Pedro Soares, do BE, acusou o PCP de ter uma visão “atávica do rural”, a pretexto do voto na proposta do Governo sobre a criação do Banco de Terras (BdT). Já aqui explicámos as razões de tal voto, que Pedro Soares conhece. Para que não fiquem dúvidas, aqui se explicitam, mas com mais molho.
A proposta de Lei que criava o Banco Nacional de Terras e o Fundo de Mobilização de Terras bem como a lei que cria o Sistema de Informação Cadastral Simplificado partem de um pressuposto errado, como a polémica que Pedro Soares procura alimentar confirma.
A causa dos incêndios florestais não está no tipo de propriedade, o minifúndio, e nas ditas terras sem dono conhecido, ou nas terras ditas abandonadas. Teoria nunca provada e que a vida desmente. Leia-se as conclusões do último Relatório do Grupo de Trabalho para a Análise da Problemática dos Incêndios Florestais, aprovado na AR após os incêndios de 2013, ou nos três relatórios anteriores e se verá que nada dizem sobre isso.
Com esse pretexto, e iludindo as responsabilidades de sucessivos governos, e da sua política de direita, no estado a que chegou a floresta, construíram-se dois diplomas (o do Cadastro e o do BdT) nos quais o que estava em causa era a entrega de todas as terras que não estivessem cadastradas, no prazo de dois anos – note-se que não são as terras abandonadas ou sem dono, mas sim as que, por alguma razão, não fossem cadastradas – aos interesses da concentração fundiária da terra.
O BE sabe que o que se estava a constituir não era um Banco Público de Terras mas sim uma mecanismo de esbulho de emigrantes e de idosos que, sem estruturas no terreno que ajudassem a fazer o cadastro, poderiam ver as suas terras ocupadas ficando depois com o ónus de as retomar, com os custos e os problemas inerentes.
Mais, o diploma de criação do BdT previa no seu artigo 5.º que “os prédios do domínio privado do Estado e do património próprio dos institutos públicos aptos para utilização agrícola, silvopastoril e florestal são disponibilizados no Banco de Terras para arrendamento, venda ou para outros tipos de cedência, estes últimos apenas para entidades de natureza pública”. Ou seja, o que se admitia era a entrega do património florestal do Estado à mesma gula da concentração fundiária, sempre a pretexto da sua gestão eficaz.
Ora o BE estava disponível para votar o texto naquelas condições, e o PS só apresentou alterações à proposta do Governo para responder às preocupações que o PCP reiteradamente manifestou.
Alterações que não foram suficientes para mudar o nosso sentido de voto, porque, como as mais recentes declarações do ministro da Agricultura e o escrito de Pedro Soares confirmam, o que estava em causa era esta lógica de assalto à pequena propriedade, que não pode contar com o apoio do PCP. Lógica bem visível no Projecto de Lei do BE que criava o Banco Público de Terras Agrícolas, felizmente chumbado por toda a gente, com as suas normas de “arrendamento compulsivo” (Art.º 9.º) para as terras declaradas abandonadas.
Foi para responder às objecções do PCP, e apenas do PCP, que o Governo suscitou alterações numa proposta que visava a alienação do Estado das suas responsabilidades de gestão florestal e do seu património, e da entrega deste, a prazo, aos interesses privados, por um lado, e tinha como objectivo último a espoliação de pequenas propriedades para as entregar a apetites inconfessáveis. Entre essas alterações está, exactamente, a de impedir a venda das terras ditas sem dono conhecido, que Pedro Soares invoca.
Sublinhe-se que não nos é estranha uma realidade que se vive nas aldeias, amplificada de forma distorcida, a da existência de terras cujos donos ou não se conhecem ou não as tratam.
Mas não anda o PCP a dizer há décadas que a política de direita empurra milhares de pessoas para longe do mundo rural e que sem gente não é possível cuidar das terras? Não denunciámos vezes sem conta o facto de os apoios à floresta serem canalizados preferencialmente para a zona do latifúndio, onde os incêndios não ocorrem com a dimensão da zona do minifúndio? Não apontámos que o problema central da floresta portuguesa reside nos preços degradados da madeira impostos pelos monopólios do eucalipto, dos aglomerados de pinheiro ou da cortiça, tendo apresentado um projecto para que o Governo intervenha nessa situação?
O que não é aceitável é que, depois de terem sido abandonados à sua sorte, de lhes terem roubado os serviços públicos, os empregos, e até as juntas de freguesia, depois de os terem empurrado para a emigração, agora até as parcelas, que levaram uma vida a amealhar, lhes queiram roubar.
Atávico é o que é natural, hereditário, inato. Pela parte do PCP orgulhamo-nos de olhar para a floresta portuguesa, a partir daquilo que ela é, respeitando a pequena e média propriedade que a caracteriza. Não vamos em experiências de laboratório, impondo às populações, habituadas ancestralmente, naturalmente, ao amanho das suas propriedades, soluções altamente “eficazes” que, invariavelmente, levarão à sua apropriação pelos interesses que hoje se movem na floresta.
Diz Pedro Soares que o Estado não pode continuar de costas voltadas para a floresta. Não foi esse o sinal que o BE deu, ao transferir para as autarquias, votando ao lado de PSD e CDS, a responsabilidade da realização de trabalhos de gestão de combustível em substituição dos proprietários, sabendo que isso significa o caminho inverso, e que as autarquias não terão capacidade para essa tarefa.
É extraordinário que quer o ministro da Agricultura, quer Pedro Soares, passem ao lado das mais importantes medidas de defesa da floresta aprovadas na AR, também por iniciativa do PCP, como a criação das equipas de Sapadores Florestais em falta e a (re)criação do corpo de Guarda Florestal.
Resta a pergunta. Por que votaram PS e BE contra as Leis de PSD/CDS/Cristas da Bolsa de Terras e das Terras sem dono conhecido? E por que votaram, agora, o PSD e o CDS contra o Banco de Terras do PS e BE?
Esperamos que polémicas estéreis não sirvam para não fazer aquilo que tem de ser feito.