O modelo “clássico” de financeirização da habitação, prevalecente em Portugal, assentou na promoção da habitação de propriedade própria através das bonificações de juros.
O acesso ao crédito fácil levou as famílias a contrair dívidas para comprar casa e as empresas de construção e imobiliário a contrair dívidas para construir e expandir as suas atividades.
Esta situação prevaleceu até ao rebentar da bolha imobiliária em 2006/2007, a qual, ao criar enormes imparidades, foi a causa central da crise financeira, depois económica e, finalmente, da dívida soberana.
Mas, como aconteceu ao nível global, a crise não travou, senão temporariamente, a financeirização da habitação: pelo contrário, durante e depois do período de crise foram criados instrumentos para expandir a presença do setor financeiro no mercado da habitação e em especial do arrendamento, como veremos.
Dado que o mercado de compra de habitação se encontrava estagnado a seguir ao rebentar da bolha, era no setor do arrendamento que se deveria apostar: já no meio da crise económica global, o então governo socialista criou o Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário e concedeu condições fiscais favoráveis aos fundos que investissem em arrendamento (inscritas no OE 2009).
Os jornais nacionais abriam com expressões como “competitividade económica das cidades” que mais não foi a invasão de grandes fluxos transnacionais de capitais, que encontram na habitação um activo financeiro lucrativo.
Nos últimos seis anos, os preços da habitação para arrendamento aumentaram entre 13% e 36%, e para aquisição subiram até 46%, consoante as áreas da cidade de Lisboa, de que resulta, estima-se, uma taxa de esforço com a habitação situada entre 40% e 60% do rendimento familiar, quando os padrões comuns aconselham uma taxa de esforço até 30%.
De acordo com os últimos dados oficiais, entre 2019 e 2022 o preço do metro quadrado dos novos contratos de arrendamento subiu, em média, 35% em Portugal. Só no último ano, o valor das novas rendas aumentou, em média, 20%. Significa que se em 2021 um imóvel com 100 metros quadrados era arrendado por 990 euros, no ano passado o preço subiu para 1.190 euros.
Entre os concelhos mais populosos, pertence à Amadora há pelo menos cinco anos as maiores subidas de rendas.
A renda de uma casa de 100 metros quadrados na Amadora é equivalente a 68% do rendimento médio líquido mensal de um agregado familiar residente no concelho (cerca de 1.431 euros).
Desde 2019 que a taxa de esforço das famílias amadorenses se situa acima dos 60% para situações com estas características. Em mais nenhum concelho se verifica um estrangulamento tão grande no rendimento das famílias que procurem casa no mercado de arrendamento no seu concelho, tanto hoje como nos últimos cinco anos.
Isto deve-se não apenas a uma subida do preço das rendas, que só no último ano disparou 13% (e mesmo assim ficou abaixo da média nacional), mas a uma atualização muito ténue de apenas 2,3% dos salários entre 2021 e 2022.
Não muito longe da dificuldade encontrada pelos residentes da Amadora em encontrarem uma casa para arrendar no seu concelho estão os cascalenses. Aí a taxa de esforço média exigida a uma família residente em Cascais para arrendar uma casa de 100 metros quadrados é de 67%. Em 2018 não ia além dos 55%.
Também em Cascais o preço das rendas subiu a uma velocidade muito mais elevada que os salários: em média, as rendas aumentaram 4,3 vezes mais que os salários dos cascalenses entre 2018 e 2022.
Num patamar abaixo surgem os concelhos de Lisboa, Loures, Odivelas e Sintra, que exigem taxas de esforço entre 60% e 63% às famílias que procurem arrendar uma casa de 100 metros quadrados nos seus concelhos e que aufiram rendimentos equivalentes à média dos seus residentes.
A disparidade no ritmo de subida do preço das rendas face ao aumento salarial dos residentes não é uma dinâmica exclusiva da Amadora ou Cascais. É uma dinâmica transversal a todos os concelhos. Atualmente, apenas Viseu consegue oferecer aos seus residentes uma taxa de esforço perto dos 33% no arrendamento de um imóvel de 100 metros quadrados.
Para contornar o aperto financeiro gerado pela subida das rendas nos últimos anos, as famílias que também enfrentam dificuldades em aceder ao crédito à habitação, têm apenas uma solução: procurar casas mais pequenas.
Tomando por princípio que as despesas com a renda da casa não devam exceder um terço do rendimento do agregado familiar (consensualmente vista pelo setor bancário como uma taxa limite de saúde financeira), é preciso fazer algum esforço para encontrar a “casa ideal”.
Na Amadora, por exemplo, uma família com rendimentos equivalentes à média dos residentes do concelho, só consegue arrendar um apartamento incorrendo numa taxa de esforço inferior a 33% caso encontre uma casa com menos de 50 metros quadrados. Isso significa pagar uma renda média de 565 euros.
No Porto, para alcançar este rácio financeiro de equilíbrio, as famílias têm de se contentar com uma área de 60,5 metros quadrados e em Lisboa os imóveis que preenchem os requisitos não podem exceder os 52,5 metros quadrados.
No canto oposto surge Viseu, onde apesar do preço das rendas ter subido 54% entre 2018 e 2022 (o concelho com maior subida neste período), as famílias conseguem arrendar imóveis com cerca de 100 metros quadrados sem que tenham de incorrer num esforço financeiro superior a um terço dos seus rendimentos.
Considerando os atuais preços praticados no mercado de arrendamento e as condições financeiras das famílias, em todo o território nacional, apenas em Viseu, é possível arrendar uma casa com cerca de 100 metros quadrados não ultrapassando uma taxa de esforço de 33%.
A criação de numerosas novas formas de aplicação de liquidez financeira (novos produtos financeiros) fez e faz disparar o valor do arrendamento, enquanto está a levar à concentração de património imobiliário.
O interesse pelos fundos imobiliários continua a ser evidente, segundo mostram os dados mais recentes da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Em agosto de 2022, o valor sob gestão dos fundos de investimento imobiliário (FII), dos fundos especiais de investimento imobiliário (FEII) e dos fundos de gestão de património imobiliário (FUNGEPI) atingiu 10.968,7 milhões de euros, mais 106,2 milhões (1,0%) do que em julho.
Este foi o comportamento registado em agosto de 2022 pelos fundos de investimento e de gestão de património sob gestão em Portugal, de acordo com o comunicado da CMVM:
- Nos fundos de investimento imobiliário (FII) o montante investido cresceu 0,4% para 8.191,1 milhões de euros.
- Nos fundos especiais de investimento imobiliário (FEII) o valor atingiu 2.459,8 milhões de euros, mais 2,9% que no mês anterior.
- Nos fundos de gestão de património imobiliário (FUNGEPI) o valor subiu 0,7% para 317,9 milhões de euros.
No período em análise, os países da União Europeia foram o destino da totalidade do investimento feito em ativos imobiliários, tendo 48,9% da carteira dos FII e FEII abertos sido aplicados em imóveis do setor dos serviços. Também os investimentos realizados pelos FUNGEPI se destinaram, sobretudo, ao setor dos serviços (47,7%).
A Square AM (12,2%), a Interfundos (10,5%), e a Caixa Gestão de Ativos (8,3%) detinham as quotas de mercado mais elevadas. A CMVM indica ainda que, em agosto, foi constituída a sociedade de investimento imobiliário especializado "Companhia das Nações Aliadas" gerida pela Atlantic SGOIC e a sociedade de investimento imobiliário "Top Notch" gerida pela Lynx AM, reforçando assim a presença de mais capital financeiro no sector imobiliário.
A habitação é um direito humano, uma das condições básicas para se viver, é um direito constitucional relevante, a sua garantia é incumbência do Estado e contra este modelo.
Não é possível admitir que seja negado, de facto, o direito constitucional à habitação e a solução para os problemas da habitação exige a ruptura com o modelo que nos tem desgovernado. A garantia do direito à habitação exige medidas urgentes que defendam os inquilinos, travem a subida das prestações do crédito e aumentem a oferta pública de habitação.