Intervenção de

Despenalização no 1.º trimestre de gravidez - Intervenção de Odete Santos na AR

Declaração política, em que a propósito da divulgação dos resultados de um estudo da Associação para o Planeamento da   Família (APF), sobre a interrupção voluntária da gravidez em Portugal, se defendeu que a despenalização no 1.º trimestre de gravidez contribuirá para a resolução de um problema de saúde pública

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O dia de ontem, na actualidade política nacional, ficou assinalado pela divulgação dos resultados do estudo encomendado pela Associação para o Planeamento da Família (APF) sobre a situação da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal.

Trata-se de um estudo importante, que supera estudos parciais que se foram fazendo. 

O estudo demonstra que:

A maior parte das mulheres não faz mais do que uma interrupção voluntária da gravidez na sua vida fértil e que, por isso, as mulheres tomam, afinal, decisões responsáveis e não consideram aborto um método de planeamento familiar;

A maior parte das mulheres considera o recurso à IVG como uma decisão difícil ou dificílima;

A IVG tem um peso importante na nossa sociedade;

As mulheres não tomam a decisão com ligeireza, pois as razões invocadas são sérias e não fúteis;

As circunstâncias que conduzem ao aborto atingem todos os níveis educacionais, todos os estratos económicos;

Uma percentagem elevada de mulheres, cerca de 20%, afirma ter tido complicações depois do aborto.

Está, pois, de parabéns a APF pelo estudo efectuado, que veio concretizar, de um modo mais geral, as ideias que iam resultando das realidades que se conheciam, a principal das quais é a de que estamos perante um problema de saúde pública.

Apercebi-me, num muito recente debate no Porto, que o «não» tem uma concepção de saúde pública de antanho, porque, segundo a pergunta feita, só as doenças contagiosas merecem - para eles - a sua inclusão no conceito.

Ora, não sendo o aborto contagioso, não caberia ao Estado qualquer obrigação nesta matéria.

Tratar-se-ia de episódios individuais a remeter para clínicas privadas - segundo o «não» - que, quando clandestinas, engrossariam os seus lucros com o encarecimento dos seus serviços à custa da maior perigosidade resultante da ameaça da repressão penal. Este conceito de saúde pública é um conceito arcaico, que quase faz rir.

Hoje, por exemplo, a saúde mental - e não consta que as doenças mentais sejam contagiosas - integra o conceito de saúde pública, o que acontece também com as consequências dos acidentes rodoviários, da violência doméstica e dos abusos sexuais de menores.

A saúde reprodutiva faz parte da saúde pública.

Mas este é um conceito moderno que não entra na cabeça daqueles para quem isso de sexualidade é coisa pecaminosa.

Mas é também com base na dimensão do fenómeno que o «não» tenta combater a integração deste problema na área da saúde pública, fazendo uma leitura vesga e incompleta, propositadamente vesga e incompleta, dos registos hospitalares, sem considerar o que, a respeito da construção das estimativas sobre aborto inseguro, refere a Organização Mundial de Saúde.

Estamos, de facto, perante um problema de saúde pública, que não pode ser debelado sem alteração da lei penal, que ajuda a fomentar o fenómeno, sem a efectivação do direito ao planeamento familiar, do direito à educação sexual, parte integrante do direito à educação, e sem a efectivação de políticas que promovam os direitos fundamentais das mulheres.

Hoje não é altura de um debate da campanha do referendo aí nessas bandas, Srs. Deputados!

O «não» pretenderia que nem sequer houvesse IVG legal, pretenderia que tudo fosse ilegal, aliás em consonância com a Conferência Episcopal Portuguesa, pois já não se gastaria um ror de dinheiro, segundo os seus cálculos, nos abortos legais, porque foram esses os cálculos que fizeram.

Mas «a segurança para a saúde das mulheres não é...» - como diz a CGTP - «... uma questão privada.

E as mulheres que recorrem à IVG não devem ser discriminadas nos cuidados de saúde, antes e depois do acontecimento.»

Basta ler o documento da CGTP, que tem o lema: «Pelo SIM a força de quem trabalha».

A argumentação economicista do «não» omite e engana, sendo, por isso, desonesta, porque deveria incluir os cálculos dos muitos milhões a mais que os hospitais gastariam e gastam para tratar as consequências do aborto clandestino. A Organização Mundial de Saúde refere, no Relatório de 2004, que só o número de dias de internamento por aborto clandestino pode ser cinco vezes superior ao de internamento por aborto legal. E o custo das transfusões de sangue, da ocupação do bloco operatório, do tempo de trabalho de médicos e parteiras e dos medicamentos?

E omite também que já se podem fazer IVG nos hospitais com a pílula RU 486, como o PCP preconizava em projecto de resolução apresentada há mais de um ano, que despertou o Sr. Ministro da Saúde para a necessidade de a introduzir em Portugal.

A argumentação do «não» é mais uma vez, uma argumentação antifeminina, pois despreza o sofrimento das mulheres que decidem recorrer à IVG e vota as mulheres ao ostracismo social.

Agora, o «não» argumenta com os gastos com a saúde das mulheres. Esqueceram-se das recomendações que lhes vêm dos EUA de que não se deve hostilizar as mulheres, para «levar a água ao moinho».

O PCP já está em força na campanha pelo «sim». Este é um problema que diz respeito a toda a sociedade e que, por isso mesmo, diz também respeito aos partidos políticos, que, constitucionalmente, têm a tarefa de contribuir para a formação da vontade política do povo.

Esta é uma questão política, e não poderia deixar de o ser, porque se trata de uma questão de direitos fundamentais das mulheres. Trata-se de uma questão fundamental do sistema político, porque, estando em causa esses direitos fundamentais, estão em causa as omissões do Estado quanto à «irrealização» desses direitos. Mas é também uma questão fundamental do sistema político, porque, ao fim e ao cabo, está em causa o estatuto de cerca de metade da população, o seu direito à dignidade.

Compreende-se que a Conferência Episcopal Portuguesa venha distorcer o que é óbvio, querendo transformar o problema político apenas numa questão de consciência, e veja-se a sua Nota de 10 de Outubro de 2006. Com isto prossegue dois objectivos: contornar a lei do referendo, que proíbe a sua intervenção, já que não se trataria - para eles - de uma questão política e, por isso, teriam mãos livres, e, por outro lado, pôr as pessoas a votar irracionalmente uma questão de política criminal.

O problema de consciência é das mulheres, quando decidem recorrer à IVG. Não se podem socorrer da sua consciência os Deputados quando votam a política criminal e não o podem fazer os eleitores.

O que se lhes pergunta não é se fariam um aborto, o que se lhes pergunta é se a lei penal que provoca problemas de saúde pública se deve manter.

O que se lhes pergunta não é se fazer um aborto é pecado, pois o pretor não cuida do pecado.

O recurso à consciência por parte de alguns políticos, porque também os há, mais não é do que um mero passa-culpas, para não perder ou para ganhar votos.

Combatendo a irracionalidade e o abuso da ciência por parte dos partidários do «não» - haverá lá maior abuso do que o cartaz que lançaram já nas ruas! -, trazemos para o debate a lucidez dos que compreendem que a resposta ao grave problema de saúde pública que temos só pode passar pela despenalização da IVG quando realizada no 1.º trimestre de gravidez, condição não suficiente, é certo, mas necessária.

O mundo civilizado já o compreendeu. Portugal há-de estar contra a barbárie.

(...)

Sr. Presidente,

Apraz-me verificar que a maioria da Assembleia da República está a favor da despenalização.

Não vou falar, outra vez, da questão do referendo, que V. Ex.ª, Sr.ª Deputada Ana Catarina Mendonça, entendeu colocar, pois votada que foi a proposta de resolução, as nossas forças - nossas, no PCP - juntam-se para combater os verdadeiros adversários da despenalização, que são os partidários do «não». Agora, é para aí que temos, efectivamente, de dirigir os nossos argumentos, para combater argumentos falaciosos e aquilo a que chamei o próprio abuso da ciência, porque o que está no cartaz sobre o bater do coração é um abuso da ciência, é um apelo à irracionalidade, e a ciência desmente o que lá está.

Por isso, temos de combater esses argumentos, essa história economicista, que considero muito grave, porque as contas que fizeram foi, segundo li num jornal, em relação aos abortos legais.

Ou seja, nem querem que haja IVG legalizada nos casos em que já existe!

É isso que não querem, no que confluem, aliás, com a Conferência Episcopal, que diz que não desiste de combater também a lei existente.

Por isso mesmo, temos de combater esses argumentos e tantos outros, a que já estamos habituados - já os ouvimos aquando do referendo de 1998 -, mas que vêm, agora, com pezinhos de lã e voz adocicada, como um senhor, dos Estados Unidos da América, do Instituto Elliot, lhes disse para fazerem - disse lá, aos Pastores pela Vida, e veio para cá -, ao referir que deveriam ter o cuidado de não hostilizar as mulheres, porque só assim é que se derrotaria o «sim». Portanto, agora, a voz é mais adocicada, mas a crueldade está por detrás desse verniz, a crueldade de não se importarem que o aborto seja clandestino, de saberem que continuará a haver abortos clandestinos, mas que vão para as clínicas privadas, que enriquecem, essas, sim, com o facto de o aborto ser clandestino, e enriquecem muito mais do que os senhores dizem, também para enganar a opinião pública.

Agradeço as referências que foram feitas à minha intervenção e constato, mais uma vez, em consonância, como terminei a minha declaração política - e é a resposta à ultima pergunta: Depois de 11 de Fevereiro, Portugal há-de ser contra a barbárie!

 

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