Intervenção de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP, Lisboa

«Amílcar Cabral foi assassinado mas os seus generosos ideais não morreram»

Passam amanhã 50 anos quando, em 20 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral, fundador e Secretário-Geral do PAIGC, foi assassinado numa operação levada a cabo por agentes a soldo do regime fascista e colonialista português em Conakry, capital da República da Guiné, retaguarda solidária da luta dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde pela sua independência.

Evocar este trágico acontecimento é para o Partido Comunista Português um dever de memória, para não deixar cair no esquecimento um crime monstruoso, a somar a tantos outros, reveladores da real natureza do colonialismo português e do carácter criminoso das guerras coloniais que tantas vidas ceifaram.

Num tempo em que a reescrita e a falsificação da História estão a ser utilizadas para promover e normalizar as forças mais reaccionárias e agressivas por esse mundo fora, e quando, em Portugal, saudosos do antigamente se empenham em branquear o fascismo e o colonialismo e em apagar os seus crimes, é  necessário, com determinação, afirmar e defender a verdade histórica e a justeza da marcha da luta dos trabalhadores e dos passos pela  sua libertação.

Amílcar Cabral foi assassinado, mas a luta libertadora conduzida pelo seu Partido heróico não se deteve, impôs novas derrotas militares e políticas ao governo colonial fascista, libertou a maior parte do território da Guiné e, poucos meses depois, a 24 de Setembro, proclamou o Estado da Guiné-Bissau, que a maioria dos membros da ONU prontamente reconheceu. 

Amílcar Cabral foi assassinado, mas os seus generosos ideais que nortearam toda a sua vida não morreram e a força revolucionária de que foi o grande construtor, o PAIGC, prosseguiu a luta até à vitória final sobre o colonialismo. A 10 de Setembro de 1974, na sequência da Revolução de Abril, Portugal reconhece finalmente a independência da Guiné-Bissau e a 5 de Julho de 1975 Cabo Verde torna-se independente.

Neste tempo actual de instabilidade e incerteza nas relações internacionais, em que o imperialismo procura incutir nas massas populares a ideia de que não há alternativa à sua política de exploração, confrontação e guerra e prega o conformismo e a desistência, o pensamento e a obra de Amílcar Cabral constitui um legado precioso de confiança na força invencível da luta organizada dos povos pela sua soberania e direitos, pela transformação da sociedade.

Confiança que ao PCP não falta nem nunca faltou, mesmo nos momentos de maior adversidade.

Foi isso que o PCP expressou quando, no dia seguinte ao seu assassinato, em nota do seu Secretariado, depois de manifestar profunda indignação e afirmar a sua solidariedade e activo e fraternal apoio à luta de libertação do povo guineense e cabo verdiano, declarava: «O Partido Comunista Português, expressa ao PAIGC, aos povos da Guiné-Bissau e Cabo Verde, a sua plena confiança em que a luta pela qual Amílcar Cabral deu a vida, prosseguirá até à vitória final.» 

Sem qualquer pretensão de abarcar toda a extraordinária riqueza e ensinamentos da vida e da obra de Amílcar Cabral – que será objecto das iniciativas que o PCP está a preparar no âmbito das comemorações do Centenário do seu nascimento – é oportuno sublinhar alguns traços marcantes do seu pensamento e acção revolucionária.

Desde logo o seu patriotismo, a sua estreita identificação com o sofrimento e as aspirações do seu povo; o seu profundo conhecimento da complexa realidade económica e sociológica guineense, indispensável para a união das suas diferentes etnias na luta; a elaboração de uma linha revolucionária inspirada noutras experiências de luta de libertação nacional, mas partindo da realidade guineense, original e criativa como exigem todas as revoluções; uma sólida formação teórica marxista a iluminar a sua serena e inabalável confiança na vitória sobre o colonialismo e a construção de uma sociedade nova, construção que o PAIGC iniciou nas regiões libertadas e testemunhadas pela reportagem da Rádio Portugal Livre aí realizada, transmitida a partir de Agosto de 1971 e publicada em folheto clandestino em Portugal.

Como verdadeiro patriota, Amílcar Cabral foi simultaneamente um internacionalista convicto e consequente. Disso são testemunho a sua cooperação estreita com os restantes movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas – MPLA, FRELIMO e MLSTP; a sua participação activa nos principais fóruns regionais e mundiais centrados na liquidação do colonialismo e na luta anti-imperialista; a sua valorização do papel histórico da Revolução de Outubro e o reconhecimento da activa solidariedade dos países socialistas para com a luta dos povos guineense e cabo-verdiano. Na Conferência de Solidariedade aos Povos das Colónias Portuguesas, realizada em Junho de 1970, em Roma, Amílcar Cabral afirmava: «O campo socialista foi desde sempre um aliado da nossa luta de libertação nacional. São os países socialistas – e especialmente a União Soviética – que nos fornecem o material de que actualmente temos necessidade». O reconhecimento do prestígio e autoridade de Amílcar Cabral, no plano internacional e na frente anti-imperialista, ficou bem expresso quando na Conferência de Chefes de Estado e de Governo, em Rabat, o PAIGC foi escolhido como porta-voz de todo o movimento de libertação nacional de África.

Patriota e internacionalista, Amílcar Cabral foi um grande amigo do povo português. Sempre considerou que o combate do PAIGC não era contra o povo português, mas contra o fascismo e o colonialismo português, e tal como o PCP, sempre considerou que o povo português e os povos da Guiné e de Cabo Verde eram aliados na luta contra o inimigo comum. Nos dias que correm este pensamento e guia de acção reveste-se de grande actualidade. Mais uma vez se coloca a urgência da unidade dos que são alvo das injustiças, vítimas da exploração, da discriminação e das desigualdades, independente da sua origem, cor dos olhos ou da pele, etnia ou proveniência. É com a unidade de todos esses, é com a unidade de todos, os injustiçados, que conseguiremos com sucesso fazer frente à política ao serviço do grande capital e impor avanços de emancipação, libertação e de progresso social. Numa entrevista a um jornal cabo-verdiano em 1989, Álvaro Cunhal justamente sublinhou que «entre os grandes méritos de Amílcar Cabral, na luta pela independência contava-se a firme distinção que fazia entre o povo português, que considerava um povo amigo, e o fascismo e o colonialismo português». 

Amílcar Cabral, aquele a quem o fascismo chamava “terrorista”, e que viu rejeitadas todas as suas propostas de uma solução política negociada, não deixando ao PAIGC alternativa que não a da luta armada, afirmava em entrevista à Rádio Portugal Livre: «Nós não somos guerreiros, somos pela paz, somos pelo entendimento, pela amizade fraternal com o povo de Portugal, pela colaboração construtiva entre a nossa terra africana e Portugal, no quadro dos laços históricos, de sangue e culturais que nos unem».

Nascido em 12 de Setembro de 1924 na Guiné, Amílcar Cabral veio completar os seus estudos em Portugal formando-se como Engenheiro Agrónomo no Instituto Superior de Agronomia. Foi aí que tomou contacto directo com a luta do povo português, desenvolveu intensa actividade cultural e política com outros estudantes originários das colónias na Casa dos Estudantes do Império, ao mesmo tempo que participava nas actividades do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e noutras frentes da luta anti-fascista e dessa forma tecendo laços que tiveram, e têm, a sua mais elevada expressão nas relações de amizade e solidariedade entre o PCP e o PAIGC e mais tarde também com o PAICV. Relações de que os comunistas portugueses muito se orgulham e que são inseparáveis da firme posição de princípio do PCP, o único partido que em Portugal pugnou sempre pela autodeterminação e independência dos povos das colónias portuguesas.

São disso exemplos marcantes a intervenção de Bento Gonçalves no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935 e as decisões do seu V Congresso, realizado em 1957. Neste Congresso o PCP proclamava convictamente «estão hoje criadas as condições necessárias para que os povos das colónias de África dominadas por Portugal conquistem a sua liberdade e independência», para a seguir declarar que construir a frente de luta anti-imperialista do povo português e dos povos coloniais se torna a tarefa de um Partido que sabe que um povo não é livre oprimindo outros povos.

Posição reafirmada igualmente no VI Congresso, em 1965, que aprovou o Programa do Partido que apontava como um dos oito objectivos fundamentais da Revolução Democrática e Nacional «reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência». Objectivo concretizado pela Revolução de Abril, dando inteira razão a Álvaro Cunhal quando, no “Rumo à Vitória”, afirmava que «A luta dos povos das colónias pela independência é uma ajuda poderosa à luta do povo português pela democracia. E a luta do povo português pela democracia é uma ajuda poderosa à luta dos povos coloniais».

O PCP foi o único partido que desde a sua fundação denunciou os crimes do colonialismo, combateu as teses de feição colonial e neo-colonial da oposição liberal e social-democrata, desenvolveu uma sistemática acção contra a guerra colonial, incluindo a acção armada da ARA contra o aparelho militar da guerra colonial. 

A vitória sobre as concepções neo-coloniais e o tacticismo oportunista tornou-se evidente no Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, em Abril de 1973, bem como no crescimento no seio das Forças Armadas portuguesas da consideração da necessidade de derrubar o fascismo e de pôr fim às guerras coloniais. Tais avanços na identificação dos objectivos e natureza comuns da luta de libertação nacional em África e da luta contra o regime fascista em Portugal são inseparáveis do carácter popular e profundamente democrático das lutas do povo português e dos movimentos de libertação nacional dos povos africanos e, simultaneamente, da acção de esclarecimento, resistência e luta dentro dos quartéis e no próprio teatro das guerras coloniais em que os comunistas, seguindo a orientação do seu Partido, tiveram o papel mais destacado.

Aqueles que hoje pretendem diminuir e apagar o papel do PCP, sobrevalorizando ao mesmo tempo tomadas de posição anti-coloniais de outros, já surgidas com a Revolução de Abril no horizonte, prestam um mau serviço ao estabelecimento da verdade histórica e ao esclarecimento das novas gerações.

A luta em defesa da verdade histórica está a assumir uma grande importância por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril. O Comité Central do PCP,  no passado dia 8 de Dezembro, decidiu promover um amplo conjunto de iniciativas visando dar a conhecer o que foi e o que realmente representou a Revolução de Abril e a projecção dos seus valores e realizações para a luta na actualidade contra a política de direita, por uma alternativa patriótica e de esquerda, por uma democracia avançada, pelo socialismo.

Uma luta que passa igualmente pelo combate contra a promoção de forças, projectos e concepções reaccionárias e fascizantes, contra o racismo, a xenofobia e o neocolonialismo nas suas mais diversas expressões, e pelos valores da liberdade, da democracia, do patriotismo e do internacionalismo.

Este é também o momento de defender a verdade sobre a real natureza e principais beneficiários da exploração colonial; as razões da longevidade do colonialismo português, o último grande império a desaparecer; a interligação entre a Revolução de Abril em Portugal e a conquista da independência pelos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Em Cabo Verde, o antigo campo de concentração do Tarrafal por onde passaram e morreram tantos anti-fascistas portugueses – entre os quais muitos comunistas – e patriotas africanos, constitui um dramático testemunho, que importa preservar, do que foi a violência terrorista que se abateu sobre os povos que lutavam e venceram um inimigo comum.

Sobre o que foi a chamada “missão civilizadora” do colonialismo português e da sua tão decantada “luso tropicalidade” fala a violenta exploração, o terrível atraso em que se encontrava a Guiné, o enorme índice de analfabetismo, os horrores da guerra, os massacres praticados. Tal foi o caso do massacre de 3 de Agosto de 1959, no porto de Pidjiguiti, em Bissau, com a morte de dezenas de trabalhadores e numerosos feridos, acontecimento que haveria de determinar a viragem para a luta armada nos campos, concebida por Amílcar Cabral e desencadeada pelo PAIGC em Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite no Sul da Guiné.

Os beneficiários da exploração colonial foram os grandes grupos económicos portugueses como o Grupo CUF que, através da Casa Gouveia, dominava praticamente a Guiné, e grandes companhias estrangeiras que exploravam directamente os principais recursos das colónias. A conivência e apoio político das grandes potências imperialistas e da NATO permitiu a longevidade do império colonial português. 

Por detrás da dominação colonial portuguesa estava o domínio imperialista estrangeiro – ingleses, americanos, alemães, belgas e franceses.

Portugal, país colonizador, e simultaneamente colonizado, uma particularidade da situação portuguesa que determinou que os destinos  do povo português e dos povos de Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe fossem objectivamente aliados na luta contra o inimigo comum, o fascismo e o colonialismo português. O processo de descolonização revelou a extraordinária força desta realidade. Todas as operações visando travar  a independência das colónias e inverter o curso do processo revolucionário em Portugal foram derrotadas e o próprio António Spínola, então Presidente da República, viu-se forçado a aceitar, contra os seus propósitos, as independências.

A liquidação do fascismo em Portugal e a conquista da independência da Guiné e demais colónias portuguesas corresponderam a uma necessidade histórica e à vontade dos  povos. Quaisquer tentativas de subverter a realidade dos factos deve ser frontalmente combatida. E tanto mais quanto no plano internacional, em nome de um requentado conceito de “civilização ocidental”, estão em desenvolvimento concepções e práticas recolonizadoras que encerram grandes perigos para a independência e o progresso dos povos africanos.

Ao evocar Amílcar Cabral, homenageamos um dos líderes da luta de libertação nacional dos povos africanos, que marcou todo um período de impetuoso avanço da emancipação social e nacional no mundo. No entanto, cinquenta anos passados sobre o assassinato de Amílcar Cabral, não é possível ignorar as dificuldades, retrocessos e perigos com que os povos estão confrontados devido à contra-ofensiva ideológica, económica e militar do imperialismo.

Aos nossos camaradas e amigos do PAICV e PAIGC, a todos os convidados aqui  presentes, representantes de vários países, de várias forças políticas, de tanta história e tanta luta, afirmamos que o PCP, hoje como no passado, continua empenhado nos princípios e nos objectivos que estiveram e continuam a estar na base da luta comum dos povos pela paz, pela soberania, pelos direitos, incluindo o direito ao desenvolvimento e ao progresso social, pela libertação de todas as formas de exploração e de opressão, convicto que, mais cedo do que tarde, os ideais a que Amílcar Cabral dedicou toda a sua vida acabarão por triunfar.

Viva Amílcar Cabral!
Viva a luta de libertação dos povos!
Viva a solidariedade internacionalista!
A luta continua!

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