Intervenção de Bruno Dias na Assembleia de República, Reunião Plenária

O Governo tem de quebrar o desumano alinhamento de quem deixa ao abandono seres humanos no alto mar

Ver vídeo

''

Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Sendo este debate dedicado, simultaneamente, ao balanço do ano de 2022 sobre a participação de Portugal na União Europeia, e às perspetivas e prioridades da Presidência Espanhola da União Europeia, há uma abordagem que ganha mais utilidade e atualidade, de avaliação do caminho percorrido e de discussão sobre as opções políticas que se colocam para agora e para o futuro imediato.

Não há tempo para todos os temas, deixaremos apenas três breves notas para este debate.

Em primeiro lugar, a propósito do que é referido quanto ao “lançamento do debate sobre a reforma do quadro da governação económica”. Convenhamos que a tão celebrada “flexibilidade” não se traduz na prática em nada de substancial!

Sob pretexto de uma pretensa “coordenação de políticas”, o que temos continua a ser um mecanismo de imposição de políticas e de orientações neoliberais, contrárias ao interesse nacional, e cujas consequências continuam ainda hoje presentes na vida nacional – na ausência de resposta a problemas urgentes do país, que limitam o seu desenvolvimento soberano. Políticas e orientações em que convergem, objetivamente, PS, PSD, CH e IL. 

Estamos a falar de um mecanismo de autêntico recorte neocolonial, que apertou o garrote a que o país já se encontrava submetido, somando-lhe novos e reforçados condicionamentos.

Vejamos o que nos dizem as recomendações feitas a Portugal: limitar o aumento nominal das despesas primárias líquidas em 2024 a um máximo de 1,8%. Ou seja, com a inflação prevista, na prática estamos a falar em reduzir esta despesa. Onde a vai cortar? Nos salários reais dos funcionários públicos! Na saúde, na educação, noutros serviços públicos!

Como é que se pode preservar o investimento público necessário à mobilização do PRR e dos outros fundos comunitários, acelerar a sua execução, com este autêntico garrote, sem fragilizar enormemente, ainda mais, todas estas áreas?

É este o significado real da “Governação Económica”?! É ou não verdade que já foram aprovadas estas medidas no Conselho Europeu, com o acordo do Governo?!

É, aliás, notável como estas “recomendações” já parecem integrar o espírito da “reforma da governação económica” proposta pela Alemanha e reproduzida pela Comissão Europeia, com o foco na despesa primária líquida como reforçado elemento de pressão, no sentido do subfinanciamento, degradação e privatização dos serviços públicos, das funções sociais dos Estados e de outras áreas da sua intervenção.

Importa que fique claro: que posição já tomou o governo português sobre esta reforma, que prometeu flexibilizar as regras em tempos chamadas de “estúpidas” e que acabou a confirmá-las e nalguns casos a reforçá-las? Qual a posição do governo sobre a proposta de novas sanções? Sobre o poder discricionário que se pretende atribuir à Comissão Europeia? É que a perspetiva da presidência espanhola é simplesmente “mais do mesmo” nesta matéria!

Segunda nota – sobre a política agrícola e a sua aplicação:

Regista-se no Relatório do Governo, e no Parecer da Comissão Parlamentar, uma laudatória referência ao chamado PEPAC, o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum, um dos primeiros sete aprovados. Mas é preciso não ignorar os graves problemas de aplicação desse Plano – num quadro de opções políticas profundamente erradas!

O “monstro burocrático”, como já foi apelidado o PEPAC, não favorece, no seu conjunto, a agricultura nacional, mas são os pequenos agricultores os mais prejudicados em resultado de uma distribuição das ajudas ainda mais injusta.

Ignora-se a importância da pequena agricultura: nas explorações mais pequenas, o governo decidiu cortar 50% do valor da ajuda. Desliga-se as medidas ambientais da realidade dos agricultores e do País, com medidas agroambientais deixando de fora mais de 30 mil explorações. Continua a penalizar-se os baldios, quer na contabilização da área forrageira quer nas novas regras impostas.

Os senhores podem fazer a festa com o PEPAC. Os grandes interesses do agronegócio também. Mas os pequenos e médios agricultores, os baldios, a agricultura familiar não têm razões para essa festa!

Terceira e última nota: as políticas migratórias e as famosas “vizinhanças sul”.

A União Europeia e o Governo (e também a presidência espanhola) gabam-se do que têm sido as políticas sobre migração e asilo – e ao mesmo tempo proclamam um estatuto de “ator relevante” no contexto regional face aos países do Mediterrâneo. 

E ao ter em conta o contexto histórico, geográfico, político, e ao papel que poderia ser assumido neste âmbito, é chocante esse silêncio, essa inação, quer da presidência espanhola, quer da União Europeia no seu todo, quer do próprio Governo português, face ao drama que continua a ser vivido pelo Povo da Palestina e pelo Povo do Sahara Ocidental.

Mas, para além disso, esse Mediterrâneo é um cemitério gigantesco e é o “local do crime” das chocantes práticas das autoridades dos estados-membros da União Europeia (incluindo Portugal, pela sua cumplicidade com o que comprovadamente tem sido feito, desde logo pelas forças gregas e italianas).

É indispensável que o Governo quebre este desumano alinhamento de quem devolve ao alto-mar e deixa ao abandono estes seres humanos, num autêntico assassinato silencioso.

Os senhores já disseram várias vezes que face à extrema-direita há “um mar que vos separa” – mas esse mar, pelos vistos, não será o Mediterrâneo…

Disse.

  • Soberania, Política Externa e Defesa
  • Intervenções
  • migração
  • Plano Estratégico da Política Agrícola Comum
  • Soberania Nacional
  • União Europeia