Intervenção de Jerónimo de Sousa, Mesa Redonda com professores

Ano Lectivo 22/23 - Ano novo, velhos problemas, a falta de professores e a qualidade das aprendizagens

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Nesta mesa redonda foi dada grande centralidade à previsão que já é possível fazer relativamente ao que será o próximo ano lectivo, de onde parece destacar-se, em particular, a falta de professores, com nefastas consequências para o funcionamento da Escola Pública. 

Face a esta previsível realidade podemos já manifestar uma grande preocupação: vamos certamente entrar no novo ano lectivo confrontados com velhos e novos problemas, alguns deles estruturais, que se têm arrastado ao longo dos anos sem que sucessivos governos tenham procurado resolvê-los. 

Problemas que não surgiram com a epidemia, como, por vezes, nos querem fazer crer, mas se agravaram nesse período.

Problemas estruturais que têm origem numa prolongada ofensiva política e ideológica, cujas linhas condutoras se têm centrado: na crescente desresponsabilização do Estado; no subfinanciamento crónico que asfixia e desvaloriza a Escola Pública; na desvalorização profissional e social dos trabalhadores da educação; no financiamento público que continua a ser canalizado para o ensino privado; na subalternização de decisões pedagógicas a critérios administrativos; e a progressiva elitização da educação e do ensino.

As opções dos partidos da política de direita têm sido uma verdadeira aposta em moldar o sistema educativo aos interesses do grande capital, num quadro mais geral de abandono do princípio básico e constitucional da subordinação do poder económico ao poder político, não aplicando, ou mesmo desrespeitando, postulados da Lei de Bases do Sistema Educativo.

Durante o período da nova fase da vida política nacional, iniciada em 2015, com a intervenção do PCP e a luta dos trabalhadores da Educação, não só foi possível estancar o perigoso rumo posto em marcha pelo Governo anterior de PSD/CDS, como foram aprovadas algumas medidas favoráveis à Escola Pública, na grande maioria defendidas e propostas pelo PCP. Medidas positivas, mas que, por vezes, ficaram muito aquém do necessário, não por responsabilidade do PCP, como tivemos oportunidade de afirmar, mas porque, como foi evidente, da parte do Governo do PS, houve uma grande hesitação quando em causa estavam medidas de fundo, como aconteceu em relação à redução do número de alunos por turma ou ao regime de gestão das escolas.

Apesar de algumas diferenças nas opções de política educativa, no essencial PS, PSD e CDS não se distinguem, como acontece, por exemplo, com a gestão das escolas, cuja democraticidade foi gravemente mutilada pelo Governo do PS em 2008. Mas também em relação às questões da rede, tanto no que se refere ao encerramento de escolas, como à imposição de mega-agrupamentos, verdadeiros absurdos pedagógicos, ou à transferência de competências para as autarquias, que vão colocar, como já começa a ser evidente, novos e graves problemas à Escola Pública. 

De facto, tem sido pela iniciativa e acção de sucessivos governos sob a liderança de PS e PSD que foram desferidos alguns dos mais violentos ataques contra a Escola Pública e os seus profissionais. No que respeita aos professores, estes têm sido confrontados com o congelamento de carreiras, a perda de tempo de serviço cumprido, após o descongelamento, e a criação de obstáculos administrativos à sua progressão. Foi pela acção desses governos que assistimos ao aumento da precariedade que disparou, sem simultaneamente eliminar o desemprego e as muitas situações de subemprego que subsistem. Assistimos aos cortes salariais e hoje, fruto de medidas tomadas na última década e meia, a uma desvalorização salarial que chega a superar os 30%, mas igualmente ao agravamento dos horários de trabalho e também dos requisitos para a aposentação. 

Mas não só os professores têm estado na mira da política de direita. 

Os auxiliares de acção educativa, para além da não existência de uma carreira, sendo um grupo profissional fundamental para o regular funcionamento das escolas, são obrigados a trabalhar em condições muito difíceis devida ao seu número ser claramente insuficiente, onde está presente o trabalho precário e miseravelmente remunerado.
 
Entretanto, a somar à instabilidade e incerteza, aí temos também as “recomendações específicas por país”, aprovadas pelo último Conselho Europeu, que contêm directrizes que, no caso de Portugal, já evidenciam o reforço das pressões orçamentais, para 2022 e 2023, com o objectivo apresentado de conter a “despesa corrente” do Estado. 

Sabemos o que isto quer dizer, no que respeita à nossa vida de todos os dias: desinvestimento nos serviços públicos, desinvestimento na Escola Pública e nos seus profissionais e redução dos salários reais dos funcionários públicos, incluindo as carreiras especiais.
 
Estas orientações, a que o Governo PS tem vindo a submeter-se, são o contrário do caminho necessário e, a serem levadas à prática, não apenas determinariam uma ainda mais acentuada degradação da Escola Pública, como agravariam a situação dos seus profissionais.

Como aqui já foi referido, um dos maiores problemas que está colocado à Escola Pública é a possibilidade real de mais de 110 mil alunos, provavelmente bastante mais, no início do próximo ano lectivo, não terem professor a pelo menos uma disciplina, na linha do que já aconteceu no último período do ano lectivo que terminou, em que mais de 30 mil alunos ainda tinham pelo menos a falta de um professor. A confirmar-se isso, seria terrível, pois estaríamos perante mais um factor de agravamento de desigualdades entre alunos e famílias já hoje vítimas dessa situação. 

As suas causas há muito que estão identificadas pelo PCP que tem vindo a apresentar no plano legislativo propostas que, se tivessem sido implementadas, evitariam a situação que temos hoje e que é marcada:

- por um envelhecimento do corpo docente, que resulta de uma irresponsável falta de renovação, prevendo-se que até 2030 mais de 50% dos actuais professores saiam do sistema de ensino por atingirem a idade para a reforma, o que fará com que em 2025, caso a situação não tenha a resposta adequada, cerca de 250 mil alunos possam ficar sem professor a     pelo menos uma disciplina, de acordo com estudo recente; 

- pelo facto de a profissão docente ser cada vez mais desvalorizada o que tem levado à saída de milhares de professores mesmo antes de atingirem a idade da reforma e a não opção de milhares de jovens pela profissão que consideram cada vez menos atractiva;

- por níveis de precariedade muito elevados, com professores a esperarem mais de 15 e mesmo 20 anos para saírem da precariedade laboral e obterem a vinculação; progressão numa carreira já muito descaracterizada pela não contagem integral do tempo de serviço e ainda condicionada por obstáculos administrativos no acesso aos 5º e 7º escalões, situação que impede mais de cinco mil docentes de chegarem ao topo, com implicações também na sua futura aposentação; anos a fio com colocação em escolas distantes por vezes a centenas de quilómetros, das casas de família; 

- mas também por horários muito alargados e falta de condições de trabalho na maioria das escolas, o que não só torna a profissão pouco atractiva para os jovens que podiam e muitos gostavam de optar pela     profissão docente, como tem levado que milhares de professores estejam a sair do sistema de ensino, mesmo sem atingirem a idade da reforma, exaustos e já sem condições físicas e anímicas para continuarem.
 
Apesar dos alertas, o Governo do PS pouco fez até agora no sentido de resolver esta questão, não tomando as medidas de curto e médio prazo que se impõem.

Do que se conhece, avançou com a aprovação de um Decreto-Lei que institui o regime de mobilidade por doença. Um regime que põe em causa o artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”. 

É um diploma chocante, desumano, que não apoia quem se encontra fragilizado. Em nome de um alegado combate a abusos, o Governo impõe um regime que penaliza muitos professores que precisavam mesmo de ser deslocados para próximo da sua residência ou local de tratamento.

Um Decreto-Lei que, também alegadamente destinado mitigar a escassez de professores nalguns territórios e escolas, cria um regime específico de mobilidade que até pode agravar a falta de professores se aumentar o número de baixas por doença, para além de pôr em causa, como já afirmei, um direito fundamental, que é o direito à saúde.

A falta de professores supera-se respeitando os seus direitos, garantindo a vinculação na carreira ao fim de três anos de serviço, valorizando os seus salários e garantindo a progressão natural na carreira, sem obstáculos economicistas, como as quotas da avaliação ou as vagas para a progressão ao 5.º e 7.º escalão e repondo integralmente o tempo de serviço que esteve congelado.

Há muito que o PCP e os sindicatos dos professores têm vindo a alertar para a situação e avançando simultaneamente propostas que se tivessem sido concretizadas a situação hoje não teria a gravidade que é conhecida. Uma situação que pode pôr em causa a qualidade das aprendizagens, bastante prejudicadas por dois anos de ensino remoto e um terceiro com muitas paragens e confinamentos, presenças intermitentes de alunos e professores, devido à epidemia. 

Mas não são apenas os problemas do envelhecimento. É que o número de novos professores tem caído a pique. Se o número de professores que atingem a idade da reforma é cada vez maior, o número de novos professores saídos das instituições de formação de professores é cada vez menor. 
Não são medidas como as que o Governo aprovou ontem, nomeadamente as escolas poderem renovar contratos de professores com horários incompletos, o que significa renovar situações se precariedade, quando o que se devia fazer era integrar esses professores nos quadros das escolas, garantindo estabilidade.

Após dois anos lectivos, em que as escolas estiveram fechadas e a funcionar com o chamado ensino à distância e um terceiro com um funcionamento atípico devido aos muitos isolamentos que se registaram, mais de um milhão e duzentas mil crianças e jovens viram as suas aprendizagens prejudicadas para além de terem disparado as profundas desigualdades já existentes.

Ainda esta noite foram publicados os rankings das escolas, em que mais uma vez o objectivo é muito claro: favorecer a imagem dos colégios privados, em detrimento da Escola Pública, comparando coisas que são incomparáveis, porque enquanto a Escola Pública é para todos, os colégios privados são para alguns, nomeadamente para os que têm melhores condições no plano social e económico e quando o Ministério da Educação deixou de ter qualquer controlo sobre as notas internas desses colégios.

Foram três anos lectivos que levantaram sérios problemas ao nível da socialização das crianças e dos jovens e contribuíram para a degradação da sua saúde mental e também física, relativamente à qual está muito por fazer.

O encerramento das escolas, tal como o PCP afirmou na altura, aprofundou desigualdades, com muitos dos alunos a ficarem condicionados no acompanhamento da matéria leccionada por não terem acesso às condições técnicas exigidas, muitos outros sem a ajuda necessária por parte dos pais no acompanhamento do estudo, mas também milhares de alunos com Necessidades Educativas Especiais viram-se privados de apoios e terapias, que lhes são essenciais.

Perante o problema, o Governo do PS, à pressa, sem ouvir aqueles que podiam ajudar a construir as melhores soluções, pelo conhecimento que têm dos problemas, avançou para o chamado Plano de Recuperação das Aprendizagens, que desde logo mostrou estar longe, de garantir a recuperação das aprendizagens, até porque não incorpora uma solução decisiva: a criação de condições que leve ao correspondente aumento do número de professores, recuperando em primeiro lugar os que abandonaram precocemente a profissão, de forma a poder ser reduzido o número de alunos por turma. Ao contrário, tivemos em muitas escolas o aumento desse número.

O chamado Plano de Recuperação de Aprendizagens para dois anos, com início no ano lectivo 2021/2022, é pouco mais do que um rol de boas intenções, pouco desenvolvido e de objectivos pouco claros, como se pode verificar hoje, após o primeiro ano da sua aplicação e que, no essencial, falhou e não teve os resultados que se anunciavam. Nuns casos porque não foram criadas as condições que as escolas pretendiam, por outro lado porque os problemas que afectam as aprendizagens carecem de medidas estruturais e não de planos para resolver situações conjunturais.

Tal como defendemos na altura, o que as escolas precisavam de saber era com o que podiam contar para que pudessem, no quadro da sua autonomia, encontrar as estratégias mais adequadas à sua realidade concreta e às necessidades específicas de cada estudante, para recuperar atrasos, combater o insucesso e o abandono escolares. Objectivos que exigiam dotar as escolas dos meios humanos e materiais, e deveria ser implementado num quadro de segurança e certeza, em vez de estas ficarem a aguardar a eventual elegibilidade de projectos elaborados para o efeito face à disponibilidade dos fundos europeus.

Para o próximo ano lectivo é necessário que o Governo assuma as suas responsabilidades financeiras, em vez de as transferir para fundos europeus e para os municípios. É necessário que invista nos profissionais das escolas, valorizando-os social e materialmente, e valorizando as suas condições de trabalho; que de uma vez por todas aceite discutir um regime de gestão em vez de afastar as comunidades educativas dos níveis de decisão estratégica das escolas.

Em suma, o que é preciso é que o Governo do PS, no que respeita a investimento na Educação, deixe de se esgotar no discurso e o transforme em prática que não pode passar ao lado do diálogo e da negociação tanto política, como social, reconhecendo o importante papel do movimento sindical docente e não docente, do movimento associativo de pais e encarregados de educação e também dando voz aos estudantes.

Tal como já aqui foi hoje anunciado, o PCP continuará a intervir apresentando um conjunto de propostas que contribuirão, caso sejam aprovadas e implementadas, para resolver o conjunto dos problemas que permitirão inverter o caminho de desvalorização da Escola Pública e dos seus profissionais.
É na concretização de objectivo e visando a solução dos problemas que nos vão encontrar em todos os planos da nossa acção!

Obrigado pela vossa presença e pelo vosso contributo para melhor defendermos a Escola Pública e os profissionais que a servem!
 

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