Amigos e Camaradas:
Foi longa, multifacetada e de uma grande riqueza a vida e a intervenção política de Álvaro Cunhal no país e no plano internacional.
Dividir, separar cada uma das dimensões da sua acção política que é coerente e una, é um exercício difícil, particularmente quando evocamos aqui nesta sessão a sua dimensão de estadista ao serviço do povo e da pátria.
E tanto mais difícil quando o homem de Estado que foi Álvaro Cunhal se manifesta não apenas na acção que desenvolveu no quadro das instituições da República – no Governo, na Assembleia ou no Conselho de Estado –, mas também no inestimável contributo que deu ao país e ao seu povo, como ideólogo, estratego, intelectual e dirigente partidário que, na assumpção das mais altas responsabilidades no seu Partido – o PCP –, não só foi chamado a pronunciar-se e dar o seu contributo em questões da maior relevância para a nossa vida colectiva, mas principalmente porque foi nessa qualidade e com iniciativas próprias que se apresentou a desempenhar um papel de relevo na resposta aos grandes problemas do nosso país, do seu desenvolvimento e do seu futuro.
Álvaro Cunhal assumiu responsabilidades em Órgãos do Poder, nomeadamente no Governo de Portugal, num momento decisivo da vida do nosso país e num quadro de grande complexidade e exigência.
A sua imediata integração no primeiro governo provisório saído da Revolução de Abril de 1974, como ministro sem pasta é uma inclusão natural e lógica. Significa o reconhecimento do seu trajecto de intrépido lutador antifascista, da sua elevada capacidade política e de liderança e o inestimável e inigualável papel que desempenhou, como Secretário-Geral do PCP, na teorização da revolução portuguesa – que caracterizou como uma Revolução Democrática e Nacional e que o PCP acolheu como um contributo determinante para o seu Programa aprovado pelo seu VI Congresso em 1965.
Um papel que revela o homem político de qualidade superior com uma ampla perspectiva histórica sobre o desenvolvimento do país, possuidor de grande experiência e do domínio dos instrumentos de análise política e das leis do desenvolvimento social.
A sua obra “Rumo à Vitória”, patenteia a visão estratégica do estadista, do político de qualidade superior, comprometido com o destino do seu país na procura dos caminhos da liberdade, da democracia e do progresso social para o seu povo.
Uma obra que haveria de ter um grande impacto e influência em largos sectores do movimento democrático e na dinâmica e unidade das forças da Oposição ao regime fascista de Salazar e Caetano, quer no que se refere aos objectivos da revolução antifascista, quer em relação aos caminhos que haveriam de garantir a sua realização e o seu êxito e, sobretudo, como guia para acção e intervenção na nova realidade aberta pela Revolução.
Uma presença natural no governo do país, portanto, de quem não se encontrou no meio dos acontecimentos revolucionários de Abril, mas de quem deu um inquestionável contributo para os fazer acontecer e de quem, pelo conhecimento aprofundado da realidade portuguesa haveria, igualmente, de desempenhar um papel de inquestionável relevo na sua defesa, consolidação e desenvolvimento.
Uma presença natural e lógica pelo que igualmente representava no plano partidário nacional. Álvaro Cunhal era o mais destacado dirigente da maior e mais importante força política portuguesa que se afirmou, durante o longo percurso de 48 anos do combate pela liberdade e pela democracia, como a grande força nacional antifascista.
Aqui vieram muitos dos aspectos da sua actividade como estadista nas diversas instituições e nos diversos períodos da vida do país, no Governo, na Assembleia, no Conselho de Estado e também fora delas. Aqui vieram os relatos de uma singular intervenção institucional, sempre estreitamente ligada e associada a uma abundante intervenção política e de massas; a sua diversificada actividade e íntima relação com as organizações dos trabalhadores e do movimento de massas e do amplo leque das suas organizações sectoriais; o seu trabalho na procura da unidade das forças democráticas; uma importante intervenção no plano internacional, entre muitos outros aspectos que dão conta de uma abundante e simultânea intervenção nos mais diversos domínios e sectores da vida do país, expondo uma extraordinária capacidade de agir com conhecimento em várias frentes, mas particularmente caminhar sobre uma realidade complexa e em movimento, revolvendo-a para encontrar uma saída e um rumo que servisse os interesses do povo e do país.
Isso está patente, por exemplo, no período em que exerceu funções governativas nos primeiros momentos do processo revolucionário e em relação à superação dos problemas vitais para a própria sobrevivência da Revolução e para os quais deu um importante e decisivo contributo, que mostram a sua estatura de estadista, nomeadamente na solução do problema do poder que se havia manifestado heterogéneo e contraditório em resultado da própria forma da intervenção do movimento das forças armadas e que se traduziria numa fraqueza da Revolução, na resposta à conspiração contra-revolucionária e da sabotagem que a democracia nascente teve que enfrentar bem cedo, na solução do problema colonial e na política de abertura ao mundo do novo Portugal democrático.
Álvaro Cunhal exerceu tais funções num governo onde comunistas eram uma minoria e numa situação em que, desde a primeira hora, nos órgãos superiores militares e civis se revelavam profundas divergências que tinham por base projectos diferentes quanto à destruição do regime fascista e quanto aos objectivos fundamentais da Revolução.
Desta situação resultaram a criação e multiplicação de centros de decisão que tornaram determinante a superação dos inevitáveis conflitos, a correlação de forças a nível militar e popular.
É inquestionável o papel de Álvaro Cunhal neste quadro complexo, não apenas na identificação, popularização e credibilização da aliança Povo-MFA como o motor da revolução, mas particularmente e de forma determinante no cimentar dessa aliança pela sua acção pessoal e de massas e na procura de soluções de fortalecimento da unidade no interior de cada uma das suas componentes à volta da defesa dos grandes objectivos da democracia nascente.
Um trabalho realizado de valorização e de potenciação de uma aliança que se revelou decisiva, para garantir a defesa e a democratização da vida nacional e o avanço das suas realizações e conquistas e, particularmente, nos momentos mais críticos e decisivos como o foram os sucessivos golpes contra-revolucionários, incluindo na crise político-militar de 1975. Por isso lhe deu tanta atenção. A atenção de quem sabia da importância do poder político e da construção de um Estado democrático para assegurar a vitória e a concretização dos objectivos da Revolução, como antes já o havia explicitado em “A questão do Estado, questão central de cada revolução”.
Foi visível e está amplamente documentada a sua participação nas grandes acções de massas visando a sua mobilização e apoio às grandes tarefas da Revolução e da sua defesa.
Uma intervenção onde está patente a relação de autenticidade do dirigente político e do estadista, com os trabalhadores e o povo, particularmente nessa sua capacidade de dar sentido à acção das massas para lá dos muitos combates pelo imediato melhoramento das suas condições de vida, para lá da conjuntura. Uma intervenção mobilizadora que não estava desligada da justeza da defesa de uma política que respondia às aspirações mais sentidas do povo trabalhador das empresas, dos campos e das massas populares e que revelava o estadista que era capaz de apontar e combinar os combates e as tarefas do presente, mantendo e apontando uma galvanizadora perspectiva de futuro. Uma acção que se traduzia num enorme estímulo à confiança na força e capacidade do próprio povo e ao êxito da sua luta para alcançar um futuro melhor e mais justo, uma sociedade nova e diferente para a qual a Revolução de Abril abria as portas.
Uma acção que se traduzia de forma coerente no interior do governo e na sua relação com outras instituições do poder político.
Menos visível mas não menos importante foi sempre a sua corajosa e frontal acção no interior do governo em momentos de grande tensão e cruciais para a defesa da revolução e da democracia, mesmo perante a ameaça e a chantagem das forças da conspiração como foram os momentos que antecederam os golpes da contra-revolução.
Álvaro Cunhal intervinha e afirmava no governo e nas outras instituições o mesmo que dizia ao povo cá fora.
Quando ouvimos militares que assumiram as mais altas responsabilidades no país e nas forças armadas dizer que Álvaro Cunhal era uma “referência”. Concordasse-se ou discordasse-se dele, confiava-se nele”. Não mostra apenas o homem de carácter que era, mas o estadista íntegro que sabia agir sempre colocando os interesses do seu povo e do seu país com verdade e transparência.
A revolução não seria tão profunda e não teria ido tão longe nas transformações que operou na sociedade portuguesa sem a acção das massas populares e dos militares revolucionários, mas também certamente sem o seu precioso contributo, nomeadamente na superação dos conflitos no plano dos órgãos do poder político e político-militar e da acção da conspiração contra-revolucionária.
Uma intervenção que se alargou a outros domínios, nomeadamente os das relações externas que punham à prova o estadista com grande experiência e domínio dos assuntos internacionais. Desde logo, nos esforços de abertura de Portugal ao mundo e na reposição do prestígio do país na cena internacional e na solução da questão colonial.
O seu prestígio e autoridade internacional consolidado por um longo percurso de relações muito amplas e diversificadas, de participação e intervenção em importantes fóruns internacionais, que desde muito jovem desenvolveu, designadamente no âmbito do movimento comunista internacional e na frente anti-imperialista e de libertação nacional, colocou-as também Álvaro Cunhal ao serviço do país.
Em relação à questão colonial, evidenciaram-se aqui exemplos desse envolvimento e participação pessoal de Álvaro Cunhal e do PCP não apenas no desenvolvimento de relações de amizade, cooperação e solidariedade com os Movimentos de Libertação das antigas colónias portuguesas antes e depois do 25 Abril, mas a sua intensa actividade, nomeadamente como dirigente do Partido para pôr fim à guerra colonial e assegurar o êxito do processo de descolonização. Uma intensa actividade reconhecida por todos os genuínos Movimentos de Libertação e que prestigiou Portugal e a Revolução Portuguesa. Uma posição alicerçada numa coerente posição de princípio do PCP de reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência e que era simultaneamente um acto de libertação de um país que era ao mesmo tempo colonizado e colonialista, “um peão no jogo das grandes potências” como afirmava Álvaro Cunhal.
Importante foi a actividade desenvolvida no alargamento e diversificação das relações externas do país.
Foi Álvaro Cunhal quem em Outubro de 1974, dirigiu a primeira missão governamental à URSS, uma visita de Estado de inegável significado histórico para lançar as bases do desenvolvimento e cooperação, no seguimento do estabelecimento de relações com a maioria dos países socialistas da Europa.
Uma actividade que contribuiu para o estabelecimento de acordos económicos, comerciais e culturais com um vasto número desses países e que foram particularmente úteis quando o país começou a enfrentar a acção desestabilizadora da conspiração, também no plano económico e financeiro, com a transferências de capitais para o estrangeiro, a descapitalização de empresas, a destruição de searas, visando o enfraquecimento do ainda débil regime democrático.
Não menos importante foi a acção desenvolvida para abrir as relações de Portugal com os povos do mundo árabe, de África, Ásia e América Latina que contou com o apoio e solidariedade dos comunistas portugueses. Neste âmbito não se podem deixar de salientar os contributos de Álvaro Cunhal na luta contra o Apartheid e de apoio à causa Palestiniana e as relações estabelecidas por Álvaro Cunhal, como dirigente do PCP, com importantes figuras dos Estados e dos Movimentos de libertação destes continentes, como Oliver Tambo primeiro e Nelson Mandela mais tarde, Sam Nujoma, Robert Mugabe, Yasser Arafat, Jumblat, Mengistu Hailé Marien e muitos outros.
Uma intervenção complementada por uma intensa actividade a favor da paz, pelo desarmamento, pela amizade e a cooperação entre os povos e por uma nova ordem económica mundial.
Mas a dimensão do estadista não se revela apenas nos períodos da resistência ao fascismo e dos grandes avanços revolucionários, mas igualmente quando o país foi confrontado com a ofensiva de recuperação capitalista e restauração monopolista, imposta pelos partidos que governam o país rotativamente nas últimas quase quatro décadas e que resultou na grave crise que o país atravessa. Crise previsível como tantas vezes o afirmou, como previsíveis e certeiras foram as suas análises sobre as consequências da adesão de Portugal à CEE e do consequente processo de integração.
A sua dimensão de estadista está patente no combate que travou, juntamente com o seu Partido, contra o rumo que o país seguia e as batalhas que travou contra a subversão do regime democrático e em defesa da Constituição da República. Constituição na aprovação e urgente promulgação da qual se empenhou como deputado e como dirigente político. Tal como se empenhou contra as práticas de abuso de poder, como o foram as práticas ilegais e inconstitucionais dos governos da contra-revolução de imposição de factos consumados em matéria de estruturas sócio-económicas, de direitos fundamentais dos trabalhadores e de degradação da democracia, que sucessivas revisões legalizaram.
Álvaro Cunhal costumava dizer que a “Constituição da República de 1976 foi o retrato da Revolução de Abril. As suas revisões o “filme do avanço do processo contra-revolucionário”.
Por isso deu um combate sem tréguas ao processo da contra-revolução, que se desdobrou em muitas batalhas e de entre as quais se inscreve a grande batalha da afirmação de um projecto alternativo ao rumo de desastre da política de direita – o projecto de uma Democracia Avançada para Portugal.
Um projecto que se mantém actual no que é essencial e que é a base do actual programa do Partido «Uma Democracia Avançada — Os Valores de Abril no Futuro de Portugal».
Como actual se mantêm os objectivos da luta que travou como ninguém contra a Europa do grande capital e do directório das grandes potências e por uma outra Europa de paz, amizade e cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos. Luta e proposta que o actual Programa do Partido incorpora também.
Programa que é uma proposta que responde às necessidades concretas da sociedade portuguesa, que visa promover grandes transformações para responder aos problemas do país e que no desenvolvimento das suas quatro vertentes – política, económica, social e cultural – corresponde inteiramente aos interesses da maioria do nosso povo.
O projecto de Democracia Avançada cuja realização é indissociável da luta que hoje o PCP trava pela concretização da ruptura com a política de direita e da materialização de uma política patriótica e de esquerda.
A superior dimensão do dirigente político e estadista que foi Álvaro Cunhal não pode ser dissociada dos seus ideais e objectivos programáticos, nem da sua concepção da política e dos políticos.
Uma concepção do exercício da actividade política entendida como realizada para servir o povo e o país e não interesses pessoais ou de grupo. Uma concepção onde está presente a entrega desinteressada e a recusa de vantagens sociais e privilégios pessoais. Uma concepção do exercício da actividade política conduzida por valores políticos éticos, desde logo o valor do respeito pela verdade.
Uma concepção que recusa a prática dominante e recorrente dos partidos do rotativismo nacional de mentir ao povo, como o fez e faz o actual governo do PSD/CDS para ganhar votos e levar à pratica a sua política de centralização e concentração da riqueza a favor dos grandes grupos monopolistas a coberto de um suposto interesse nacional.
Uma concepção que rejeita a demagogia, a retórica barata, a política espectáculo e as exibições teatrais, a política de criação de “factos políticos” e divergências para mostrar diferenças que não existem e que são as práticas reincidentes dos partidos que rivalizam no exercício do poder, que têm dado vida aos sucessivos governos dos últimos anos, para realizarem no essencial a mesma política. Práticas que conduzem à impunidade, ao abuso do poder, à corrupção.
Formas de fazer política que são uma das principais causas da degradação da democracia e da imagem da política e dos políticos.
Dizia Álvaro Cunhal que “política é uma palavra digna. Significa uma orientação, uma proposta e uma intervenção destinada a resolver os problemas que se colocam na vida de qualquer sociedade”.
Álvaro Cunhal foi bem o exemplo do político que dignificou a actividade política, como uma actividade nobre, porque exclusivamente ao serviço da resolução dos problemas do país e do povo. Do político e do estadista que granjeou a admiração e o respeito, não apenas dos que com ele estavam empenhados no mesmo combate e pelos mesmos ideais, mas por todos aqueles que com ele privaram para encontrar soluções para os problemas do país, mas também os seus adversários. Álvaro Cunhal é bem o exemplo do político escutado, cuja reflexão era tida em conta, porque profunda e séria. Do estadista que nunca meteu, nem os seus princípios, nem os seus ideais, na gaveta. Do estadista fiável, dirigente de um Partido igualmente fiável. Do político e do estadista de quem se dizia que “com ele não é preciso assinar nada, bastava a palavra dada”. Do estadista que o é também, porque inquestionavelmente se guiou pelos princípios da honradez, da veracidade, do escrúpulo político. Do dirigente e do estadista que submetia não apenas os fins políticos a rigorosos critérios éticos, mas também os próprios meios para os atingir.
Álvaro Cunhal foi bem o exemplo de que os que intervêm na política não são todos iguais.
É para nós inquestionável que são os povos que fazem a história, cujo motor é a luta de classes, mas é inquestionável também que ela precisa do concurso dos homens certos e em cada momento, para lhe dar rumo e movimento. De homens como Álvaro Cunhal que, conhecendo a realidade e os desafios do seu tempo, são capazes igualmente de compreender e interpretar as aspirações mais profundas do povo e de uma nação e lhes dar um sentido!