Sr. Presidente, Srs. Deputados:
O voto contra que o PCP acaba de expressar é, antes de tudo, o voto contra esta cerimónia, abusivamente designada de votação final global do decreto de revisão constitucional.
Trata-se, como demonstrámos na altura em que foi discutido o regimento especial, de um acto sem qualquer fundamento constitucional ou regimental.
Nem os mais entusiásticos defensores desta votação final foram capazes de demonstrar a sua justificação jurídico-constitucional, limitando-se apenas a aduzir em seu apoio argumentos baseados em mesquinhos interesses político-partidários.
A nosso ver, fica assim plenamente confirmado estarmos perante um flagrante desvio de poder em que a Assembleia da República é utilizada para registar acordos extraparlamentares, para servir de cartório notarial para a escritura pública do pacto, resultante da chamada cimeira de S. Bento, entre a direcção do PS e a AD e de outros acordos firmados entre as mesmas partes.
Ninguém põe - nem pode - pôr em dúvida que o poder de revisão constitucional se exerce e se esgota na votação artigo a artigo das propostas de eliminação, substituição, emenda e aditamento.
A tarefa da Assembleia da República na revisão constitucional terminou quando foi votada a última das disposições transitórias. Esta votação está a mais, é ilegítima, inquina a legalidade da revisão e põe em evidência o carácter antidemocrático do processo seguido.
A nossa presença aqui e o voto contra que acabamos de exprimir constituem a melhor forma de manifestarmos no quadro das instituições democráticas o nosso repúdio por uma operação em que precisamente as instituições democráticas são utilizados e subalternizadas sem escrúpulos ao serviço de propósitos antidemocráticos.
O voto contra do PCP exprime também o protesto contra o modo afrontoso como a revisão foi imposta pela AD e pela direcção do PS à Assembleia da República, ao regime democrático e ao País.
Protesto contra as tentativas de furtar ao conhecimento do nosso povo o que estava em causa na revisão constitucional, designadamente através da ausência de uma discussão prévia em plenário e da não permissão da presença dos órgãos de comunicação social nos trabalhos da Comissão, o que lhe conferiu um carácter reservado e sigiloso.
Protesto contra os acordos feitos pelos estados-maiores do PS e da AD à margem da Assembleia da República e ditados para a acta, muitas vezes sem qualquer discussão.
Protesto contra a marcha forçada em que foi transformada a discussão no plenário, com a imposição de draconianas limitações de tempo que efectivamente reduziram ao silêncio durante grande parte dos trabalhos os deputados e os partidos que, por estarem fora e contra os acordos da direcção do PS e da AD, mais tinham a dizer. Tal foi a situação em que se viu colocado o Grupo Parlamentar do PCP.
Protesto contra o carácter antidemocrático que os parceiros do pacto da revisão de 1982 impuseram aos deputados dos seus próprios partidos, que muitas vezes votaram coagidos, como consta das suas declarações de voto.
Protesto contra a arrogância de uma maioria numa Assembleia que já não corresponde ao sentir político do País, como a vida nacional exuberantemente demonstra, se permite introduzir alterações tão profundas e tão perigosas na lei fundamental.
Mas o voto do PCP é, acima de tudo, um voto contra os aspectos substanciais que marcam o sentido político desta revisão da Constituição.
O PCP vota claramente o que, através da revisão, é introduzido na Constituição, com vista a miná-la e a destruí-la e, em consequência, minar e destruir o regime democrático.
Estes aspectos, particularmente nocivos e perigosos da revisão, concentram-se nas alterações que foram introduzidas na organização do poder político e no sistema de controle da constitucionalidade das leis, bem como nas normas transitórias directamente relacionadas com estas 2 áreas da Constituição.
As alterações da Constituição a que nos referimos são, em síntese, as seguintes: a extinção do Conselho da Revolução, sem que hajam sido asseguradas soluções substitutivas para as suas funções capazes de assegurar a defesa do regime democrático; a transferência da escolha das chefias militares do Presidente da República para o Governo, a atribuição ao Governo de competências militares fundamentais que cabem actualmente ao Presidente da República e ao Conselho da Revolução, a consagração de soluções que visam a liquidação da autonomia constitucionalmente reconhecida às forças armadas; a diminuição de outros poderes do Presidente da República, com a adulteração do princípio da dupla responsabilidade política do Governo (perante o Presidente da República e perante a Assembleia da República) e o condicionamento imposto aos seus poderes de demitir o Governo e de dissolver a Assembleia da República; a composição do Tribunal Constitucional, cuja designação compete apenas directa e derivadamente à Assembleia da República, o que abre claramente o. caminho à preversão do controle da constitucionalidade; a criação de um período de transição, temporariamente indefinido, com a acintosa e antecipada extinção do Conselho da Revolução, em manifesta violação do pacto MFA-Partidos de 1976 e o estabelecimento de uma situação de vazio em relação a algumas das suas capitais funções, como a do controle da constitucionalidade das leis e da administração das forças armadas.
Na prática, estas alterações traduzem uma profunda modificação no sistema do poder político até hoje vigente e podem conduzir, se levada às últimas consequências, à sua completa subversão.
Com efeito, as actuais forças políticas que detêm o Governo e a maioria na Assembleia da República -isto é, a AD- ganham poderosos meios para se conservar e se prolongar no poder: quanto à sua posição no Governo, ganham o que o Presidente da República perde nos poderes de demitir e de pedir contas ao Governo; em relação à sua posição maioritária na Assembleia da República, ganham com o novo condicionamento do poder de dissolução pelo Presidente da República; em relação às forças armadas, ganham para já a escolha das chefias militares e têm a porta aberta para ganhar a organização, a administração, as promoções, tudo o que já foi configurado por Freitas do Amaral, até à própria nomeação dos comandos de unidades; ganham, enfim, com o facto de o empenhamento das forças armadas na defesa e consolidação da democracia, que é assegurado pelo Conselho da Revolução, com a extinção deste e a ameaça de subordinação ao Ministro Freitas do Amaral, deixar de ser encorajado a partir do Estado e tender a ser substituído pelos incentivos à conspiração militar contra o regime democrático e o movimento dos trabalhadores; em relação à fiscalização da constitucionalidade, ganham com a extinção do Conselho da Revolução, que exerce essa função no sentido de garantir o prosseguimento do 25 de Abril, e ganham com a sua substituição por um Tribunal Constitucional, que se vier a ser constituído na base do acordo global AD-PS para consumar a revisão constitucional corre sérios riscos de vir a ser dominado por uma visão contrária à Constituição, às conquistas dos trabalhadores, ao 25 de Abril; e, por sobre tudo isto, ganham um período de transição em que ficam com as mãos bastante livres para preparar a operação da tomada total de todos os poderes do Estado sem qualquer contrabalanço.
Estas profundas e graves alterações na organização do poder político do Estado são, pois, muito no concreto como se viu, um serviço à AD e a todas as forças que querem restaurar os monopólios e liquidar o regime democrático.
É por isso que, conhecido o carácter antidemocrático da actuação de coligação governamental, amplamente demonstrada ao longo dos dois anos e meio que leva à frente do executivo, é nossa obrigação denunciar perante o País que alterações tão profundas e a transferência directa de uma tão larga soma de meios, de instrumentos e de poderes para as mãos da actual maioria da AD reforça o risco de um verdadeiro golpe de Estado contra o regime democrático.
A revisão constitucional não é só isto. Mas esta é a sua grande novidade. São estas alterações que determinam o seu sentido e que implicam gravemente com os destinos da democracia e o futuro político do nosso povo e do nosso país. Por isso, o voto do PCP não podia ser outro senão o voto contra.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ao contrário do propalado pelas forças reaccionárias, o voto contra do PCP agora expresso não resulta de uma posição contrária a toda e qualquer revisão constitucional. O PCP defendeu sempre uma revisão constitucional da Constituição e nesse sentido apresentou o seu próprio projecto de revisão constitucional.
Concluída este revisão, o voto contra do PCP não é um voto contra toda a revisão.
Desde logo, o PCP não votou contra, não podia votar contra, as alterações que decorrem das suas próprias propostas, do seu projecto de revisão constitucional. Foi por proposta ou com o contributo originário do PCP que foram, por exemplo, limitadas as possibilidades de restrição por lei ordinária dos direitos dos cidadãos, aperfeiçoado o regime da sua protecção jurídica, designadamente em matéria criminal, consagrados novos direitos em matéria de comunicação social (nomeadamente direitos fundamentais dos jornalistas), conferida dignidade constitucional à protecção dos representantes dos trabalhadores, consagrados novos direitos sociais anteriormente configurados como meras obrigações do Estado, constitucionalizados direitos fundamentais dos partidos e, em particular, dos partidos de oposição, introduzidos aperfeiçoamentos no regime dos actos normativos, no estatuto da Assembleia da República, nas garantias dos cidadãos perante a Administração Pública, no regime da função pública e nas autonomias locais e regionais.
Por outro lado, o PCP votou a favor, designadamente, da clarificação da aplicabilidade aos direitos fundamentais dos trabalhadores do mesmo regime de protecção dos direitos, liberdades e garantias; aprovou todos os aperfeiçoamentos à protecção constitucional dos cidadãos, dos consumidores, do património cultural; votou todas as alterações positivas ao estatuto da Assembleia da República e ao regime do poder local e regional.
Em aspectos importantes, a Constituição de 1976 não foi adulterada, foi defendida. Não se pode deixar de lamentar, entretanto, não terem sido aprovadas algumas importantes propostas do nosso projecto.
Não podemos deixar ainda de considerar negativas, por outro lado, outras alterações aprovadas, tais como as cláusulas fixadas em nome da adesão à CEE; a imposição do direito de tendência sindical o âmbito e os termos de restrição de direitos fundamentais de militares e agentes militarizados; as alterações em matéria de processo criminal no tocante à instrução preparatória; a extinção dos conselhos de informação e sua substituição por um conselho cujas regras de composição não dão garantias de cumprimento da sua missão constitucional; as alterações em matéria de Reforma Agrária; a supressão da possibilidade de expropriação sem indemnizações dos grandes capitalistas e latifundiários; as limitações à autogestão; as alterações relativas ao Plano; o golpe vibrado contra os conselhos municipais, e a porta aberta à executivização do poder regulamentar autárquico.
Mas não são estas alterações - as positivas e as negativas - que determinam modificações qualitativas no texto constitucional.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A Assembleia da República não votou - nem podia votar - uma nova Constituição. Da lei de revisão agora aprovada resulta, é certo, um péssimo enxerto na Constituição de 1976. Mas são ilegítimas todas as tentativas de, a partir da revisão, proclamar uma solução de continuidade constitucional, uma nova Constituição. E é igualmente ilegítimo considerar indirectamente alteradas normas, preceitos, regras e princípios que o não foram.
Continua a ser inconstitucional qualquer lei que vise a liquidação da Reforma Agrária e a reconstituição dos latifúndios, como inconstitucional é a prática governativa que prossiga esses fins.
Continua a ser inconstitucional qualquer lei que vise a destruição das nacionalizações, a reconstituição da banca e dos seguros privados, como inconstitucionais continuam a ser as tentadas leis dos sectores dos governos Sá Carneiro e Balsemão.
Continua a ser inconstitucional qualquer lei que descaracterize o controle da gestão, como inconstitucional continua a ser a prática governamental contra esta conquista dos trabalhadores e o impedimento da tomada de posse e livre actuação dos gestores eleitos.
Continua a ser inconstitucional qualquer lei que vise restringir ou condicionar o direito à greve, como inconstitucionais são as práticas governativas da AD, como as que foram postas em prática durante as greves gerais de 12 de Fevereiro e 11 de Maio.
Continuam a ser inconstitucionais diplomas que visem a liberalização cão dos despedimentos (como a famigerada proposta de lei n.º 70/11) e em geral a alteração da legislação laborai a favor do patronato.
Inconstitucionais também a legislação de burla eleitoral (do tipo da lei eleitoral para as autarquias), o pacote antiautárquico, e todas as práticas governativas tendentes à limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, ou ao esvaziar dos seus direitos sociais (como o direito à saúde, assegurado pelo Serviço Nacional de Saúde, o acesso a todos os graus de ensino, o direito à habitação, entre tantos outros).
Mas pergunta-se entretanto: que Tribunal Constitucional vai fiscalizar a nova legislação produzida nestas importantes e fundamentais matérias? E pergunta-se também: em que mãos vão ficar as forças armadas para o cumprimento das suas missões constitucionais?
Tal é o propósito verdadeiramente golpista contido na revisão que acaba de ser votada. Este carácter pode ter escapado e escapar ainda a muitos sectores da opinião pública, mas conhecem-no obrigatoriamente todos os deputados desta Assembleia. O seu voto representa, pois, a assunção de uma pesada responsabilidade que não pode ser iludida.
A AD não conseguiu realizar a revisão constitucional que pretendia. É um facto.
A AD não conseguiu extrair da Constituição o princípio da eliminação dos latifundiários nem o principio da irreversibilidade das nacionalizações.
Foi derrotada na sua tentativa de eliminar a consagração constitucional do controle de gestão, viu rejeitadas as suas propostas de restrição constitucional do direito à greve, como rejeitadas foram outras propostas contra os interesses dos trabalhadores e do povo em geral (de que é exemplo a tendente à destruição do Serviço Nacional de Saúde).
A AD não obteve o referendo antidemocrático, a destruição de barreiras constitucionais contra a burla eleitoral, a liquidação dos limites materiais de revisão do artigo 290.º, que sintetiza - e continuará a sintetizar - os princípios fundamentais do regime democrático.
E para quem tenha dúvidas sobre a verdadeira natureza da AD e do seu projecto, importa aqui registar e relembrar que é contra a sua vontade que se mantém na Constituição a proibição das organizações que perfilhem a ideologia fascista.
Mas a AD conseguiu uma revisão da Constituição que, aqui e lá fora, aplaude festivamente. Conseguiu na revisão atingir alguns dos seus objectivos essenciais, especialmente novos meios e instrumentos poderosos, através dos quais vai procurar levar à plena concretização, por outra forma, o seu plano contra as conquistas populares e o regime democrático.
A AD conseguiu isto, graças à prestimosa colaboração do PS. Numa linha de cedências em matéria constitucional que vem desde a contra-revolução legislativa de 1977, sempre com o argumento de que é necessário ceder à direita para conservar a democracia - e que no processo de revisão constitucional passou pela fórmula da «revisão a todo o custo», de «desbloquear o processo» porque a reacção estava interessada no impasse da direcção do PS, sempre argumentando que cede ao acessório para salvar o essencial-, acabou por ceder à AD na revisão constitucional aquilo que permite pôr em causa toda a Constituição e o regime democrático nela consagrado.
Colocada na conjuntura política portuguesa, na posição essencial de deter as chaves do processo de revisão constitucional, o PS cedeu às forças de direita não as chaves de penetração em todas as salas, mas as que dão acesso aos paióis; às camaratas e às posições mais estratégicas da fortaleza da democracia portuguesa.
A ninguém pode enganar a proclamada exigência do PS de demissão do Governo e dissolução da Assembleia da República quando através dos acordos feitos com a AD para as disposições transitórias os dirigentes socialistas manifestamente prolongam a sua aliança com a coligação governamental e criam uma teia de metas e prazos legislativos que, mais do que provocar a queda da AD, parecem destinados a escorá-la por longo tempo no poder.
Os projectos que os líderes da AD não têm rebuço em anunciar, em relação à governamentalização e instrumentalização das forças armadas, àquilo a que chamam «nova organização económica» (com a banca e seguros privados e o encerramento de empresas públicas), a nova legislação laborai ao serviço do patronato, o plano subversivo sintetizado nas 26 medidas anunciadas pelo governo Balsemão, a presente ofensiva do Governo e do patronato contra os trabalhadores, a escandalosa operação tendente à extinção da ANOP, mostram como a direita se sente forte nas novas posições alcançadas e como pretende explorá-las rapidamente para a plena concretização do seu plano contra o 25 de Abril.
Neste quadro assumem uma grande importância as leis de desenvolvimento da revisão constitucional. A revisão da Constituição, tal como acaba de ser feita pela Assembleia da República, é má mas pode tornar-se ainda pior, particularmente com a legislação prevista nas disposições transitórias relativa à defesa nacional, à organização e funcionamento das forças armadas e à organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.
Esgotando-se todas as formas de acção contra a consumação e entrada em vigor da revisão golpista da Constituição, a luta para impedir novas cedências à AD na legislação sobre estas matérias, bem como na composição concreta dos órgãos a instituir na sequência da revisão, tornar-se-ão terreno privilegiado da batalha das forças democráticas e do movimento popular.
Particular vigilância é exigida às forças democráticas durante o nebuloso e indelimitado período de transição que se abrirá com a extinção do Conselho da Revolução, o vazio na administração militar propício a usurpações indevidas e perigosas, a liquidação do controle preventivo da constitucionalidade. A situação assim criada constitui um terreno propício a arbitrariedades, manobras e golpes contra o regime e as instituições democráticas, contra o movimento popular e os direitos dos cidadãos.
A revisão da Constituição põe nas mãos das forças reaccionárias armas perigosas para actuarem .contra a democracia e contra as conquistas do 25 de Abril. Mas a Constituição continua a proporcionar um vasto terreno e meios poderosos para o movimento popular e democrático desenvolver a luta em defesa das suas principais conquistas e do regime democrático. É altura de dizer: se há aí quem pense que a revisão da Constituição desarmou o movimento popular de um quadro institucional, desiludam-se! Esse quadro subsiste. Contra todas as dificuldades, a luta continua.
A revisão da Constituição que há pouco foi concluída na Assembleia da República vai ao encontro de interesses fundamentais da AD e por isso mesmo é tanto mais nociva quanto mais a AD se mantiver no poder. A luta para afastar a AD do poder, através da demissão do Governo e da dissolução da Assembleia da República, mantém toda a actualidade e ganha novas razões a partir de agora.
Raramente terá sido tão legítimo, necessário e urgente reclamar que seja dada a palavra ao povo português para que traga aqui uma maioria democrática capaz de minorar os perigos desta revisão e encaminhar Portugal pelos caminhos abertos pelo 25 de Abril.
Com o seu voto contra, o PCP quer precisamente significar: que a revisão da Constituição comporta dispositivos que ameaçam gravemente o regime democrático, mas que os comunistas portugueses têm uma confiança inabalável em que as forças democráticas, principalmente o movimento operário e popular, não consentirão que a reacção faça uso desses dispositivos como pretende e saberão e terão força bastante para defender a democracia em Portugal.