Vivemos um período de crise sistémica. Um período de declínio da posição hegemónica da potência central do sistema capitalista mundial, os Estados Unidos, mas não só, dos restantes polos da tríade que o sustenta – União Europeia e Japão.
Entre episódios de crise de índole regional e mundial, a última das quais que se arrasta por mais de uma década, evidenciada pela sobre-acumulação de capital sobre todas as formas e da sobreprodução de importantes segmentos industriais do sistema capitalista mundial.
Uma crise de rentabilidade que teima em permanecer, apesar da cartilha do consenso de Washington, já com alguma idade e remendos, mas cujos pressupostos continuam a dominar a praxis das principais organizações internacionais do sistema capitalista, e inscrito, nomeadamente no pós-Maastricht, nos tratados da União Europeia que dão corpo à integração capitalista europeia, cujo Euro é um elemento central.
Agudiza-se a luta de classes e de aprofundamento das contradições do capitalismo, em particular da contradição fundamental entre o grau de socialização da produção atingido e apropriação privada das condições de produção.
Num contexto em que o nível interdependência e de financeirização acentuam os riscos de contágio dos choques económicos a nível regional e mundial, com os conflitos daí decorrentes. Onde o crédito se torna e é o «balão» de oxigénio do sistema, não só como um elemento de antecipação do consumo, mas de sustentação da própria financeirização. Em paralelo com a permanência de baixas taxas de juro, que para além de contribuírem para melhorar as condições de rentabilidade do capital e reduzir os seus custos de refinanciamento, promovem a «inflação» dos ativos financeiros, a explosão do capital fictício, num contexto acelerado de concentração e centralização do capital a nível mundial.
Num contexto de estagnação das taxas de acumulação, sobretudo ao nível dos países do centro do sistema capitalista mundial, como aponta a desaceleração das taxas de crescimento do produto de década para década (G1).
Num contexto de delapidação acelerada de recursos naturais (matérias-primas e energia) para «alimentar» a acumulação capitalista, de sobre-extensão do sistema a nível mundial e de mercantilização de todas as esferas da vida social, o que acentua as rivalidades interimperialistas, bem como as derivas destrutivas do sistema, nomeadamente o flagelo guerra.
O sistema capitalista responde e adapta-se com uma ofensiva de classe global, intensificando a exploração do trabalho, de forma a retomar o processo de valorização do capital.
Do «consenso» à «austeridade», sinónimos enraizados naquilo que tem sido a resposta do sistema capitalista à crise, desde o seu retorno visível nos anos 70 do século passado, que visa ajustar contas com as conquistas dos trabalhadores do pós-Guerra.
Uma resposta que tem no seu epicentro a redução dos custos unitários de trabalho, garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, na tentativa de aumentar as taxas de exploração, com vista a restaurar as condições de rentabilidade do capital.
Uma ofensiva que expropria triplamente o trabalho: a apropriação da mais-valia gerada no processo produtivo, os juros pagos ao capital financeiro por via do endividamento, para garantir no curto prazo a manutenção dos níveis de consumo num contexto de contenção salarial e os impostos, quando convertidos em fontes de refinanciamento do capital, transformando dívida privada em dívida pública. Veja-se o exemplo nacional, com as denominadas parcerias públicas-privadas e os enormes recursos financeiros que continuam a ser injetados no sistema bancário.
Esta resposta assenta em quatro princípios: a estabilidade de preços, melhor dito a moderação salarial; a consolidação orçamental; a desregulamentação dos mercados de bens, serviços e trabalho e a liberalização do comércio internacional. O que posto, em formato europeu: o Euro, o Tratado Orçamental (Pacto de Estabilidade), a Agenda de Lisboa (nas diversas atualizações) e os acordos de cooperação, leia-se livre comércio bilateral ou no seio da Organização Mundial de Comércio.
Por isso, o Euro e o Tratado Orçamental que o suporta, não são instrumentos neutros, têm um cunho de classe claro e um papel a desempenhar na resposta do sistema capitalista a crise, no contexto regional da União Europeia. O Euro e a União Económica e Monetária são um instrumento de classe ao serviço do grande capital transnacional que opera no mercado interno europeu.
Desde logo, o objetivo único da política monetária do Banco Central Europeu é a estabilidade de preços, o que de fato significa garantir as condições para que o crescimento dos salários reais fique abaixo do crescimento da produtividade do trabalho, com vista a garantir as transferências dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital.
A pressão para a redução dos custos unitários do trabalho é acentuada pelos pressupostos da própria União Económica e Monetária. Um país que deixa de ter a possibilidade de usar a sua política monetária e cambial, ao serviço das suas necessidades endógenas de desenvolvimento e na resposta a choques económicos externos, sobretudo de natureza assimétrica. Um país que se encontra com constrangimentos absolutos sobre a sua política orçamental e fiscal, decorrentes do Tratado Orçamental e do Pacto de Estabilidade, bem como de outros instrumentos económicos de intervenção do mercado, por via do controlo do Semestre Europeu. Então as únicas variáveis de ajustamento que lhe restam, são os salários e o emprego. Melhor dito a desvalorização dos salários e o aumento do desemprego, o que por sua vez também exerce um efeito «disciplinador» sobre os salários, concorrendo mais uma vez para o objetivo central de redução dos custos unitários de trabalho.
Mas a resposta de classe do Euro é mais ampla. Contribui para a redução dos custos de internalização e internacionalização das empresas multinacionais que operam no mercado europeu, como para a redução dos custos de refinanciamento do capital, por via da manutenção de taxas de juro baixas, tornando rentáveis investimentos com menores taxas de lucro; bem como para a promoção da capitalização bolsista e a manutenção dos valores reais da dívida existente, em defesa dos credores. Em paralelo, acentua a concorrência intercapitalista, enquanto pretende afirmar uma moeda de reserva internacional. Um Euro forte, à semelhança do antigo marco alemão.
Mas o Euro gera também assimetrias desenvolvimento, contribuindo para desigual distribuição de perdas e ganhos no interior da União Económica e Monetária, realizada entre Estados com níveis de desenvolvimento económico diferenciados e desequilíbrios significativos na sua balança de pagamentos, nomeadamente intracomunitária, cujas necessidades ao nível da política monetária e cambial seriam também diferentes e, por isso, incompatíveis com uma política monetária única.
Convém sublinhar que o Euro foi e é uma decisão política. Não decorreu de qualquer inevitabilidade da evolução das forças produtivas O Euro não era, nem é, uma zona monetária ótima, apesar das prerrogativas políticas de reforço dos mecanismos federais e de convergência das políticas económicas. O orçamento comunitário continua a representar cerca de 1% do RNB comunitário, o que é manifestamente insuficiente para ter qualquer cariz redistributivo ou dar resposta a choques assimétricos, se tivermos em conta a experiência existente em Estados federados, para mais num contexto de permanência de importantes disparidades dos níveis de desenvolvimento económico e social e, por isso, mesmo com necessidades de políticas diferenciadas ao nível monetário e cambial, com objetivos diferenciados ao nível do binómio taxas de juro e inflação.
A política monetária única dará sempre resposta aos interesses das grandes potências, exacerbando os ajustamentos ao nível dos países da periferia da zona Euro e acentuando os seus desequilíbrios externos.
Desde o processo que conduziu a sua criação e desde a sua entrada em circulação, com os sucessivos alargamentos, o Euro teve alguns momentos críticos, em linha com o desenvolvimento da crise sistémica, o último dos quais com a crise de 2007/2008 e a subsequente crise das «dívidas soberanas» na Europa.
Houve promessas feitas a 2 de maio de 1998, quando foi aprovada a lista dos 11 países fundadores da zona Euro, que não vieram a concretizar-se, nomeadamente no que concerne ao crescimento económico.
Na Agenda da Lisboa apontava-se para taxas de crescimento do produto de 3% ao ano, mas na verdade o crescimento médio anual da zona Euro a 12 foi inferior a 1% (0,8%), entre 2001 e 2020, quase 3 vezes inferior ao registado nas duas décadas anteriores (G3). Afirmava-se que o Euro traria um forte crescimento do emprego, contribuindo para a redução dos elevados níveis de desemprego verificados na zona Euro, mas o que se verificou foi um crescimento anémico, em termos médios de 0,6% ao ano (G5), com uma taxa de desemprego média de 9,3%, ou seja, quase 14 milhões de desempregados (mais de 16 milhões no caso da União Europeia a 15).
Em relação a Portugal, o pós-euro significou na prática estagnação económica e divergência. O crescimento económico registado foi de 0,3% ao ano entre 2001 e 2020 (G3), o que significa que crescemos a um ritmo 11 vezes inferior ao registado nas duas décadas anteriores, tendo mesmo as taxas de crescimento médio anual sido negativas na última década, ou seja, uma década perdida. Por outro lado, passamos de uma situação de convergência antes do Euro, para uma situação de divergência com a zona Euro e a União Europeia, situação que se agravou na última década (G2).
Ao nível da evolução do emprego, passamos de um crescimento anémico antes do Euro (0,5%), para um crescimento médio anual negativo (-0,2%) nas últimas duas décadas (G5). Registamos depois do Euro, em termos médios, mais 150 mil desempregados e a média da taxa de desemprego anual passou dos 7,9% para os 10,2%.
Em relação a Portugal, importa ainda salientar que em termos cumulativos o produto cresceu mais de 72% desde 1981, enquanto o emprego apenas cresceu quase 7% (G6), com a emprego registado em 2013 a ficar ao nível de 1981.
Por outro lado, os desequilíbrios macroeconómicos agravaram-se, o que pode também ser constatado nas disparidades crescentes dos saldos das balanças comerciais entre os países que compõem a Zona Euro, com a existência de países «importadores líquidos» e, por isso devedores, com um nível de dívida crescente, como Portugal, Grécia e Espanha, e de países «exportadores líquidos» e, por isso credores, como a Alemanha.
Ao nível do saldo da balança de bens, em termos médios, o excedente alemão quase quadruplicou depois do euro, enquanto o défice português, grego e espanhol mais que duplicou, aumentando o peso do comércio intracomunitário.
No caso português, o défice de bens acompanha redução da produção industrial, sinal da progressiva desindustrialização nacional (G4). Duas décadas que precederam o Euro, a produção industrial crescia em média 3,1% ao ano, depois do Euro cresceu em média -1%, acompanhado a uma tendência mais gravosa que a do crescimento do produto.
Desta breve análise, parece evidenciar que o Euro deixou promessas por cumprir e criou no seu seio perdedores, onde Portugal se pode incluir. Mas o Euro foi e é um grande instrumento ao serviço da exploração e neste plano tem cumprido os seus objetivos. A política monetária única serviu, não só para conter o crescimento dos salários, como para garantir que os lucros crescessem a um ritmo superiores ao dos salários, contribuindo para restaurar as condições de rentabilidade do capital.
Em Portugal e na zona Euro, a taxa de crescimento dos salários reais tem vindo a desacelerar de década para década, tornando-se, no caso de Portugal, mesmo negativa na última década (G7).
Depois do Euro, os salários «cresceram», em termos médios, 0,1% ao ano em Portugal (2,2% nas duas décadas que antecederam o Euro, G8) e 0,3% na zona Euro (cerca de metade).
Em paralelo, depois do Euro, os lucros líquidos cresceram a um ritmo 23 vezes superior ao dos salários reais em Portugal e mais de 5 vezes na zona Euro (G8). Significativo é que Portugal neste período registou uma redução dos custos unitários do trabalho, resultando do efeito que depois do Euro, ter-se registado um crescimento da produtividade do trabalho superior ao crescimento dos salários reais, evidenciando uma transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital (G10).
Depois do Euro, Portugal só registou aumentos dos custos unitários do trabalho, em períodos de recessão económica, tendo em conta o desfasamento do efeito de ajustamentos dos salários à quebra do produto, com exceção do período 2017-2019 (G9).
A natureza de classe do Euro não pode ser dissociada da própria União Europeia. Como processo histórico de resposta do capitalismo europeu às crises cíclicas que atravessa e um elemento da concertação do capital ao nível europeu, o Euro é cada vez mais uma peça fundamental do capital na ofensiva contra o trabalho e um elemento de afirmação regional, na coocorrência intercapitalista a nível mundial.
Um mecanismo, em paralelo com outros na União Europeia, de ingerência política, económica e social, que põem em causa a soberania e a independência nacionais, limitando de forma efetiva e não democrática alternativas endógenas de desenvolvimento económico e social.
Temos que ter consciência que não existem saídas no atual quadro que não passem por uma rutura com o processo de integração capitalista europeia, com as políticas vigentes, de fazer retornar aos Estados os instrumentos de política económica, monetária, orçamental e cambial, assim como pôr no domínio público os sectores estratégicos que permitam alavancarem o desenvolvimento económico dos países, ao serviço dos trabalhadores e dos povos, criando as condições para a transformação da sociedade.
O combate ao Euro, às orientações que lhe dão suporte e às políticas que viabiliza, é parte indissociável desta luta mais geral por uma Europa de paz, progresso e cooperação.