Tendo em conta que a questão da interrupção voluntária gravidez tem vindo a ganhar compreensivelmente um crescente relevo no debate político nacional, a Comissão Política do PCP considera oportuno e indispensável tomar posição sobre um conjunto de questões em torno desta importante problemática.
1. Desde logo, importa assinalar que, sem prejuízo da relevância e da contribuição que possa vir da apresentação e debate de outros projectos, o único projecto de lei até agora apresentado na Assembleia da República é o subscrito pelos deputados do PCP. Este facto incontroverso mostra como têm sido artificiais e preconceituosas as tentativas de apenas conferir existência política a ideias ou propostas que ainda não tinham sido convertidas em projectos apresentados na AR, negando-a entretanto essa existência e relevância políticas ao projecto realmente existente naquele órgão de soberania.
De igual modo, não se pode deixar de considerar como traduzindo uma visão muito limitada e pouca respeitadora das realidades políticas a ideia de que, nesta questão, apenas estariam em causa divergências, conflitos, mal-estar ou embaraços situados na área do PS e do seu Governo.
De facto, convém não esquecer que, tendo apresentado o seu projecto em Outubro do ano passado e dispondo o PCP do inquestionável poder de promover o seu agendamento, não só nenhuma força política e nenhuns deputados se conseguiriam furtar a uma definição, pelo debate e pelo voto, das suas posições como também muitos não escapariam a pagar um elevado preço político se acaso rejeitassem o projecto do PCP apenas por ser um projecto do PCP e não de deputados socialistas.
2. Em coerência com uma intervenção precursora que, no plano legislativo, remonta a 1982, e dando corpo legal a soluções que merecem um vasto consenso entre instituições e cidadãos sinceramente empenhados em enfrentar o flagelo do aborto clandestino e proteger a saúde e a dignidade das mulheres, o projecto de lei do PCP, tendo em conta as alterações resultantes da aprovação da Lei 90/97, volta a propor que deixe de ser ilegal e punível o recurso à interrupção voluntária da gravidez e passe a ser permitido nos serviços hospitalares quando:
- Realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher;
- até às 16 semanas nos casos de mãe toxicodependente e para evitar perigo de morte ou grave lesão para o corpo ou saúde física e psíquica da mulher grávida;
- e até às 24 semanas quando exista o risco de o nascituro vir a sofrer, de forma incurável, de HIV (sindroma da imunodeficiência adquirida) e no caso de vítimas de crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica.
3. Face ao anúncio de que um projecto de deputados do PS pretenderá instituir as 10 semanas (e não as 12) como limite temporal para a realização do aborto a pedido da mulher, o PCP considera que tal proposta representaria um recuo absolutamente injustificado, ao arrepio do largo consenso existente, em termos nacionais e internacionais, em torno das 12 semanas.
O PCP sublinha o grave prejuízo que resultaria se soluções justas e necessárias e princípios correctos fossem sacrificados no altar de qualquer incerto «comércio» de votos parlamentares.
O PCP sublinha que, 24 anos depois do 25 de Abril, 16 anos depois da primeira discussão desta matéria na AR e à beira da entrada no século XXI, é tempo não de mais um pequeno e insuficiente passo mas de uma solução legislativa clara, corajosa e ajustada à natureza e dimensão deste problema vivido pelas mulheres portuguesas.
4. A circunstância, a muitos títulos lamentável, de forças e posições conservadoras estarem, mais uma vez, a enveredar por todo um conjunto de caricaturas, deturpações e mistificações, obriga o PCP a reafirmar alguns pontos essenciais que inspiram e enquadram esta sua iniciativa legislativa.
Neste sentido, o PCP insiste em que, do seu ponto de vista, a verdadeira clivagem existente nesta matéria não é entre ser «a favor» ou «contra» o aborto, mas entre os que se dispõem a conviver tranquilamente com a dramática realidade do aborto clandestino mantendo a criminalização das mulheres que a ele recorrem e os que, não considerando desejável que o aborto persista e seja usado como método de planeamento familiar, querem entretanto assegurar esse indiscutível avanço que seria a progressiva passagem do recurso ao aborto da esfera da clandestinidade e da insegurança para a esfera da legalidade e da assistência e da segurança médicas.
O PCP insiste também em que, enquanto a solução legislativa que propõe e preconiza não obrigará obviamente nenhuma mulher a recorrer ao aborto legal contra a sua vontade, as suas convicções e a sua consciência, já a legislação penalizadora em vigor empurra e coage as mulheres que desejariam interromper uma gravidez em condições de segurança para o recurso ao aborto clandestino com todo o seu cortejo de dramas, traumas, sentimentos de culpa, e riscos, por vezes até de morte.
5. O PCP esclarece que, pela sua parte, não encara uma nova discussão e votação na AR como um expedito ou precipitado processo de mera «recontagem» dos votos expressos em Fevereiro de 1997 e, por isso, manifesta as mais sérias objecções à ideia veiculada por deputados do PS de promoverem o debate e votação de um seu projecto logo poucos dias depois da sua apresentação, designadamente no inicio de Fevereiro.
PCP considera desejável que haja algum tempo para a redinamização do debate público em condições de serenidade e tolerância e para uma activa intervenção da opinião pública, não teme um tal debate e tem a convicção de que o seu desenvolvimento, longe de prejudicar a aprovação de projectos positivos, só a pode favorecer.
Neste sentido, o PCP consideraria mais razoável que o debate e votação dos projectos que venham a existir se pudessem realizar em meados de Março.
6. O PCP chama a atenção para que a proposta de referendo apresentada pelo PSD traduz única e exclusivamente a insistência daquele partido nas reclamações de referendos como mera arma de obstrução, paralisação e adiamento de decisões de que discorda ou que antevê desfavoráveis para os seus pontos de vista.
O PSD sabe perfeitamente que, por razões de calendário político que já parecem comprometer os propalados referendos sobre a regionalização e a integração europeia, o referendo que propõe sobre o aborto seria praticamente inviável até às próximas legislativas.
Por outro lado, convém lembrar que, logo após a rejeição dos projectos do PCP e de deputados do PS em Fevereiro de 1997, o PSD logo se desinteressou do referendo que até aí também tinha reclamado, ficando assim absolutamente claro que só o concebe para invalidar uma decisão favorável da AR e jamais o admite para rectificar uma decisão negativa daquele órgão de soberania.
Pela sua parte, o PCP continua, a considerar preferível que se proceda a mais uma tentativa para obter da Assembleia da República uma decisão favorável à legalização da IVG, em determinadas circunstâncias e prazos.
7. Quanto ao projecto de lei do CDS-PP visando consagrar que «a personalidade jurídica adquire-se no momento da concepção», o PCP apenas deseja assinalar, nesta ocasião, que se trata de um projecto de cuja aprovação decorreriam perversas, aberrantes e intoleráveis consequências jurídicas; que se trata de um projecto retrógrado que concretiza uma das mais descaradas tentativas de colocar as leis do Estado ao serviço da imposição a toda a sociedade das concepções ou convicções de apenas alguns, e nomeadamente daqueles a quem a realidade quotidiana do aborto clandestino, por o ser, nada incomoda, e só acordam para a defesa do «direito à vida» quando se discute a legalização e despenalização da IVG.
8. Finalmente, reafirmando que considera que a interrupção voluntária da gravidez deve ser sempre encarada como um último recurso e que a perspectiva de futuro que deve ser colocada é a da sua significativa redução por efeito conjugado da melhoria das condições de vida, da educação sexual e da generalização do planeamento familiar, o PCP manifesta a sua confiança de que, desta vez, seja possível que uma maioria de deputados se honre com a adopção de uma solução legislativa indiscutivelmente necessárias para enfrentar um grave problema de saúde pública, fazer terminar uma injusta penalização e criminalização da mulher e proteger o valor de uma maternidade consciente e responsável.