiva, da negação do direito ao trabalho e ao trabalho com direitos, da precariedade, do desemprego, do aumento da pobreza (também laboral) e da idade da reforma, da acentuação das desigualdades, das privatizações de empresas e de serviços públicos e funções sociais dos estados, limitando, entre outros, o direito à saúde, à educação, à habitação, à segurança social; da negação do direito ao progresso e ao desenvolvimento dos países de economias mais frágeis e dependentes, como Portugal.
Como a experiência histórica demonstra, perante cada episódio da sua crise estrutural, o capitalismo, na busca de maior acumulação e concentração da riqueza, procurando saídas para superar os seus limites e contradições e combater a tendência para a baixa da taxa média de lucro, dá novos e cada vez mais devastadores passos na exploração dos trabalhadores e dos povos, impondo o retrocesso social e civilizacional.
Foi assim nos desenvolvimentos da crise de 2007/2008, quando, na UE, ao invés das enganadoras promessas de combate à especulação e aos paraísos fiscais, melhoria da protecção social e criação de emprego, se assistiu à disponibilização de apoios milionários à banca e ao grande capital e à aceleração de processos de centralização e acumulação do capital e da riqueza, enquanto os salários e as pensões sofriam cortes reais, o Direito do Trabalho era atacado nos seus alicerces fundamentais, o desemprego disparava, cresciam as desigualdades, a pobreza e a exclusão social. Foi, na mesma linha, e em nome do Euro, do alegado combate à dívida e ao défice público, que PS, PSD e CDS e Comissão Europeia, BCE e FMI impuseram o Pacto de Agressão a Portugal, com as conhecidas consequências nos planos económico, social e laboral e em benefício das economias europeias mais fortes.
Não foi Klaus Regling, actual director executivo do Mecanismo Europeu de Estabilidade, a confessar, à época, que o resgate da dívida de Portugal foi um bom negócio para a Alemanha, que recebeu «juros acima dos refinanciamentos»?
Mais recentemente, face aos impactos da pandemia, lá veio a Comissão com a lenga-lenga do arrepiar caminho, suspensão temporária de regras sobre o défice e a dívida e o famoso PRR, saído da cartola, com omissão dos seus custos reais, a pagar, no futuro próximo por países como Portugal.
A ausência de resposta a défices estruturais e produtivos - marca do PRR português -, faz antever, desde logo, um processo de reindustrialização na UE que, uma vez mais, culminará a favor das suas maiores potências. Não serão necessários grandes dotes de adivinhação para se prever que, da antecipação de verbas de orçamentos futuros, de mais endividamento, de prioridades definidas no interesse da agenda de Bruxelas e do grande capital europeu, das infindáveis reformas estruturais e, já agora, da retoma do garrote dos condicionalismos do Pacto de Estabilidade, anunciada por Dombrovskis para 2023 ou da pressão dos alertas de ontem do Comissário da Economia, não resultarão as respostas de que o País carece para vencer atrasos e assegurar o seu desenvolvimento soberano e o progresso social.
Não colhe, por isso, o embuste da «Europa social forte», a Europa da «prioridade às pessoas e ao seu bem-estar», proclamada pela Comissão mas negada pelas políticas da UE e por instrumentos supostamente criados para a sua promoção, como o Pilar dos Direitos Sociais e o seu Plano de Acção, na verdade, desenhados para nivelar por baixo os direitos sociais e regular o Deus mercado à medida dos interesses das multinacionais. Os progressos da ciência e da técnica e as chamadas «transicções ecológica e digital» são o pano de fundo para, em países como Portugal, se promover, afinal, a destruição do aparelho produtivo e o desemprego (que o digam os trabalhadores da refinaria de Matosinhos ou da termoelétrica de Sines!) e para normalizar e legalizar novas formas de flexibilização e exploração do trabalho. Na senda da directiva de 2003 para flexibilizar o tempo de trabalho e desregular os horários, a proposta de directiva sobre «salários mínimos adequados» apensa ao Pilar, a ser transposta para o nosso País, constituir-se-á como mais um elemento de pressão para travar a progressão do salário mínimo e promover a chamada contenção salarial. Quem não se lembra das críticas da Comissão aos aumentos do salário mínimo em Portugal, apesar da sua insuficiência?
E não será com as receitas do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, a Agenda, dita, do trabalho digno e de valorização dos jovens no mercado de trabalho ou o Acordo de rendimentos e competitividade agora apresentado pelo governo do PS na Concertação Social - instrumentos alinhados com o Pilar e vinculados às orientações e condicionalismos da UEM e do Euro (com que se articula a proposta do Orçamento do Estado para 2022) -, que se travará o agravamento da exploração e das desigualdades, o ataque a direitos e garantias constitucionais, o empobrecimento ou o desinvestimento nos serviços públicos e nas funções sociais do Estado. Não será, por certo, com tais receitas que se confirmarão as «exaltantes perspectivas de realização pessoal e de progresso», prometidas «às jovens gerações», que, se concretizadas, travariam a emigração forçada, em busca de um futuro melhor. Tal como não será com a obsessão das contas certas e em nome de uma suposta «escalada inflacionista», para não aumentar salários e pensões, que se responde à perda de poder de compra dos trabalhadores e pensionistas, face ao brutal aumento de preços de bens essenciais - agora por conta da guerra, das sanções e da especulação -, determinando, isso sim, o agravamento das condições de vida dos trabalhadores e do povo, enquanto os lucros dos grandes grupos económicos crescem escandalosamente.
A política de direita, as imposições da UE e a submissão ao Euro são incompatíveis com os direitos dos trabalhadores e das populações e o desenvolvimento soberano do País.
Recusamos, porém, a teoria das inevitabilidades, a lógica determinista dos que querem impor aos trabalhadores e aos povos a aceitação das políticas seguidas. Há alternativa!
E será com o contributo da luta organizada dos trabalhadores, sempre determinante para travar e interromper processos destrutivos e conquistar avanços, que se criarão condições para dar outro rumo ao País, resgatando-o do atraso e da dependência a que está sujeito. Abrindo o caminho da defesa dos interesses soberanos de Portugal e colocando, no centro das opções políticas, os direitos e anseios dos trabalhadores e do povo, imprimir-se-á um novo rumo de valorização do trabalho e dos trabalhadores, de reposição e melhoria dos direitos, de defesa e revitalização dos sectores produtivos nacionais, dos serviços públicos e funções sociais do Estado.
Não, o Euro não serve a Portugal, aos trabalhadores e ao povo! É imperioso libertar o País das suas amarras!
Cabe-nos abrir as portas ao futuro, porque nada é impossível de mudar! E, então, como cantou Chico Buarque: o mundo vai ver uma flor/brotar do impossível chão.