O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português expressou o seu voto favorável ao presente Relatório por considerar que o seu texto traduz de forma fiel e objectiva o conjunto dos elementos e factos que decorrem dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito ao processo que conduziu à venda e resolução do Banco Internacional do Funchal (BANIF).
Quer no que respeita à identificação de responsabilidades políticas e de entidades de supervisão, quer no que se refere às práticas da instituição bancária em causa, o relatório é bastante detalhado, quebrando inclusivamente uma prática comum de sucessivos relatórios apresentados em Comissões de Inquérito que consiste em não apontar responsáveis concretos nas esferas políticas.
O Relatório descreve com objetividade os factos e igualmente releva dúvidas que possam ter persistido na sequência dos trabalhos da Comissão sobre matérias fundamentais que importará ainda clarificar. Essa clarificação, independentemente dos moldes em que possa vir a ser realizada, torna-se em parte possível por força do contributo que esta Comissão e o Relatório produzem.
A banca privada, por força do seu modelo de negócio e das práticas de remuneração imediata de acionistas, sem ponderação dos riscos presentes e futuros, representa um instrumento crucial e simultaneamente muito instável para as economias. A banca privada realiza todo um conjunto de práticas - detalhadas em sucessivos relatórios de comissões de inquérito da Assembleia da República - sem qualquer controlo público.
I. A farsa da supervisão - biombo e obstáculo
A existência do supervisor não se demonstrou suficiente em nenhum dos casos de colapso bancário em Portugal e no mundo e nem mesmo a adoção de uma postura de "supervisão intrusiva" introduziu alterações significativas no sector financeiro. A Comissão de Inquérito demonstrou que existiram inúmeras falhas de supervisão, mas também ilustra como nos momentos em que a supervisão funcionou como a lei determina e cumpriu o seu papel nos termos das competências que lhe são atribuídas no contexto nacional e europeu, não foram produzidos efeitos sensíveis no que respeita à prevenção de problemas e salvaguarda do interesse público e da estabilidade do sistema financeiro.
A comissão também apurou que o Banco de Portugal acompanhou de perto todo o processo de capitalização, mas sempre foi capaz de ocultar a realidade do conhecimento público até ao ponto de não retorno, no mês de Dezembro de 2015.
II. A responsabilidade política dos sucessivos Governos
Não se pode atribuir a um governo específico a situação latente no conjunto dos bancos privados portugueses e que perturba a capacidade de financiamento da economia e do consumo, limita e condiciona a concessão de crédito, mas pode atribuir-se às opções políticas de sucessivos governos que abdicaram de forma crescente do controlo público sobre a banca. Essas opções traduziram-se na privatização da banca, por um lado, e na cedência de soberania nacional para instituições supranacionais, no caso não eleitas. Ao processo de privatização da banca e de entrega dos destinos do país a interesses que lhe são alheios, acresce a política de desindustrialização e destruição da produção nacional, acompanhada de uma desvalorização constante do trabalho em benefício do capital. Essa constante desvalorização provocou uma substituição dos salários por crédito para fazer face às necessidades dos cidadãos, num contexto de concentração da atividade económica no sector da construção civil e em atividades não produtivas. Esses processos são e foram resultado de opções políticas concretas de Governos de PS e PSD, com ou sem a presença do CDS.
Mas se o relatório não identifica essas responsabilidades que são de facto o substrato em que o comportamento da banca privada se desenvolve, identifica as que se relacionam especificamente com a degradação da posição de capital do BANIF logo após 2011, que se prolongam até à recapitalização de 2013 e que, não tendo uma solução estrutural, provocam a liquidação da instituição BANIF com a aplicação da medida de resolução em Dezembro de 2015. E nessa matéria o Relatório é claro ao apontar a administração do Banco, o supervisor e o XIX Governo Constitucional como responsáveis pela degradação da situação do banco e pela limitação de opções para salvaguardar o interesse público, opções essas que se iam reduzindo à medida que o tempo corria. Sobre isso, relembramos nesta Declaração de Voto que o Governo PSD/CDS não se limitou a permitir que o tempo passasse sem fazer valer os instrumentos de controlo público de que dispunha, como ocultou da Assembleia da República e do conhecimento público a situação da instituição e as negociações que ia levando a cabo com as instituições europeias.
Do ponto de vista do relevo político, é importante destacar as responsabilidades do Ministério de Estado e das Finanças do XIX Governo Constitucional: primeiro dirigido por Vítor Gaspar, hoje funcionário do Fundo Monetário Internacional; depois por Maria Luís Albuquerque, hoje administradora não executiva da Arrow Global, empresa que negociava carteiras de crédito com o BANIF no tempo em que a ex-ministra era a representante máxima do maior acionista – o Estado. Essas responsabilidades traçaram um quadro que se foram consolidando e fechando possibilidades: em primeiro lugar, Vítor Gaspar optou por não ativar um instrumento recomendado pelo Governador do Banco de Portugal (tomar controlo público total sobre a instituição) e, mais tarde, Maria Luís Albuquerque decidiu não acionar a cláusula por incumprimento materialmente relevante que permitiria a conversão de capital contingente em capital da instituição, optando por defender o interesse do acionista privado em detrimento do interesse público, sem prejuízo de ter assumido o compromisso de proceder a essa conversão assim que o BANIF incumprisse os prazos inicialmente previstos para o reembolso desses títulos contingentes.
III. Responsabilidades na aplicação da medida de resolução ao BANIF
Sobre a aplicação da medida de resolução, o relatório também faz uma descrição factual do processo, pelo que importa apenas associar o Partido Comunista Português à defesa do objectivo de integração do negócio do BANIF no sistema público bancário e deixar clara a sua divergência com a solução encontrada que se traduziu na entrega de 3,3 mil milhões de euros a um gigante bancário, o Banco Santander Totta. Essa solução, que resulta de constrangimentos impostos e de opções políticas que demonstram bem o pendor e a orientação das instituições europeias que são reconhecidas pelo relator, não deixam de ser igualmente o resultado de uma ação governativa concreta, que articula o XXI Governo Constitucional com o Banco de Portugal, como autoridade de Resolução. Ou seja, se é verdade que a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu agiram na defesa do interesse dos grandes bancos europeus, não o é menos que o Governo de Portugal decidiu aceitar as imposições, sem sequer efetuar um protesto formal ou informal. O custo dessa operação de entrega do BANIF ao Banco Santander Totta recai sobre os portugueses, como aliás já sucedera no caso do BPN, do BPP e do BES, e é da exclusiva responsabilidade dos que criaram a situação (Governo PSD/CDS) e dos que decidiram viabilizar o Orçamento Retificativo de 23 de Dezembro de 2015 (PS, que votou a favoravelmente e PSD, que se absteve).
IV. O enquadramento político e económico; o sistema financeiro no contexto do capitalismo atual
O sistema financeiro é um instrumento absolutamente incontornável para o funcionamento das atividades humanas tal como as conhecemos hoje e deve estar subordinado às necessidades dos povos, no caso, do povo português. A utilização do sistema financeiro como mero instrumento de remuneração imediata de banqueiros e grandes acionistas, bem como de direcionamento do fluxo de crédito para partes relacionadas ou para grupos monopolistas que mantêm com a banca relações privilegiadas é resultado da submissão do poder político ao poder económico e é um entrave objectivo para o desenvolvimento económico, social, político e cultural de cada país. Portugal tem vindo a testemunhar, desde a privatização da banca - que se inicia em meados dos anos 80 e termina no início dos anos 90, durante os governos de Mário Soares (PS) e de Cavaco Silva (PSD) - uma cada vez maior limitação das opções do Estado, por ter abdicado de deter essa alavanca fundamental da economia que é a banca. Essas opções vêem implicando uma crescente dependência dos desígnios e caprichos dos grandes grupos económicos e, como consequência, uma cada vez maior exposição dos recursos públicos aos ciclos de instabilidade financeira e agitações no sector bancário.
A recusa de assumir o controlo público da banca, independentemente da forma por que se concretize, assenta no alinhamento dos sucessivos governos da República Portuguesa com as normas ditadas pelos grandes grupos económicos, com a União Europeia à cabeça do cortejo de monopólios para institucionalizar essas normas e as tornar lei.
É principalmente neste aspeto que o Partido Comunista Português considera insuficiente o relatório aprovado, na medida em que este não reflecte sequer sobre o carácter sistémico da crise do sistema financeiro e, de certa forma, não enquadra o colapso do BANIF no desenvolvimento da crise capitalista e da apropriação privada de recursos. Tal como outros relatórios sobre a banca, o relator optou por dissociar os problemas identificados da natureza privada da instituição e dos seus objectivos máximos: distribuir dividendos em curtos prazos. A história recente mostra-nos inclusivamente que o acionista, quando fica impedido de retirar dividendos do banco em que detém participação, não hesita em distribuir capital, através de crédito que acaba vencido.
Não pode persistir a ideia, por ser falsa, de que os problemas do sistema financeiro resultam de atos de simples má-gestão e de um ou outro erro de supervisão. O sistema, tal como se configura, não apenas permite uma constante acumulação e concentração de riqueza com recurso à banca e à especulação que a actividade financeira comporta, como está exatamente delineado e regulado para ter esses fins. Os sucessivos casos de liquidação de pequenas instituições bancárias e a integração dos seus negócios e activos saudáveis em grandes instituições mostram bem que o movimento é de aglutinação da propriedade bancária, o que resulta da liberalização total do mercado bancário e de uma regulação e supervisão que mais não são senão as agências de comunicação dos bancos privados, que teimam em dizer aos depositantes que tudo está bem, mesmo quando os bancos estão falidos ou enquanto estão a ser assaltados – descapitalizados, muitas vezes ao abrigo da lei - pelos seus grandes acionistas.
Ao mesmo tempo, a submissão do poder político ao poder económico, a fusão e promiscuidade que se verifica muitas vezes entre governos e grupos económicos, com implicações políticas e económicas que, inclusivamente, alteram a própria forma do Estado e a sua relação com os monopólios - apesar de ser um comando constitucional a atuação do Estado para impedir o surgimento de grupos monopolistas.
V. O aprofundamento da integração capitalista e de centralização de poderes nas instituições da União Europeia
O processo de integração capitalista incorpora cada vez mais nas relações sociais as condições impostas pelos grandes grupos económicos e pelos pólos mais avançados do capitalismo no espaço europeu e, ao mesmo tempo, afasta a análise e decisão sobre aspectos centrais da vida dos portugueses dos centros nacionais para cúpulas obscuras, não democráticas e não escrutináveis.
Sendo o sistema financeiro e a sua estabilidade absolutamente fundamentais para o funcionamento das economias, a sua administração, gestão e supervisão não podem estar desligadas do poder político resultante das soberanias nacionais. O aprofundamento do processo de integração da União Europeia, contudo, determina precisamente o contrário: que toda a atuação de autoridades na banca parta de estruturas supranacionais e muito mais próximas dos interesses dos grandes bancos europeus. O caso do BANIF constitui um exemplo claro de como o interesse dos grandes bancos prevaleceu sobre a estabilidade do sistema financeiro português. A necessidade de remuneração dos empréstimos concedidos ao BANIF por parte de bancos estrangeiros sobrepôs-se a soluções que pudessem melhorar a posição do Estado no negócio e, ao mesmo tempo, o negócio foi dirigido de forma a beneficiar diretamente um banco. Ou seja, a União Bancária, as normas europeias sobre resolução bancária e as decisões da DGComp resultaram conjuntamente na assumpção pelo Estado das dívidas do BANIF aos grandes bancos europeus e culminou mesmo na entrega da quota de mercado e dos negócios do BANIF a um banco com perspectiva de expansão em Portugal, num contexto em que o banco público é forçado a retrair o seu negócio.
A União Bancária mostrou de facto as suas cores verdadeiras, comprovando justas as teses e afirmações do PCP sobre a sua natureza e objetivos, no sentido da concentração da propriedade bancária e da concentração da capacidade de decisão sobre o crédito e a moeda no perímetro dos grandes bancos europeus. Ao mesmo tempo, as normas que serviram de base à actuação da DG-Comp - contra o interesse dos portugueses - comprovam a cristalização da Comissão Europeia em torno dos dogmas da concorrência capitalista e da hostilização à intervenção pública no mercado bancário e financeiro.
VI. As incapacidades de apuramento de factos da Comissão de Inquérito
A forma como alguns documentos, particularmente os relativos a instituições supranacionais integradas no funcionamento da União Europeia e a dados internos da instituição bancária foram negados à Comissão de Inquérito demonstra que a banca privada tem sempre a capacidade de ocultar um conjunto muito importante de elementos que podem ser fundamentais para o escrutínio das responsabilidades políticas e institucionais que são alvo de inquéritos parlamentares. A forma como o Banco Central Europeu e a Direcção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia interagiram com a Comissão demonstra também que o conjunto das operações realizadas por essas instituições não é inteiramente sindicável por um inquérito parlamentar, apesar de serem operações que se relacionam estritamente com o âmbito nacional.
Ao mesmo tempo, o Banco de Portugal fez sucessivas e constantes truncagens nos documentos que enviou a esta Comissão. Tais falhas estão identificadas no Relatório, mas o que se pretende agora é identificar essas falhas documentais como conclusões em si mesmas. Ou seja, a constatação de que há documentos e elementos importantes que não foram entregues ou não foram disponibilizados atempadamente, por diversas razões - umas por falha da lei, outras nem tanto - impõe que se assuma também como conclusão que a forma como as instituições se autonomizaram do interesse público e da democracia, e como se começam a constituir como zonas livres de escrutínio, representa não apenas um impedimento objetivo ao apuramento da verdade, como uma degradação clara da soberania nacional e da própria democracia.
VII. As conclusões e recomendações constantes do Relatório da Comissão de Inquérito
O Grupo Parlamentar do PCP valoriza o facto de o relatório integrar quase totalmente os contributos que apresentou como propostas de alteração. Apesar de o PCP não se opôr às recomendações nem às conclusões não significa que as considere suficientes. Na verdade, o conjunto das conclusões podia ser mais rigoroso e profundo se fosse libertado do dogma político em torno da necessidade de aceitação da integração capitalista europeia, independentemente das suas consequências prejudiciais. O mesmo se pode afirmar sobre as recomendações, porque estão manifestamente limitadas pelo contexto normativo vigente. Ou seja, o relator opta por dar como adquirida e imutável a aceitação das regras da União Europeia e, em momento algum, coloca a possibilidade ou a necessidade de romper com esse rumo e essas normas, ou sequer de afirmar sobre essas limitações o interesse nacional.
O PCP entende que há efeitos negativos que são consequência direta da abdicação da soberania nacional e adopção de compromissos por parte dos Governo portugueses perante a União Europeia e que, por isso mesmo, seria estritamente necessário assumir a reformulação ou a rejeição desses compromissos em termos favoráveis para Portugal e a sua soberania. Se se comprova que a perda de capacidades políticas, económicas, financeiras e monetárias por parte das autoridades nacionais resulta em prejuízo para o interesse nacional, a solução lógica implica aceitar o resgate e recuperação dessas capacidades e da soberania política, económica, financeira e monetária e não o inverso: aprofundar a entrega e a cedência de soberania, como até aqui tem sido feito a pretexto da melhoria da resposta, sempre partindo do pressuposto de que a resposta resulta melhor quanto mais "europeia" for, mesmo quando todas as evidências apontam materialmente no sentido contrário.
Portanto, não existindo uma discordância de fundo com as conclusões e recomendações, é importante clarificar que nenhuma medida que se limite a melhorar as práticas e regras de "supervisão e regulação" resolverá o problema, mantendo intocada a natureza do sistema financeiro como um instrumento para a produção de dividendos para grandes acionistas. A banca nas mãos de entidades privadas é absolutamente incompatível com as necessidades de cada país, de cada economia.
Da mesma forma, qualquer solução que não assuma a plena consideração da soberania nacional em contraste com a submissão a regras da União Europeia ficará sempre aquém das respostas necessárias.
A matriz ideológica que subjaz à arquitetura da União Europeia, dos seus instrumentos políticos, administrativos e financeiros não é compatível com uma política de colocação do sistema financeiro ao serviço dos interesses das pessoas e do desenvolvimento económico e social. A utilização da moeda única, que amplia os custos de capital em Portugal, a centralização dos poderes de supervisão, a gestão privada da moeda e do crédito, são características intrínsecas da UE - aliás definem-na - e representam factores de agravamento e, ao mesmo tempo, são origem de problemas que se repercutem pelo sistema financeiro.
As recomendações que não equacionem o controlo público da banca como instrumento possível de defesa do interesse nacional e que não coloquem sob análise e em causa as atuais formas que a União Europeia assume limitam o alcance potencial do inquérito parlamentar. A contenção das recomendações ao espartilho que em boa parte é também causa dos problemas alvo de inquérito fecha-nos num ciclo sem evolução. Ou seja, se chegamos à conclusão que um dos problemas de raiz está no funcionamento da União Europeia, mas não o questionamos, ou se comprovamos que a integração na União Económica e Monetária agrava um vasto conjunto de problemas que geram colapsos de bancos nacionais, mas não a questionamos, então tais constatações não são mais do que mero reconhecimento do problema, sem apontar nenhum caminho para a sua superação. E, no presente relatório, nem sempre os problemas são efetivamente identificados, e menos vezes são sugeridas formas eficazes de superação.
A identificação de práticas da banca privada e a incapacidade de sujeitar o funcionamento da banca aos interesses nacionais e a critérios que assegurem a estabilidade do sistema financeiro é, por exemplo, um dos elementos que se pode identificar, mas para o qual não são apontadas, na opinião do PCP, soluções com vista ao controlo público da banca.
O relatório contém, no entanto, uma riqueza que destacamos: se não retira todas as conclusões lógicas e políticas possíveis, entrega contudo ao seu leitor os elementos e descrição de factos necessários para que o próprio deduza e produza essas conclusões.
Assembleia da República, 28 de julho de 2016