Caros Amigos:
Como antifascista que passou nas prisões políticas de Salazar quase 17 anos da sua vida e que foi libertado graças à luta do povo português e à ajuda do movimento de solidariedade internacional eu quero trazer até vós o meu testemunho das torturas a que são sujeitos os patriotas portugueses na polícia política, do arbítrio dos tribunais e do cruel e desumano regime prisional nas prisões fascistas. Eu quero ainda trazer-vos o meu mais caloroso apoio à vossa iniciativa e manifestar-vos todo o meu reconhecimento pela ajuda que a vossa Conferência de «mesa redonda» vai representar para as centenas de patriotas portugueses que jazem nas prisões políticas sujeitos a um regime inumano e de terror, pela ajuda que ela vai representar para todo o povo do meu país na sua luta pela Democracia.
Preso pela primeira vez em 1948 eu fui espancado e submetido à tortura do longos dias e noites sem dormir, obrigado a manter-me na posição de «estátua». É a «estátua» o método mais vulgar e usual da PIDE (policia política) para tentar obter declarações das presos. Além dos longos e contínuos interrogatórios intercalados por espancamentos e outras torturas as mais refinadas como queimadelas com cigarros ou fósforos acesos, picadelas com agulhas, o arranco do pêlos com pinças, os insultos e calúnias com que se procura abalar o moral dos presos, etc., estes são mantidos durante dias o noites, por vezes semanas consecutivas, na tortura do sono que consisto na chamada «estátua», em que o preso se não pode sentar nem dormir, que leva a alucinações, ao esgotamento total e não poucas vezes à loucura. Para quem nunca viveu situações destas será difícil conceber que se possa estar 17 dias e noites seguidas sem dormir como ainda não há muito aconteceu ao patriota engenheiro Veiga de Oliveira. «Ao 3.º andar desta polícia não chega a lei», dizem arrogantemente os agentes e inspectores da PIDE.
Libertado em 1951, eu voltei a ser preso em Janeiro de 1953. Condenado então a 4 anos e «medidas de segurança» só viria a ser libertado quase 14 anos depois. Quando já tinha terminado a pena e me encontrava preso devido apenas às «medidas de segurança» fui submetido a novo julgamento acusado de, na cadela, ter conspirado contra a segurança interna do Estado. Na verdade os guardas prisionais, nas suas frequentes buscas e devassas às coisas dos presos, teriam encontrado em qualquer parte um papel escrito pelo meu punho e que era uma cópia dum regulamento da solidariedade praticada pelos presos entre si. Nada mais. Mas isso bastou para me fazerem um processo e me levarem outra vez a tribunal. No julgamento os advogados não tiveram nenhuma dificuldade em demonstrar que isto não tinha nenhum carácter político e muito menos ameaçava a segurança do Governo, que sempre e em toda a parte desde que existem presos políticos estes praticaram a solidariedade entre si, ajudando-se mutuamente a resolver dificuldades materiais. Tratava-se apenas duma acção de solidariedade humana e nada mais. Entretanto e apesar disso os juízes do Tribunal Plenário de Lisboa primeiro e os do Supremo Tribunal de Justiça depois, também não tiveram nenhuma dificuldade em «provar» que copiando na cadela um regulamento de solidariedade prisional eu tinha ameaçado a segurança interna do Estado e como tal condenaram-me a 5 anos de prisão, agravado depois para 6 anos e meio pelo Supremo Tribunal de Justiça. É assim a justiça em Portugal. Isto é difícil acreditar, mas a prová-lo existe o facto real o objectivo de eu ter sido condenado o existe certamente o processo que poderá ser examinado. E este é apenas um exemplo entre muitos semelhantes, sem falarmos já da forma como decorrem os julgamentos em que aos presos não é dada nenhuma possibilidade de defesa, nem aos próprios advogados, em que os presos não poucas vezes são espancados pela polícia e metidos num calabouço, onde lhes vão ler a sentença depois.
Nas cadeias políticas salazaristas e particularmente na do Forte do Peniche onde passei mais de 14 anos da minha vida de prisão, cadeia modelo do fascismo em Portugal, a vida dos presos é um autêntico interno quotidiano. Nega-se-lhes a sua qualidade de presos políticos e aplica-se-lhes o regime dos presos de delito comum no que ele tem de pior, expurgando-o de tudo quanto possa contribuir para lhes suavizar a vida. Procura-se aniquilar totalmente a personalidade dos presos tratando-os como «coisas». É proibido cantar, é proibido assobiar, é proibido ouvir música, é proibido aproximar-se das janelas, cujos vidros são foscados, mesmo as que dão para pátios interiores é proibido encostar-se às camas, é proibido dar qualquer coisa a outro companheiro quer seja comida, vestuário ou seja o que for, é proibido ensinar um analfabeto a ler, é proibido juntarem-se vários num grupo a conversar mesmo em salas onde estão mais duma dezena, não se pode falar alto porque «é proibido fazer barulho», não se pode falar baixo porque «os guardas precisam de ouvir as conversas»; proíbe-se uma conversa sobre Platão porque «é proibido falar de política»; nas visitas chega-se a proibir uma criança de chupar um rebuçado porque «é proibido comer na visita»; proíbe-se uma conversa sobre futebol porque «o futebol não é assunto familiar» e os presos só podem falar com suas famílias de assuntos familiares. etc., etc. Toda a vida do preso é espiada. «O preso deve ter a sensação de que está sempre sob o olhar vigilante do guarda», diz uma ordem de serviço da cadeia. É impossível citar aqui todas as proibições deste o doutro género a que os presos estão sujeitos em Peniche e, com algumas pequenas variantes, em todas as outras cadeias políticas. Isto e as limitações e restrições de toda a ordem e as frequentes provocações de certos guardas dá origem a constantes castigos em que se destacam os segredos e os isolamentos e até as ameaças de morte inclusive por parte do próprio director da cadeia. Eu assisti a espancamentos a vários presos por brigadas de guardas comandados pelo sou chefe; eu vi metralhadoras apontadas aos presos com a ameaça de disparo iminente quando estes reclamavam uma refeição que lhes tinha sido negada. Os presos vivem numa tensão nervosa permanente. É necessário um grande esforço de sua parte para manterem o seu equilíbrio psíquico e em muitos ele está grandemente afectado.
Esta é uma pequena amostra da situação que vivem os presos nas cadeias políticas de Salazar e, particularmente na cadeia de Peniche. Uma descrição completa encheria um livro com muitas páginas. Se tivermos em atenção que os presos que estão em Peniche são geralmente presos condenados a longas, penas, muitos deles já com mais do 10 anos do prisão e outros tantos ou mais de vida clandestina, completamente arrasados da saúde e dos nervos, condenados às «medidas do segurança» que permitam a prisão por toda a vida avaliaremos melhor o significado e a dureza dum tal regime prisional, avaliaremos melhor os sofrimentos que suportam centenas de homens e mulheres do meu pais cujo único crime foi o de lutarem pela liberdade e uma vida melhor para o seu povo.
Fazendo ardentes votos pelos êxitos do vosso trabalho eu vos envio, caros amigos, as minhas mais calorosas saudações.
Publicado no Jornal «Portugal Democrático», São Paulo (Brasil), Março 1968