Estimados amigos e camaradas,
Nem as doses maciças de propaganda servidas a propósito de uma suposta reforma da União Europeia, nem a incipiente, vacilante e desigual retoma económica podem ocultar a profunda e arrastada crise do processo de integração capitalista europeu.
Ao contrário do que alguns querem fazer crer, esta crise não resulta de factores conjunturais, de desavenças ou bloqueios de circunstância, nem tampouco da carpida ausência de líderes providenciais “com dimensão europeia”. As raízes fundas da crise mergulham na natureza capitalista do processo de integração e são, nessa medida, indissociáveis da crise do capitalismo e das expressões que esta assume na Europa. As possibilidades de superação da crise, em última instância, são condicionadas pelos limites do próprio sistema, na sua fase imperialista.
Divergência económica, retrocesso social, empobrecimento democrático, limitação e amputação de direitos, escalada militarista e deriva securitária: são aspectos que marcam a evolução da integração capitalista europeia.
A partir de uma análise da complexa relação de forças sociais e políticas (de classe) que caracteriza a situação presente em cada um dos países europeus, torna-se essencial perceber para onde caminha a Europa.
Esta iniciativa pretende contribuir para responder a esta questão. Não de uma forma passiva, como quem assume uma postura contemplativa, de espectador. Mas sim com a postura activa e combativa de quem lê a realidade em movimento inserindo-se na luta pela sua transformação; de quem resoluta e convictamente diz não à União Europeia das transnacionais e das grandes potências e sim a uma Europa de paz, cooperação, progresso e justiça social.
A relação entre as principais potências europeias foi desde sempre pautada pelo binómio concertação-rivalidade.
Lenine referiu-se a duas tendências contraditórias – “uma que torna inevitável uma aliança de todos os imperialistas; e outra que coloca os imperialistas em oposição entre si”. Uma tendência para a convergência na base de laços e de interesses de classe, que predispõe à concertação; e simultaneamente uma tendência para a divergência, tendo em conta os interesses conflituantes dos diferentes monopólios nacionais e as ambições hegemónicas das potências que defendem os interesses desses monopólios.
Realidade que levou Lenine a advertir que “os Estados Unidos da Europa, sob o capitalismo, ou são impossíveis, ou são reaccionários”.
As dinâmicas de crise-impasse-superação marcam a história do processo de integração capitalista europeu.
Em face das crises, a “solução” para os impasses passou invariavelmente por “saltos em frente”, pelo aprofundamento e/ou pelo alargamento da integração. “Solução” que, permitindo a superação temporária dos impasses, não eliminou contradições.
A decisão de saída do Reino Unido da União Europeia – o chamado Brexit – é expressão desta realidade. O seu enorme significado político é o de evidenciar que o sentido da integração não é irreversível. A desintegração é uma possibilidade real, estando em aberto qual o seu alcance e as suas consequências.
Nas negociações em torno do Brexit, salta à vista o confronto entre as principais potências capitalistas europeias pela disputa de mercados, de matérias-primas e de zonas de influência à escala global.
De um lado, a União Europeia (hegemonizada pela Alemanha) a tentar limitar ao máximo a margem de manobra do Reino Unido, usando as condições de acesso ao mercado único como instrumento de pressão. Do outro lado, o Reino Unido, apostado em ganhar margem de manobra na relação com diversos blocos não europeus, através de acordos de investimentos e de livre comércio talhados já não fundamentalmente à medida dos interesses da indústria alemã mas sim à medida dos seus interesses próprios (dos interesses dos seus capitalistas), com destaque para o sector financeiro.
Tanto de um lado como do outro, a UE e o Reino Unido apostados em usar a futura “nova” situação, ainda mais concorrencial, para forçar uma desvalorização geral de direitos e de condições de vida dos trabalhadores e dos povos.
Tanto de um lado como do outro, a UE e o Reino Unido apostados em salvaguardar e aprofundar a cooperação no quadro da NATO, impulsionando a escalada militarista em curso, buscando as formas de articulação mais adequadas para lograr a sua concretização.
A pretexto do Brexit pretende-se forçar uma nova “fuga em frente” no processo de integração. Aprofundar o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo enquanto seus pilares fundamentais. Intenção que fez ressuscitar os apelos à reconstituição plena e revigorada do eixo franco-alemão e do seu papel motor na integração capitalista.
Pese embora o crescimento da extrema-direita, susceptível de fazer dela uma reserva estratégica a que a qualquer momento o grande capital pode lançar mão, tanto na França como na Alemanha, a aposta dos sectores dominantes do grande capital recai sobre as forças que, no essencial, conduziram o processo de integração, determinando o seu rumo, e que são agora chamadas a levar a cabo a chamada “reforma da União Europeia”.
Nessa reforma cabe um aprofundamento da concentração de poder económico e político no seio da Zona Euro, a pretexto do aprofundamento da União Económica e Monetária, envolvendo a possível evolução de instrumentos de domínio como o Mecanismo Europeu de Estabilidade para algo do tipo de um “Fundo Monetário Europeu” (um “FMI europeu”). O preço dessa evolução passará sempre por mais férreos constrangimentos, seja no plano orçamental, seja no plano das “reformas estruturais”. A aplicação de tais constrangimentos poderá ser assegurada pela acção fiscalizadora de um “ministro da economia e das finanças” da União Europeia, aproveitando o campo aberto pelo Tratado Orçamental, pelo Semestre Europeu e pela legislação da Governação Económica para levar mais longe a usurpação de novas esferas de soberania nacional.
Pretende-se criar as condições para levar mais longe o processo de concentração monopolista à escala europeia, seja na indústria, seja nos serviços – com pacotes adicionais de liberalização pré-anunciados pela Comissão Europeia – e especialmente na banca, com a “União Bancária” e a sua conclusão.
O poder da Alemanha e a influência do ordoliberalismo, em grande medida já incrustado nos tratados da UE, tenderão a sair reforçados.
O desenho do próximo Quadro Financeiro Plurianuel aponta para um impulso às despesas militares, ao financiamento directo da indústria de armamento, em associação com a instauração de um verdadeiro mercado único da “defesa”, que impulsionará a “livre” circulação dos exércitos e do armamento no espaço europeu. O futuro orçamento da UE, previsivelmente, servirá também para suportar a ofensiva securitária em variados domínios, incluindo o da denominada ciber-segurança. Em causa, em nome de uma falsa noção de “segurança”, está o crescente cerceamento de direitos, liberdades e garantias.
A ascenção de forças de extrema-direita e a sua presença nos governos de países como a Polónia, a Hungria ou a Áustria é demonstrativa da deriva anti-democrática em curso.
A reconstituição do capitalismo no Leste da Europa criou situações devastadoras do ponto de vista social em muitos destes países. Situações de retrocesso, de ruptura e desestruturação social que são inseparáveis da ascensão de forças de cariz reaccionário, retrógrado e fascista. A constituição de uma classe de capitalistas com interesses próprios é, ademais, susceptível de provocar tensões e contradições face ao conjunto das opções seguidas pelo directório da União Europeia.
As políticas económicas seguidas ao longo dos anos, preconizadas pela União Europeia, a intensificação da exploração, a opressão de sentimentos nacionais por parte de instâncias de articulação do capitalismo no plano supra-nacional, criam o ambiente propício ao reforço e ascensão da extrema-direita. A própria União Europeia vem dando espaço “institucional” à afirmação de concepções próprias da extrema-direita. Veja-se a forma como vem lidando com a questão das migrações, a insistência na criminalização, repressão e expulsão dos migrantes, a par da dita “externalização” das fronteiras.
A perseguição aos partidos comunistas em vários Estados-Membros, a repressão e a criminalização da luta e do protesto social, a perseguição à acção sindical, são realidades a registar com preocupação, que não incomodam minimamente a União Europeia e as suas instituições.
Com o previsível enfraquecimento da dita política de coesão, a par do aprofundamento do mercado único e da liberalização e desregulação do comércio internacional, a divergência económica tenderá a acentuar-se. Com ela, acentuar-se-ão tensões entre Estados, em parte já hoje visíveis e inseparáveis também da desigualdade na relação de forças que o Tratado de Lisboa veio consagrar.
Camaradas e amigos,
Vivemos um tempo de grande instabilidade, de uma arrastada crise económica e social, com expressões no plano político, de que a ascensão da extrema-direita é exemplo preocupante mas não único, um tempo de um retrocesso social de dimensão civilizacional – tudo indissociável das políticas e orientações associadas à integração capitalista europeia.
Vários Estados foram arrastados para processos de destruição económica e de devastação social. Veja-se no caso da Grécia até onde pode ir a acção de um governo disposto a alinhar, custe o que custar, com as imposições e constrangimentos da União Europeia, em particular os associados ao Euro.
A dinâmica imperialista da União Europeia é patente nas relações de recorte colonial que se estabelecem entre o centro e a periferia.
A concentração de poder em instâncias supranacionais está associada à subjugação do poder político pelo poder económico, ao tráfico de influências e à corrupção.
É neste quadro que os principais responsáveis pelo processo de integração capitalista procuram instrumentalizar os problemas que eles próprios criaram, para justificarem novas fugas em frente. As teorias da reforma democrática da União Europeia, ou da sua dita refundação, são subsidiárias destes esforços. Esforços que unem a direita à social-democracia (nas suas várias matizes, incluindo sectores da auto-proclamada “esquerda europeísta”).
Acenando com falsos dilemas e com falsas dicotomias, tentam opor o aprofundamento da integração capitalista à ameaça dos “populismos” e dos “nacionalismos”, aos quais tentam de forma desonesta colar qualquer crítica ou oposição à União Europeia.
Confundem deliberadamente a Europa com a União Europeia. Procuram esconder que a esta última afronta princípios e valores históricos, civilizacionais, que resultaram da luta dos povos do continente. Que a União Europeia se constitui hoje como a mais séria ameaça a alguns desses princípios e valores.
Afirmam ser necessário “salvar a Europa”, querendo na verdade salvar a integração capitalista europeia. O que a realidade demonstra, porém, é que salvar a Europa – essa Europa das conquistas dos trabalhadores e dos povos, das grandes revoluções emancipadoras e do seu imenso legado – exige derrotar a União Europeia das transnacionais e das grandes potências.
São muitos os que se interrogam sobre que caminhos alternativos de cooperação podem existir na Europa. Sobre como contrapor à Europa do grande capital e das grandes potências a Europa dos trabalhadores e dos povos. Contrapor à estagnação e ao declínio económico o desenvolvimento económico.
Contrapor ao retrocesso social o progresso social. Contrapor a imposições supranacionais de recorte colonial a democracia e a soberania dos povos. Contrapor à ameaça da guerra a paz e a cooperação entre os povos.
Esta é uma questão central do nosso tempo. Para o Partido Comunista Português, que sempre criticou o processo de integração capitalista europeu e denunciou os seus objectivos e consequências, tendo sido contra a adesão de Portugal à CEE, a alternativa à União Europeia não passa por soluções autárcicas e isolacionistas.
Defendemos a construção de novas formas de cooperação na Europa, baseadas no respeito pela soberania dos Estados e na sua igualdade em direitos; orientadas para o desenvolvimento social e económico mutuamente vantajoso, para a promoção dos valores da paz e da solidariedade.
Os projectos de integração não são neutros e não têm de corresponder necessariamente a uma dinâmica capitalista. É possível conciliar o respeito pela soberania nacional, nos seus mais variados aspectos, com o estabelecimento e fortalecimento de laços de cooperação mutuamente vantajosos.
Coloca-se entretanto a questão sobre como chegar a estas novas formas de cooperação e de como romper com o processo de integração capitalista.
A este respeito, convém assinalar que, não existindo receitas pré-determinadas, o processo de ruptura com a União Europeia e de construção de novas formas de cooperação na Europa é inseparável da luta dos trabalhadores e dos povos em cada país; luta que passa pela rejeição das imposições da União Europeia; pela rejeição das políticas de retrocesso social e civilizacional, pelo fim dos constrangimentos que impedem o desenvolvimento soberano de cada país, pela exigência da reversibilidade dos tratados que regem a União Europeia e pela adaptação do estatuto de cada país à vontade do seu povo. Pelo reconhecimento do princípio da igualdade entre Estados – um país, um voto – único princípio admissível na relação entre Estados soberanos. Uma luta visando a progressiva alteração da correlação de forças em cada país; que exige o reforço da articulação e cooperação das forças progressistas e de esquerda; e que passa pela convergência e articulação de países enfrentando problemas e dificuldades semelhantes, tendo em vista a defesa dos seus interesses.
Em conclusão, a construção de uma outra Europa dos trabalhadores e dos povos, de paz, cooperação, progresso e justiça social, passará obrigatoriamente pela derrota do processo de integração capitalista consubstanciado na União Europeia e pela afirmação soberana do direito ao desenvolvimento económico e social dos Estados europeus.
A luta pela defesa da soberania nacional é, no actual contexto histórico, indissociável da luta pela emancipação social dos trabalhadores e dos povos.