Exposição de motivos
Desde 2009, governos vários optaram pela socialização dos prejuízos dos bancos a pretexto da estabilidade do sistema financeiro. Sucessivas comissões de inquérito constituídas no âmbito parlamentar produziram conclusões e recomendações que se apresentaram sempre como os instrumentos necessários para que tais eventos não pudessem vir a passar-se de novo. A história recente veio a comprovar a ineficácia das medidas ou a falsidade dos objectivos anunciados, na medida em que praticamente todos os bancos com operação em Portugal sucumbiram à voragem dos seus próprios accionistas, dos grandes grupos económicos ou à fragilidade da economia portuguesa ou à conjugação destes factores.
As comissões de Inquérito à falsa nacionalização do BPN, à resolução do BES, à entrega do BANIF a um banco espanhol e à capitalização da CGD comprovam a total ineficácia do sistema de supervisão e regulação e denunciam o carácter predador dos grandes grupos económicos, bem como a constante predação mútua entre o sector financeiro e o sector não financeiro da economia. Ao mesmo tempo, essas comissões identificaram práticas legais e ilegais que lesam o capital bancário, com custos últimos para o Estado e para a economia nacional. A ocorrer nos dias de hoje, um novo colapso de qualquer instituição bancária implica perdas também nos depósitos, tendo em conta a legislação europeia, entretanto também transposta para Portugal.
As comissões de inquérito permitiram ao Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português construir conclusões políticas e, em muitos casos, essas conclusões convergem com parte das conclusões adoptadas pela própria Assembleia da República.
Independentemente das conclusões políticas, desde 2009 que o Estado português comprometeu cerca de 17 mil milhões de euros com o resgate e capitalização de bancos, tenha sido por colapso ou por necessidades de capitalização. Esse valor corresponde a perdas de bancos não provisionadas a devido tempo e resulta de uma política precipitada de distribuição de dividendos pelos banqueiros e grandes accionistas da banca. Ao mesmo tempo, essas insuficiências de capital resultam da acumulação de imparidades que têm origem em créditos de risco atribuídos através de processos internos viciados e que também expõem a promiscuidade entre a banca e os grandes grupos económicos. Essa promiscuidade é real para todas as instituições financeiras intervencionadas e desse universo não se exclui a Caixa Geral de Depósitos. Se é verdade que a Caixa nunca pode, por impossibilidade material, ser predada pelo seu acionista ou conceder créditos de favor a partes relacionadas como foram os restantes bancos (BPN, BPP, Banif e BES), o mesmo não se pode dizer sobre a possibilidade real de promiscuidade entre as administrações da CGD e negócios com grandes grupos económicos, tenha o financiamento sido assegurado pela CGD apenas ou por sindicato bancário.
O Grupo Parlamentar do PCP solicitou a listagem de créditos (acima de determinado valor) provisionados,em incumprimento, bem como dos que tenham sido abatidos ao activo por incumprimento (write-off), ao longo dos trabalhos de todas as comissões de inquérito à banca realizadas em Portugal. No caso da CPI à resolução do BES, tal lista nunca foi enviada, apesar da sistemática insistência do PCP. No caso do Banif, essa lista foi parcialmente enviada à CPI por uma das empresas de auditoria. No caso da CGD, o Banco de Portugal assumiu o não envio por motivos de segredo bancário e fazendo alusão à circunstância de ser a CGD um banco em pleno funcionamento e em contexto concorrencial.
Para o PCP, independentemente de ser favorável à facilitação do levantamento do sigilo bancário para combate ao branqueamento de capitais, evasão e crime fiscal, tal capacidade deve residir nas autoridades judiciais, no âmbito da prossecução das suas funções. No entanto, é igualmente verdade que o caso da banca tem particularidades por existir um comprometimento significativo de recursos públicos. Essa utilização de recursos públicos está relacionada com créditos não cobrados, está associada a imparidades registadas nos balanços dos bancos e provisionadas por risco elevado ou incumprimento material. Nos termos da lei, as provisões são constituídas para um crédito em concreto e a cada provisão é associada a garantia ou colateral. Isso significa que é possível saber o valor das provisões e o crédito a que cada uma das provisões corresponde em concreto. No caso de existir segregação de activos – BPN, BANIF e BES – tal operação permite identificar inclusivamente quais das provisões foram pagas com recursos públicos.
À Assembleia da República não cabe apurar responsabilidades criminais, mas cabe o apuramento das responsabilidades políticas e garantir a transparência no uso dos recursos públicos. Igualmente, cabe à Assembleia da República tomar todas as medidas necessárias para impedir perdas para o interesse público e assegurar a responsabilização económica e financeira dos que beneficiaram com a crise bancária. Por isso mesmo, o PCP apresentou um projecto de resolução para a determinação dos beneficiários de créditos do BES e do BANIF, para que fosse determinado um perímetro patrimonial de cada um dos incumpridores a ser sujeito a nacionalização para mitigar as perdas do Estado.
Curiosamente, os que hoje ensaiam um número político em torno das imparidades e créditos em incumprimento na Caixa Geral de Depósitos, souberam de alguns dos incumpridores do BES e nada fizeram. Relembramos a proposta do PCP para a nacionalização da Espírito Santo Saúde – alimentada por operações que envolviam o BES.
Relembramos inclusivamente a conclusão da CPIBES que afirma claramente que o Governo PSD/CDS não ponderou sequer a nacionalização do BES, tendo avançado directamente para as opções restantes – liquidação ou resolução -, assim assumindo que a tremenda injecção de capitais públicos serviria apenas para pagar os créditos em incumprimento sem que o Estado pudesse deter instrumentos para a recuperação desses créditos. Tal não é sequer o exemplo do que se passa na CGD, sendo que – ao que apurou a Comissão de Inquérito à sua capitalização – nenhum grande crédito foi abatido ao activo ou perdoado. Ou seja, independentemente das más opções ou créditos de favor que possam ter sucedido na CGD por intervenção de um ou outro governo ou governante, a realidade é que a Caixa continua a deter os meios para cobrar esses créditos, meios de que o Governo PSD/CDS abdicou na resolução do BES e que o Governo PS diz ter recuperado em parte com o controlo de parte dos activos que só podem ser alienados com aval do fundo de resolução. Tal controlo não se tem revelado, contudo, totalmente capaz de assegurar o interesse público, nem tampouco de assegurar a inexistência de processos de recompra e limpeza de dívidas por parte dos anteriores devedores e incumpridores do BES.
Chegados a este ponto, identificadas práticas especulativas e predatórias da banca privada e o eventual comprometimento da banca público com grandes grupos económicos e projectos falhados, resta estabelecer se existe ou não utilidade e oportunidade no conhecimento dos beneficiários finais dos créditos não pagos à banca intervencionada pelo Estado, seja sob a forma de capitalização, empréstimo, ou resolução e nacionalização.
Tendo em conta o quadro legal existente e necessidade de salvaguardar o sistema financeiro nacional, bem como o investimento, a medida mais eficaz para a recuperação do património que possa ser chamado a partilhar as perdas dos bancos assumida pelo Estado é a que consiste na constituição de uma unidade técnica para a determinação e identificação dos beneficiários dos fluxos financeiros que lesaram as instituições bancárias e consequentemente, o Estado. PSD e CDS rejeitaram essa proposta do PCP.
O PCP mantém a sua posição, defendendo que é essa a medida mais eficaz, não na perspectiva da transparência pública dos destinatários de créditos não pagos e eventualmente perdoados, mas na da obtenção de recursos para compensar as perdas do Estado.
Sendo que a Caixa Geral de Depósitos assegurou que nenhum dos créditos dos grandes riscos havia sido abatido ao activo, não se pode concluir pelo perdão de nenhum crédito, pelo que a questão que se coloca não é a da identificação de um perímetro patrimonial a resgatar – já que cabe ao departamento de recuperação de crédito da instituição realizar esse trabalho – mas a da identificação dos destinatários dos créditos com elevado valor e elevado incumprimento para identificar eventuais práticas de favorecimento. Contudo, tal processo não se conclui com a divulgação ou publicitação da mera listagem dos incumpridores. É estritamente necessário o conhecimento dos dossiers e das decisões dos conselhos de crédito, bem como da situação da cobrança de cada um dos créditos no momento actual. Ou seja, se é sabido que muitos créditos do BES / NB e do BANIF, transitaram para veículos por segregação de activos, assim sendo dado como perdidos ou perdoados, ou mesmo vendidos por uma parte do seu valor contabilístico, na Caixa – a ser verdade o testemunho dos seus administradores na CPI – não houve lugar a perdões de dívida, sendo que é ainda a caixa a titular dos direitos sobre esses créditos, independentemente da capitalização pública a que foi sujeita.
Tal não se verifica no Banif, BES, e não temos garantias de que se tenha verificado no BPI e no BCP. Ao segregar e vender à peça activos dos balanços das instituições, tais créditos são objectivamente retirados dos balanços das instituições, dados como resolvidos por estas e ficam a pesar num qualquer veículo financiado pelo Estado até ser vendido, na maior parte dos casos, com importantes perdas.
Tendo tudo isto em conta, não se pode de forma alguma, tratar de forma igual as questões da CGD e dos restantes bancos intervencionados. A existência de créditos de favor na CGD, a ter existido, como tudo indica ter sucedido, deve ser alvo de investigação criminal e de intervenção por parte do Banco de Portugal e pode ser sindicada pela Assembleia da República apenas nos casos em que créditos tenham sido total ou parcialmente abatidos ao activo da instituição. Caso diferente, são as instituições entretanto liquidadas ou sem licença para concessão de crédito e sobre as quais tenham incidido medidas de resolução ou de segregação de activos. Da mesma forma, pode ser considerada a possibilidade de créditos em incumprimento abatidos ao activo nas instituições que solicitaram o recurso à linha de recapitalização pública, nomeadamente o BCP e o BPI, pois tais instituições podem ter provisionado créditos com esses recursos públicos.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados da Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte
Projeto de Lei
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece regras para a divulgação de informação relativa à concessão de créditos de valor elevado em incumprimento abatidos ao registo contabilístico das instituições de crédito, créditos vencidos, reestruturados ou considerados incobráveis, bem como dos processos de decisão de atribuição e gestão desses créditos e das garantias e clientes a eles associados.
Artigo 2.º
Definições
Para efeitos da presente lei, considera-se:
Crédito de valor elevado: o crédito com valor igual ou superior a 2 milhões de euros;
Crédito vencido abatido ao ativo: o crédito da instituição bancária sobre um cliente que, tendo registado imparidades e respetiva provisão de capital, tenha sido retirado do balanço da instituição;
Crédito reestruturado com provisão por imparidades: o crédito da instituição bancária sobre um cliente que, tendo registado imparidades e respetiva provisão de capital, tenha reduzido irreversivelmente o seu valor no ativo da instituição;
Processo de decisão interno: o conjunto dos documentos e procedimentos internos da instituição referentes à concessão de um crédito ou à sua reestruturação, incluindo as respetivos garantias, identificando os intervenientes.
Artigo 3.º
Comunicação à Assembleia da República
O Banco de Portugal comunica à Assembleia da República, até Maio de cada ano, a listagem dos créditos abrangidos pela presente lei, contendo os seguintes elementos:
Os créditos vencidos abatidos ao ativo de valor superior a 2 milhões de euros no registo contabilístico da instituição;
Os créditos de valor inicial superior a 2 milhões de euros que tenham sido reestruturados com provisão por registo de imparidades;
Os créditos vencidos de valor residual superior a 2 milhões de euros considerados irrecuperáveis, incobráveis ou perdoados;
Os créditos vencidos de valor superior a 2 milhões de euros atribuídos sem garantias ou com garantias avaliadas em valor inferior a 75% do valor contabilístico do crédito antes da constituição de qualquer provisão e registo de qualquer imparidade;
Os processos de decisão internos sobre cada um dos créditos referidos acima.
Artigo 4.º
Instituições capitalizadas com recurso a fundos públicos
O Banco de Portugal comunica à Assembleia da República a listagem referida no artigo 3.º quanto:
às instituições bancárias capitalizadas por qualquer via, direta ou indireta, com recurso a fundos públicos, referente à data da injeção de capitais públicos, imediatamente antes da capitalização e imediatamente após a capitalização; e
às instituições bancárias a que tenha sido aplicada medida de resolução, nacionalização ou liquidação, por referência à data da aplicação da referida medida e à apresentação de contas imediatamente anterior à sua aplicação.
O Banco de Portugal comunica ainda à Assembleia da República, relativamente às instituições bancárias referidas no número anterior, uma listagem contendo os elementos previstos no artigo 3.º que tenham transitado da instituição para um veículo de gestão de ativos, seja público ou privado.
O Banco de Portugal comunica igualmente à Assembleia da República a listagem de todos os activos de valor contabilístico igual ou superior a 2 milhões de euros, por referência ao valor registado no momento da segregação, e detidos por sociedades públicas em resultado da segregação de ativos de instituições bancárias, identificando todos aqueles que tenham sido entretanto alienados, o valor da alienação e o respetivo comprador.
As listagens referidas no presente artigo são enviadas à Assembleia da República num prazo de 90 dias após a entrada em vigor da presente da lei.
Artigo 5.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.