Intervenho nesta reunião plenária em nome do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português com dois objectivos claramente diferenciados: por um lado para assinalar a passagem do 20º aniversário da votação e aprovação da Constituição da República; e por outro, para apresentar à Assembleia da República a posição do PCP face ao próximo pro- cesso de revisão constitucional.
Assinalamos os vinte anos da vida da Constituição da República para reafirmarmos o nosso compromisso com o seu conteúdo de democracia e de progresso. Repetimos aqui o que em 2 de Abril de 1976, nesta mesma sala, foi afirmado em nome do PCP: que a Constituição aprovada é uma " Constituição democrática e progressista" que " o PCP respeitará e defenderá".
A Constituição da República aprovada em 1976 não é um texto apropriável seja por quem for. Cito novamente a declaração de voto que aqui formulamos há vinte anos: " o PCP não reivindica a Constituição como propriedade sua, nem a lê por metade" Mas, se a Constituição não é apropriável, também não é, um texto neutro.
É a Constituição que consagrou a ruptura com o regime fascista de Salazar/Caetano, e que definiu os contornos e as metas caracterizadoras do regime democrático emergente da Revolução de Abril. É a Constituição do 25 de Abril !
Desde a primeira hora que era claro que o conteúdo de democracia e de progresso da Constituição tinha a clara oposição da direita. Por isso como referimos na declaração de voto de há vinte anos, " as forças da direita tentarão reduzi-la a um mero papel a ser rasgado e violado" E acrescentámos: " Nós sabemos que as forças conservadoras a sentem como um obstáculo aos seus desígnios; por isso será parte da nossa luta, e tudo faremos para que seja parte da luta do povo português o combate pela sua defesa e pela sua aplicação efectiva, firme e intransigente" ( todas as citações são do Diário da Assembleia Constituinte, nº 132, pag. 4.439 e 4440, declarações de voto do PCP).
Passados estes vinte anos, o que se pode dizer é que na realidade o povo português tomou claramente nas suas mãos a defesa da Constituição e a luta pela sua aplicação concreta e efectiva; mas foram o PS e o PSD, com o apoio activo do CDS/PP, o partido que votou contra a Constituição e sempre esteve contra ela, quem em sucessivos processos de revisão foram amputando a Constituição da República à medida dos desejos e necessidades da política da direita e da restauração dos privilégios do poder económico.
Foi este o sentido fundamental das leis de revisão constitucional aprovadas. E se apesar dessas leis a Constituição ainda inscreve em termos globais o sentido da ruptura, da transformação e de progresso que lhe advêm da Revolução do 25 de Abril, a verdade é que ela ficou depois dessas leis notoriamente mais pobre e menos democrática. E quando dizemos que a Constituição ficou mais pobre, isso significa que foi o regime democrático e o nosso povo que perderam com as revisões da Constituição importantes e decisivos instrumentos jurídicos para defesa das transformações que o 25 de Abril consagrou, particularmente no campo da democracia económica e social. Para o demonstrar, basta olhar à volta, e ver os velhos senhores do capital, os mesmos que sustentaram o regime fascista e que beneficiaram dele para um brutal processo de exploração e acumulação, voltarem à ribalta do poder económico, e com tanto poder económico que cada vez mais condicionam e subordinam o poder político, numa clara inversão do que é um dos mais importantes patrimónios do 25 de Abril que a Constituição da República consagrou.
Precisamente porque a Constituição, apesar de drasticamente empobrecida nos processos de revisão, ainda conserva, como já referi, em termos globais, o seu sentido originário de transformação e progresso, ela continua a ter a completa oposição da direita portuguesa. Melhor prova não pode haver do que o conteúdo dos projectos apresenta-~ dos, pelo PP e pelo PSD para o actual processo de revisão constitucional, que representam tantas e tão substanciais alterações que sem dúvida o sentido global da Constituição seria sub- vertido e teríamos não uma revisão constitucional mas outra Constituição.
O PP leva isto até ao último limite, por tal forma que até o preâmbulo da Constituição e portanto a sua referência histórica desapareceria.
O projecto de revisão do PS apresenta-se com uma configuração marcadamente diferente. Mas se se olhar o seu núcleo duro, isto é, as normas de alterações dos sistemas eleitorais para os órgãos de soberania e de poder local, constata-se que ele abre para a subversão de uma das mais importantes características do regime, a da eleição desses orgãos pelo sistema de representação proporcional, que aliás constitui limite material de revisão.
Desta forma, o processo de revisão constitucional não se anuncia como um processo de aperfeiçoamento da Constituição e de aprofundamento das suas características. Olhando os projectos do PS e do PSD, partidos que somam os dois terços necessários para a revisão e que o somam sozinhos com exclusão dos outros partidos, não é difícil adivinhar o campo de conjugação dos esforços e dos votos para ferir o sistema de representação proporcional, quer na eleição da Assembleia da República quer na eleição das câmaras municipais.
O sistema de representação proporcional é a base indispensável e insubstituível para assegurar a representação das diferentes forças políticas em correspondência com a vontade do eleitorado. É o esteio indispensável e insubstituível de uma composição democraticamente legitimada da Assembleia da República ( e, no poder local, das câmaras municipais).
Por isso, a subversão do princípio da representação proporcional seria um gravíssimo atentado à Constituição de 1976 e aos seus limites materiais.
É isto que inquina esta sessão dita comemorativa do 20º aniversário da Constituição. Comemorar a aprovação da Constituição aprovando uma Comissão Eventual tendo por objecto uma anunciada intenção de atingir o património da Constituição e determinadas das suas características fundamentais, é, no mínimo, de um chocante mau gosto.
Esperam-se naturalmente os discursos que em nome dos chavões da moda, tendo à cabeça esse pau para toda a obra que é a " modernização", vão assinalar esta "coincidência", que eles próprios criaram , de se comemorar a Constituição modificando-a.
Evidentemente que todas as obras humanas podem ser sempre aperfeiçoadas, como também é evidente que há todos os dias novos problemas e desafios a reclamarem respostas.
Precisamente por isso, da nossa parte apresentamos um projecto de revisão, com propostas importantes, de que assinalo o referendo para tratados como o de revisão do Tratado de Maastricht, a concessão de iniciativa legislativa e de referendo aos cidadãos, aperfeiçoamentos nos direitos fundamentais dos cidadãos, novos direitos sociais e dos trabalhadores, mais intervenção e eficácia da Assembleia da República, e de muitas outras que não cabe aqui explicitar.
Partimos para este processo de revisão com o espírito de procurar fazer vingar estes aperfeiçoamentos ou outros que estejam ou venham a ser propostos.
O PCP intervirá assim activamente neste processo de revisão constitucional.
Mas partimos também com o espírito de combater as violações dos limites materiais de revisão e todas as alterações que empobreçam e violem as regras fundamentais da democracia, incluindo o sistema de representação proporcional.
Porque, se as obras humanas podem ser aperfeiçoadas, o que se procura com esta revisão não é o aperfeiçoamento da Constituição, mas a subversão de algumas das suas marcas identificadoras.
Fala-se a este propósito da reforma do sistema político e invoca-se uma maior aproximação entre eleitores e eleitos. É espantoso que para aproximar eleitores e eleitos se queiram sistemas eleitorais que permitem que PS e PSD com menos votos possam ter mais Deputados; ou que permitam que determinada força com significativa expressão eleitoral não tenha qualquer representação no orgão eleito, ou uma representação muito inferior à sua expressão eleitoral.
Há de facto um grande fosso entre eleitores e eleitos. Mas ele não resulta do sistema eleitoral. Resulta das promessas não cumpridas e das políticas erradas e lesivas dos interesses populares. E essa é a responsabilidade de quem tem sido governo ao longo destes anos.!
Esta revisão constitucional promete vir a ser animada pela lógica da criação de factos políticos.
No discurso final do Congresso que o elegeu, o novo líder do PSD falou da revisão constitucional para afirmar três coisas, que aqui refiro por ordem inversa de importância.
Primeiro que achava pouca a cedência que o PS já fez em matéria de voto dos emigrantes nas presidenciais. Como o PS já entreabriu a porta, não se irá espantar que o PSD agora meta o pé e empurre.
Em segundo lugar, o PSD quer que o PS desagende o debate dos projectos de criação das regiões até à votação da revisão constitucional. A questão é apresentada sob a forma rude de uma chantagem: ou o PS cede, ou não há revisão. Ora, como a chantagem é crime, bem se pode dizer que o novo líder do PSD começa o seu mandato a trilhar a senda do crime. Como mandam as regras, à chantagem responde-se com um não claro e frontal.
A terceira afirmação, a mais importante, foi a de que o PSD queria uma revisão rápida e se disponibiliza- va para isso. Claro que a subsistência de um pro- cesso de revisão não se coadugna com a veia oposicionista que o PSD diz querer assumir e que tão difícil já é, face à política económica e social do governo.
Por isso, o PSD quer um conflito a propósito da revisão ( aí está a regionalização), mas também a quer rápida. É a revisão do Rebelo de Sousa em estilo Aikido, uma paulada brusca e certeira.!
O PS em resposta não deixará aqui de falar mais uma vez na sua abertura a toda a gente para concretizar a revisão. O problema é que para a tal paulada,do PSD, o PS só conta com a direita, com o seu parceiro PSD à frente.
Se e quando quiser defender a Constituição e aprofundar a democracia em todos os seus planos, político, económico, social e cultural, então sabe que o PCP está e estará sempre empenhado e disponível.
Pela Constituição do 25 de Abril!