Intervenção de Alma Rivera na Assembleia de República, Reunião Plenária

Sobre as iniciativas legislativas relativas à provocação da morte antecipada

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Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

É esta a terceira legislatura consecutiva em que iniciativas legislativas sobre a provocação da morte antecipada são debatidas nesta Assembleia.
Não estamos no ponto de partida.

Na passada legislatura diversas iniciativas foram aprovadas, houve um veto decorrente de declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, houve o expurgo do veto, houve um veto político do Presidente da República e não houve tempo para a aprovação de novo texto pelos proponentes.

É neste ponto que o debate é retomado em termos substantivos já que formalmente, e apenas formalmente, tudo regressa à estaca zero. Não surpreende, pois, que as iniciativas hoje em debate sejam praticamente coincidentes, pelo que coincidente será a apreciação que fazemos sobre elas.

A nossa posição não foi tomada de ânimo leve. Não se baseia em maniqueísmos ou ideias feitas. É uma opção que resulta de uma reflexão profunda sobre um tema que, pela sua complexidade, pelas inquietações que suscita e pela importância dos valores que estão em causa, dispensa qualquer atitude de arrogância intelectual ou qualquer invocação de superioridade moral.

O PCP sempre se recusou a encarar este debate como uma guerra de trincheiras, de religiões contra ateísmos, de pessoas de esquerda contra pessoas de direita, de iluminados contra obscurantistas. O PCP é um Partido laico e de esquerda e baseia as suas posições numa reflexão onde não cabem dogmas nem anátemas.

O que está em causa é uma opção legislativa, uma opção do Estado, e não um julgamento sobre consciências individuais. Não estamos a decidir da opção individual de cada um sobre o fim da sua vida, mas da atitude a tomar pelo Estado relativamente à fase terminal da vida dos seus cidadãos e ao objetivo para o qual deve a sociedade mobilizar os seus recursos, a sua ciência, o seu progresso tecnológico. A autonomia individual é algo que deve ser respeitado, mas uma sociedade organizada não é uma mera soma de autonomias individuais. Não se pode assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção.

Este não é um debate entre quem preza a dignidade da vida humana e quem a desvaloriza. A dignidade de cada ser humano tem de ser reconhecida independentemente do posicionamento de cada um perante a sua própria morte. 

Se a questão da eutanásia for encarada estritamente no plano individual, não há como não respeitar a posição de quem afirma pretender ter o direito de pôr termo à vida perante uma situação limite. Nenhum de nós receia morrer, porque todos sabemos que morreremos um dia, mas todos receamos o sofrimento que pode preceder a morte. É humano e compreensível que assim seja.

Não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é o sentido em que a sociedade se deve organizar e em que o seus recursos devem ser mobilizados perante a doença e o sofrimento.

Continuamos a considerar que o sentido do progresso das sociedades humanas é o de debelar a doença e o sofrimento, mobilizando os seus recursos, o conhecimento científico e a tecnologia, assegurando que todos os seres humanos beneficiam desses avanços. É nesse sentido de progresso que o Estado se deve empenhar e não no de criar condições para antecipar a morte.

O Estado Português não pode continuar a negar a muitos dos seus cidadãos os cuidados de saúde de que necessitam, particularmente nos momentos de maior sofrimento. A criação de uma rede de cuidados paliativos com caráter universal tem de ser uma prioridade absoluta. Ninguém entende a eutanásia como um sucedâneo dos cuidados paliativos e para o PCP há uma questão que é incontornável: um país não deve criar instrumentos legais para antecipar a morte e ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver.
 
Inquietam-nos neste processo legislativo as consequências sociais que dele podem decorrer, pensando sobretudo nas camadas sociais mais fragilizadas, nos mais idosos, nos mais pobres, nos que têm mais dificuldades no acesso a cuidados de saúde, aqueles a quem aparecerá de forma mais evidente a opção pela antecipação da morte.

A evolução da ciência e da tecnologia tem permitido avanços da medicina que eram impensáveis ainda há poucos anos. Essa evolução é inexorável e é cada vez mais rápida. A questão é que os recursos disponíveis sejam postos ao serviço de toda a comunidade. 

Através de boas práticas médicas, que rejeitem o recurso à obstinação terapêutica e que respeitem a autonomia da vontade individual expressa através das manifestações antecipadas de vontade que a lei já permite, o dever do Estado é garantir que a morte inevitável seja sempre assistida, mas não que seja antecipada.

Num quadro em que, com frequência, o valor da vida humana surge relativizado em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da eutanásia acrescentará novos riscos que não podemos iludir.
O PCP manterá assim o voto contra as iniciativas legislativas em debate.

Questão diferente é a de saber se esta matéria deve ser submetida a referendo. Também esta proposta não é inédita e já nos pronunciámos sobre ela em sentido negativo.

Em primeiro lugar, por considerarmos inequívoco que a matéria em causa incide sobre direitos fundamentais, seja qual for o ponto de vista por que seja abordado. Seja pelo ângulo dos limites do direito à vida, seja pelo ângulo dos limites à autonomia individual, é de direitos fundamentais que estamos a falar. Para o PCP, opções legislativas sobre direitos fundamentais não devem ser sujeitas às contingências, ao maniqueísmo e à simplificação que sempre contaminam uma consulta referendária. Tem sido sempre esse o posicionamento do PCP em matéria de referendo e ninguém nos poderá apontar incoerências ou variação de posições consoante o referendo possa ou não interessar. 

Em segundo lugar, mas não menos importante, esta Assembleia tem toda a legitimidade para decidir e essa legitimidade deve ser respeitada.
A questão é difícil, sem dúvida que é, mas os Deputados não foram eleitos para decidir apenas sobre questões fáceis, fazendo recair sobre os eleitores a resposta às questões difíceis.

O exercício do mandato parlamentar, em nome do povo, é um exercício de responsabilidade que não deve ser alienada num momento em que tenham de ser tomadas decisões difíceis e não há razão que diminua a legitimidade desta Assembleia para tomar sobre esta matéria as decisões que entender.
A oposição do PCP em relação ao conjunto de todas estas iniciativas é bem conhecida e ficou claramente expressa nos debates que já aqui foram realizados.

O PCP manterá o voto contra que expressou nas anteriores legislaturas.
 

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