Exposição de motivos
O consumo predatório e não planificado democraticamente dos recursos naturais e a introdução na Natureza de uma carga poluente superior àquela que, em muitos casos, os ciclos naturais são capazes de absorver ou neutralizar, têm vindo a caracterizar o desenvolvimento do modo de produção atual. Uma das formas de os grupos económicos aumentarem os lucros, além do corrente aumento da taxa de exploração sobre os trabalhadores, é a do incremento do volume de vendas.
Em vários produtos utilizados comummente estão a ser introduzidas pelo produtor – os grandes grupos económicos – características que provocam a obsolescência do produto em data anterior àquela que a tecnologia e os materiais atualmente disponíveis permitem. A melhoria de várias técnicas e a descoberta de novos materiais permitiriam produzir utensílios e dispositivos cada vez mais eficientes e duradouros. No entanto, verifica-se exatamente o contrário. A investigação e desenvolvimento das grandes empresas, principalmente dos grandes grupos económicos, tem vindo a concentrar-se na obtenção de métodos visando a obsolescência de produtos sem qualquer outro motivo senão o da oferta de um seu substituto com custos para os consumidores e a Natureza que se avolumam.
Os afirmados objetivos dos planos para a economia circular, além da insuficiência ou mesmo desacerto das medidas tomadas pelo Governo, confrontam-se com a avidez dos grandes grupos económicos e acabam por ser utilizados para uma ainda maior concentração de lucro. Ou seja, no essencial, acabam por se constituir fileiras de carácter circular apenas nos segmentos passíveis de apropriação privada do lucro.
Estima-se que os custos da obsolescência programada ou da pequena durabilidade de alguns utensílios e dispositivos são sensíveis não apenas no consumo exacerbado de recursos naturais e de serviços de reciclagem e tratamento de resíduos, como também no plano da emissão de gases com efeito estufa. A título de exemplo, para utilizar os dados mais recentes, recolhidos pelo EEB (European Environmental Bureau) – uma rede de ONG de Ambiente sedeadas no espaço europeu, um aumento de um ano no prazo de vida de telefones portáteis, aspiradores, máquinas de lavar roupa e computadores portáteis, poderia representar uma diminuição de 4 milhões de toneladas de Dióxido de Carbono-equivalente nas emissões.
De acordo com os estudos desse gabinete, o tempo de vida útil de um smartphone – a título de exemplo – para que se pudesse dizer em relativo equilíbrio com os ciclos naturais e humanos de reposição de recursos – deveria situar-se entre os 25 e os 232 anos. Atualmente, o tempo de vida útil de um smartphone é de 3 anos. Os custos ambientais e económicos desta discrepância são gigantescos e incomportáveis.
A potência computacional de um pequeno aparelho com telefone é hoje capaz de realizar facilmente a esmagadora maioria das tarefas. No entanto, os próprios produtores introduzem mecanismos vários – quer no hardware, quer no software – para impedir a realização plena das capacidades do dispositivo no longo prazo. A resistência e durabilidade dos materiais está programada para cumprir um mínimo de utilizações, bem como a própria programação de uma boa parte dos aparelhos que fazem uso de software contém linhas que tornam o dispositivo menos eficaz e mais lento ao longo do tempo. Por outro lado, muito software – mesmo excluindo os jogos de vídeo – é produzido com cada vez mais exigências de hardware para que, no entanto, realizem o mesmo conjunto de tarefas com eficácia semelhante. Os sistemas operativos dos vários dispositivos eletrónicos são disso exemplo. Apesar de não apresentarem diferenças assim tão significativas ao longo do tempo e de em muitos casos essas diferenças se limitarem a estética, são cada vez mais exigentes do ponto de vista do hardware, gerando um consumo encadeado de software e hardware em exagero e acima das reais necessidades.
A sobreprodução está intimamente ligada ao consumo excessivo de recursos naturais, mas também é causa e simultaneamente consequência concreta das grandes crises capitalistas, das bolhas especulativas que as antecedem e dos colapsos financeiros que as caracterizam. Não é razoável, nem justo que sejam concentrados esforços sobre os hábitos de consumo das populações sem que sejam exigidas normas mínimas de combate à obsolescência aos grandes produtores de bens.
Colocar a escolha única e exclusivamente do lado do consumidor não assegura o fim da produção desnecessária, nem responsabiliza o lado da oferta, na medida em que visa apenas criar um novo mercado para elites económicas (supostamente consciente e justo – o chamado conscious) enquanto mantém para a generalidade dos consumidores o mercado pré-existente. A moda de produção “ecológica” não corresponde a nenhuma alteração de fundo do modo de produção, mas sim à criação de um novo nicho de mercado, praticamente sem regulamentação e fiscalização em que é o próprio produtor que estabelece o que é ou não conscious, justo ou ecológico.
Da mesma forma, não é razoável nem justo que se combatam no território nacional explorações de recursos necessários para alimentar as necessidades de exploração de recursos naturais exacerbadas pelo modo de produção capitalista, sem ir a montante do problema e sem combater o fim de vida útil programado dos bens de consumo.
A indústria comandada sob as regras do modo de produção capitalista não incorpora os avanços científicos capazes de menorizar os seus impactos no globo e na saúde dos seres humanos, mas sim, as descobertas científicas que lhe permitem aumentar o lucro. É pois urgente criar normas e regras que sobreponham os valores da saúde, do bem-estar e do equilíbrio entre o Ser Humano e a Natureza à ganância e voracidade dos grandes grupos económicos.
A utilização do design é igualmente determinante. Ao invés de serem criadas peças com vista à maximização do número de utilizações e à plena concretização do fim a que se propõem, a apropriação capitalista das capacidades do design, aplica-o na produção de aparelhos em que os elementos estéticos se sobrepõem ao valor de uso e limitam objetivamente a durabilidade do artigo, por imposição de mercado e pela constante criação de novas vagas de design, cuja diferença para o anterior é, muitas vezes, também meramente estética.
Mas outras práticas ainda mais simples são utilizadas pelos grandes grupos económicos. Por exemplo: a simples eliminação da utilização de baterias substituíveis nos telemóveis e a sua substituição por baterias incorporadas; a utilização de peças incorporadas e praticamente insubstituíveis manualmente em inúmeros eletrodomésticos e outros dispositivos, entre muitas outras técnicas.
É hoje possível apurar o custo médio por utilização de um bem. Ou seja, é importante ter em conta que o preço global de um dispositivo ou bem, não aponta necessariamente para o preço real da utilização. Imaginemos um carro que custa o mesmo que um outro, mas que está programado – pela eletrónica e pelos materiais utilizados – para ser capaz de percorrer apenas metade dos quilómetros. Isso significa que o preço médio por utilização desse carro é, na verdade, o dobro do do outro. Assim, a ciência e a técnica podem ser também colocadas ao serviço da melhoria da perceção pública do preço de um bem e também ao serviço do aumento da longevidade dos bens.
Também a exigência legal que é colocada sobre cada mercado pode impedir os custos crescentes da obsolescência programada. Claro que o capitalismo é incompatível com a boa e racional utilização dos recursos naturais, na medida em que lucra com a sua destruição e apropriação, no entanto, cabe ao Estado limitar essa avassaladora concentração de lucros e proteger os consumidores e trabalhadores das práticas que são lesivas dos interesses comuns.
O presente projeto de lei pretende introduzir normas que atuam essencialmente sobre os produtores e o Estado. De acordo com os estudos realizados, a aprovação de regras que estendessem a longevidade – apenas de alguns dos dispositivos – em 5 anos no espaço da União Europeia representaria a diminuição de 12 milhões de toneladas anuais de equivalente-CO2. Se essa intenção fosse alcançada, isso seria equivalente a retirar quase 15 milhões de veículos movidos a combustíveis fósseis das estradas.
Assim, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República Portuguesa e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo-assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projeto de Lei.
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece medidas de promoção da durabilidade e garantia dos equipamentos para o combate à obsolescência programada dos bens de consumo corrente.
Artigo 2.º
Garantias de produto
- As garantias dadas pelos fabricantes de grandes e pequenos eletrodomésticos, viaturas e dispositivos eletrónicos têm a duração mínima de dez anos.
- É proibida a utilização de letras em tamanho diferenciado num contrato de garantia.
- O serviço de assistência técnica pós-venda é assegurado pelo produtor, ou pelo representante deste, pelo período previsto no n.º 1 do presente artigo.
Artigo 3.º
Normas de produção e montagem
- Os produtos cuja vida útil pode coincidir com a durabilidade total do produto devem ser projetados e construídos de forma a possibilitar a sua desmontagem e a substituição de componentes, devendo ser assegurada a disponibilidade de peças de substituição e acesso a manuais de utilização.
- Os produtos cuja vida útil pode estar condicionada por outros fatores além da durabilidade e resistência dos materiais devem ser concebidos de forma a possibilitar a sua adaptação estética, as atualizações de software e hardware, bem como a substituição de baterias e ecrãs pelo utilizador, quando aplicável.
- São proibidas linhas de código introduzidas na programação de qualquer aplicação que visem diminuir o tempo de vida útil ou a eficácia de um dispositivo, salvo nos casos em que tal funcionalidade seja referida e seja um objetivo publicitado da aplicação.
Artigo 4.º
Rede de reparadores locais
- O Governo deve promover a criação de um registo de reparadores locais, identificados por sector de atividade, apoiando a implementação de micro, pequenas e médias empresas acreditadas no âmbito da reparação.
- A acreditação dos reparadores locais é gratuita para as micro pequenas e médias empresas e assegurada pelos laboratórios do Estado competentes, em termos a regulamentar.
Artigo 5.º
Informação ao consumidor
- O fabricante deve publicitar, sempre que aplicável, o custo médio por unidade de utilização, medido em euros por unidade de tempo ou equivalente.
- Os produtores devem identificar o cumprimento de práticas ou técnicas utilizadas na conceção e produção de cada bem com vista ao incremento da sua longevidade e devem comprovar a não utilização de práticas de obsolescência programada.
- Para efeitos do disposto no número anterior, é definido um distintivo ou selo de qualidade para a longevidade, obtido com certificação das entidades públicas do Sistema Científico e Tecnológico Nacional adequadas, em termos a regulamentar.
Artigo 6.º
Relatório público anual
As entidades públicas do Sistema Científico e Tecnológico Nacional envolvidas nos termos do artigo anterior apresentam um relatório anual público conjunto sobre a aplicação da presente lei e o progresso realizado.
Artigo 7.º
Disposições transitórias
O disposto no n.º 1 do artigo 2º é concretizado nos seguintes termos:
- Quatro anos de garantia mínima obrigatória a partir de 2020;
- Cinco anos de garantia mínima a partir de 2022 e
- 10 anos de garantia mínima a partir de 2025.
Artigo 8.º
Regime sancionatório e contraordenacional
O não cumprimento do disposto na presente lei implica a aplicação de sanções e coimas, em termos a regulamentar.
Artigo 9.º
Instâncias internacionais
Tendo em conta a necessidade de articulação internacional, compete ao Governo negociar acordos, protocolos e outros mecanismos de cooperação e regulamentação internacional que visem atingir os objetivos da presente lei em todas as instâncias internacionais em que Portugal tenha assento.
Artigo 10.º
Regulamentação
O Governo regulamenta a presente lei no prazo de 90 dias após a data da sua publicação.