Exposição de motivos
I
O sistema financeiro português tem, principalmente desde 2008, manifestado publicamente a sua instabilidade e fragilidade, revelando uma estrutura baseada na apropriação indevida de recursos e na canalização de créditos para fins próprios, que, em grande parte, resulta vencido.
Ao longo do tempo e dos sucessivos processos, de forma transversal ao conjunto das instituições bancárias, a regulação e supervisão da atividade bancária não só se mostrou ineficiente no controlo, como na procura de soluções. Igualmente, a posição política dos sucessivos governos não salvaguardou, deliberadamente, o interesse público, tendo optado por uma política de utilização dos meios públicos e do Estado para a limpeza dos balanços dos bancos e para a recapitalização necessária das instituições, voltando a entregá-las depois, a preço de saldo ou sem custos, a outros grupos económicos e financeiros. O Estado foi utilizado como rede de segurança, não do sistema financeiro como um serviço, mas do sistema financeiro com um negócio privado e um mercado que gera lucros obscenos e, muitos deles, indevidos.
Os mecanismos públicos de controlo, quer no âmbito político, quer no âmbito da regulação, demonstraram-se assim, não insuficientes, mas incompetentes por definição, para a prevenção e resolução de problemas na banca que obedeçam ao interesse público e não correspondam apenas à transferência de capitais do Estado para as instituições privadas, ainda que a geometria das instituições ou dos seus proprietários seja variável.
II
O conceito de “demasiado grande para falir” que tem servido de pretexto para a intervenção do Estado, juntamente com o de “efeitos sistémicos” e de “riscos sistémicos”, são aplicáveis praticamente a todas as instituições da banca comercial portuguesa, na medida em que o sistema bancário é um sistema fiduciário que é perturbado por qualquer variação na confiança do cidadão, ainda que em pequenas instituições financeiras. Como tal, toda a banca comercial, independentemente da sua dimensão, quota de mercado, rácio de transformação e dimensão da carteira de créditos e de depósitos, é um elo fundamental numa cadeia que é determinante para o funcionamento da generalidade das atividades económicas.
A banca privada usa como alavanca para as suas atividades um capital alheio, que é o dos depositantes – que é utilizado, muitas vezes, até para alimentar o capital próprio das instituições – assim gerando dividendos que não resultam de qualquer geração de riqueza, mas apenas da apropriação de recursos dos clientes e, nas fases de insolvência, substituídos pelo esforço público através de processos de natureza vária: recapitalização, “nacionalização”, resolução ou liquidação. Em qualquer um desses processos, é o Estado que repõe o que foi desviado pelas administrações, gestores de topo e acionistas das instituições financeiras para benefício próprio e para apoiar negócios que lhes são próximos.
III
A utilização do aparelho do Estado, da estrutura administrativa e do capital público, tem sido colocada, em todos os casos de colapso de bancos em Portugal, meramente instrumental para os grandes grupos económicos. Quer nos processos de recapitalização, quer nos de resolução, o Estado foi apenas o instrumento para a concentração da atividade bancária e para a limpeza de “ativos tóxicos” e imparidades registadas nas carteiras de crédito dos bancos. Na verdade, sob o pretexto da “salvaguarda da estabilidade do sistema financeiro”, o Estado foi utilizado pelos grupos monopolistas como um instrumento para injetar capital na atividade privada e para desmantelar instituições, assumindo o ónus e os custos económicos, financeiros e sociais pelos processos de reestruturação do sector bancário em Portugal.
No caso de “nacionalização” do BPN, apesar de formalmente a solução diferir das restantes, politicamente o significado foi igual. Ou seja, o BPN não foi nacionalizado. O BPN foi transitoriamente assumido pelo Estado e durante o período em que tal sucedeu, o Estado limpou as dívidas e assumiu os passivos e activos desvalorizados, para depois passar o negócio a um grupo privado por um valor residual face aos custos que a operação representou para o Estado.
A nacionalização, tal como entende o PCP, em nada se relaciona ou assemelha com processos de instrumentalização do Estado para favorecer mercados e negócios privados. Antes é um mecanismo que coloca sob o controlo público – não meramente acionista – a instituição nacionalizada.
IV
Os fluxos financeiros, em grande parte sob a forma de créditos concedidos sem garantias ou com falsas ou sobreavaliadas garantias, que originaram as perdas do BPN, do BES e, mais recentemente conhecidas, do Banif, tiveram destinos concretos. Cada uma das contas off-shore, cada uma das empresas, dentro ou fora do perímetro das “partes relacionadas”, que beneficiou de créditos deu um destino a esses recursos.
Por isso mesmo, o PCP propôs, no caso BPN, a nacionalização e controlo público do Grupo SLN e, no caso BES/GES, o congelamento imediato do conjunto de bens e ativos do Grupo Espírito Santo. Ou seja, devem ser aqueles acionistas ou entidades que beneficiaram do desvio dos recursos da instituição bancária a ser chamados a pagar as dívidas assumidas perante terceiros.
Tal solução, teria permitido, não apenas ressarcir um vasto conjunto de investidores, principalmente pequenos e não qualificados investidores, pelos empréstimos concedidos ao GES, mas também diminuir significativamente as necessidades de capital da instituição. Por exemplo, a utilização de bens do GES adquiridos com créditos atribuídos pelo BES ou por dividendos que nunca deveriam ter sido distribuídos, poderia ter servido para pagar as dívidas que o GES contraiu junto de clientes do BES e de muitas outras instituições bancárias, de retalho e de investimento.
V
O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português propôs, na passada legislatura, a constituição de uma unidade técnica ao serviço do Estado para a identificação dos destinatários e beneficiários finais dos fluxos de capital que lesaram o BES ao ponto da sua insolvência. Essa identificação poderia permitir ao Estado Português a utilização do sistema judicial para a recuperação desses bens, ativos e capitais, na medida em que a sua apropriação foi, a todos os títulos, indevida.
Nessa legislatura, PSD e CDS votaram contra a constituição dessa equipa e PS absteve-se. A vida mostra, contudo, que a justificação para essas orientações de voto, não vingou. Não é matéria de opinião do PCP, é matéria de facto. A simples consideração de que tal tarefa de identificação de beneficiários e de processos legais e ilegais utilizados deveria caber às instituições policiais e judicias mostrou que tal investigação carece, não só de meios, como de orientação política além de judicial.
O assalto de que os bancos portugueses foram alvo, perpetrado pelos próprios grandes acionistas da banca e pelos grupos económicos com que se relacionam, deu origem a um assalto aos cofres do Estado, a um maior endividamento público e a custos com juros da dívida cada vez mais insuportáveis, na medida que refletem a instabilidade do sistema financeiro. Tal assalto, contudo, foi realizado, em muitos casos de forma a que a legislação existente não veda nem legitima. Tal investigação carece pois, de direção e de orientação, para que possa então passar a constituir elemento para os devidos procedimentos legais que possam gerar o ressarcimento público e o ressarcimento dos credores, cuja devolução do capital se justifique social, política e legalmente.
Tal investigação exige que os representantes do povo, que os eleitos na Assembleia da República, assumam a responsabilidade de procurar o dinheiro em que a própria República foi lesada, determinando a constituição de uma unidade técnica que tenha mandato público para identificar, dentro e fora do país, os destinatários e beneficiários finais de cada um dos fluxos de crédito que lesaram o BES, o BPN e o Banif e que mais tarde se traduziram em perdas públicas de igual dimensão em capital, a que acrescem os juros cobrados ao Estado pela dívida contraída em nome próprio.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados da Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte
Projeto de Lei
Artigo 1.º
Objeto e âmbito
A presente lei cria a Unidade Técnica para a recuperação do património resultante do incumprimento dos pagamentos de créditos de valor elevado obtidos junto de instituições de crédito com sede em Portugal.
São abrangidos pelo âmbito da presente lei os créditos que, cumulativamente,:
tenham sido concedidos por instituições de crédito, com sede em Portugal, que tenham sido objeto de medidas de resolução, nacionalização ou liquidação ou tenham beneficiado de medidas de recapitalização ou empréstimo público;
por incumprimento do seu titular, tenham implicado a constituição de provisões por imparidades registadas ou por segregação do balanço da instituição; e
à data da segregação ou do abate ao ativo da instituição, tivessem valor contabilístico igual ou superior a 2 milhões de euros, não existindo garantia de valor igual ou superior.
Artigo 2.º
Unidade Técnica
A Unidade Técnica para a recuperação do património resultante do incumprimento dos pagamentos de créditos de valor elevado obtidos junto de instituições de crédito com sede em Portugal, doravante Unidade Técnica para a Recuperação do Património, é constituída junto do Banco de Portugal e é composta por profissionais especialistas em auditoria financeira, direito fiscal e combate ao crime económico.
A designação dos membros da Unidade Técnica para a Recuperação do Património cabe ao Banco de Portugal.
O Governo, por proposta do Banco de Portugal, define anualmente os meios orçamentais necessários para a dotação dos recursos humanos e materiais considerados necessários à prossecução das competências da Unidade Técnica para a Recuperação do Património.
Artigo 3.º
Competências
Compete à Unidade Técnica para a Recuperação do Património:
a determinação dos perímetros patrimoniais constituídos com recurso a crédito obtido junto de instituições de crédito com sede em Portugal que, por incumprimento do seu titular, tenha implicado a constituição de provisões por imparidades registadas ou por segregação do balanço da instituição, quando o valor contabilístico à data da segregação ou do abate ao ativo da instituição seja superior a 2 milhões de euros e não haja garantia de valor igual ou superior;
a identificação dos beneficiários finais de todos os fluxos financeiros, creditícios ou outros, que tenham lesado instituições de crédito com sede em Portugal, nomeadamente junto de jurisdições estrangeiras, bem como dos intervenientes nas respetivas operações de concessão de crédito;
a identificação dos titulares ou devedores de ativos creditícios detidos por todos os veículos públicos de gestão de ativos segregados de instituições de crédito que tenham sido alvo da aplicação de medidas de resolução, nacionalização ou liquidação e a quantificação dos valores desses ativos quando superiores a 2 milhões de euros, bem como dos intervenientes nas respetivas operações de concessão de crédito;
a identificação das medidas necessárias à recuperação desses ativos pelo Estado, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal a que haja lugar.
Artigo 4.º
Dever de colaboração
Todas as entidades, públicas e privadas, ficam obrigadas a prestar a colaboração que lhes for solicitada pela Unidade Técnica para a Recuperação do Património.
Artigo 5.º
Informação e relatório Final
A Unidade Técnica para a Recuperação do Património reporta semestralmente o resultado das suas diligências ao Governo, à Assembleia da República e ao Banco de Portugal.
Findas as diligências necessárias para o cumprimento das suas competências, e no prazo máximo de dois anos após a sua constituição, a Unidade Técnica para a Recuperação do Património elabora um relatório final a apresentar à Assembleia da República, ao Governoe ao Banco de Portugal.
Artigo 6.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação